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RELAÇÃO ENTRE A MEDIAÇÃO E AS PRERROGATIVAS DA SUPREMACIA E INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

Apontados os preceitos implicados no embasamento acerca da constitucionalidade da prática mediativa envolvendo o Poder Público, é fundamental verificar, também, se a prática autocompositiva na Administração está em consonância com os princípios básicos inerentes à razão de existir do Estado, enquanto administrador da maquinaria pública, e de sobressair-se em relação ao particular, enquanto se encontrarem em situação de divergências de vontades nos assuntos relacionados à atividade do Estado.

Quando se fala em interesse de relevância jurídica, Mariana de Siqueira (2016, p. 24) de forma salutar expõe que:

[...] corresponde à possibilidade de satisfação de uma necessidade através de um bem. A necessidade que integra o interesse jurídico guarda conexão direta com a dignidade do sujeito que é seu titular, neste sentido é possível dizer que determinado elemento apenas é entendido como necessário a ponto de ser convertido em interesse juridicamente tutelado por ser indispensável à dignidade do sujeito com ele relacionado.

O interesse jurídico da Administração mostra-se, em realidade, consoante à colocação da autora, de um preceito inerente à necessidade do Poder Público de um aparato de prerrogativas, visando à garantia de superposição ao particular, de forma

a manter a segurança e a paz social, a conformidade e tolerância dos cidadãos, quando diz respeito às decisões do governo, assegurando o respeito das instituições estatais no exercício da função Pública. Esses interesses do Poder Público se manifestam, principalmente, em princípios ainda muito valorizados no ordenamento jurídico administrativo, os quais são a Supremacia e a Indisponibilidade do interesse público.

Já quando se discorre acerca do interesse público em si, finalidade primordial do regime administrativo, o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 59) se destaca, segundo o qual interesse público, em primeiro momento de conceituação, pode ser dito da seguinte forma:

Ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual. Dizer isto, entretanto, é dizer muito pouco para compreender-se verdadeiramente o que é interesse público.

Como o renomado autor já demonstrou, a simples identificação de interesse público como algo que se contrapõe ao interesse privado é vago, limitado, para não se dizer impertinente. Retratar o interesse púbico na modernidade da ordem jurídica estatal, sem associá-lo com o interesse privado, não se apresenta como salutar frente aos diversos direitos e garantias fundamentais inerentes à condição de vida humana digna, pilar sustentador do Estado Democrático de Direito. Uma dessas prerrogativas é a condição efetiva de participatividade das pessoas nos atos praticados pela gestão governamental.

Destarte, quando se fala em interesse público atualmente, retrata em verdade a condição o interesse do todo administrativo, sendo este a coadunação do interesse do Poder Estatal com o interesse do particular, a conciliação de desejos e necessidades de ambos os lados na formação e manutenção do aparato público, para melhor condução administrativa, a fim de maior e melhor garantia da eficiência na prestação do serviço público. É o que leciona Bandeira de Mello (2015, p. 61)

Pois bem, é este último interesse o que nomeamos de interesse do todo ou interesse público. Não é, portanto, de forma alguma, um interesse constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois, passível de ser tomado como categoria jurídica que possa ser erigida irrelatamente aos interesses individuais, pois, em fim de contas, ele nada mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se

manifesta enquanto estes – inevitavelmente membros de um corpo social - comparecem em tal qualidade. [...] só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro. Logo, é destes que, em última instância, promanam os interesses chamados públicos.

Destarte, atinge-se o interesse público quando o interesse privado é satisfeito, mostrando, dessa maneira, como a cultura do diálogo é fundamental para o atingimento de satisfatoriedade mútua entre o público e o particular. Humanamente dificultoso imaginar um interesse público se não houver oitiva e participação do cidadão nos atos da gestão político-estratégica do Estado, ou mais penoso, ainda, é supor um cumprimento adequado de finalidade pública no atingimento de apaziguação de interesses se estas partes estiverem em conflito e não se possibilitar a adesão de instrumentos eficazes e eficientes de trabalhar essa celeuma. Realmente, a comunicação apropriada é, e sempre será, fundamental para o andamento apropriado para a atividade estatal.

No entanto, tem-se ainda a imprescindibilidade de ressaltar os princípios da Supremacia e da indisponibilidade do interesse público enquanto pedras de toque do Direito Administrativo, sobretudo quando relacionados com a prática da autocomposição, em virtude de indicar, em um primeiro momento, a abdicação de parte ou de todo o objeto interesse na demanda, em detrimento do acordo e da extinção do conflito.

Nesse viés, Marçal Justen Filho retrata o significado inicial e primário das normas principiológicas acima mencionadas da seguinte maneira:

A supremacia do interesse público é interpretada no sentido de superioridade sobre os demais interesses existentes em sociedade. Os interesses privados não poderiam prevalecer sobre o interesse público. A indisponibilidade indicaria a impossibilidade de sacrifício ou transigência quanto ao interesse público, configurando-se como uma decorrência de sua supremacia.

Para os defensores desse entendimento, a supremacia e a indisponibilidade do interesse público vinculam-se diretamente ao princípio da República, que impõe a dissociação entre a titularidade e a promoção do interesse público. Juridicamente, o efetivo titular do interesse público é a comunidade, o povo. O direito não faculta ao agente público escolher entre cumprir e não cumprir o interesse público. O agente é um servo do interesse público nessa acepção, o interesse público é indisponível.

Se a análise dos princípios da Supremacia e Indisponibilidade for realizada apenas pelo viés tradicional de conceituação supramencionado, o argumento de transação, por meios autocompositivos de resolução de controvérsias, se torna

bastante dificultoso, já que não se abre espaço para a consensualidade. Em verdade, não se permite intensidade satisfatória nem o diálogo em si, em decorrência da imperatividade e unilateralidade por meio do qual esses princípios são interpretados, se vistos apenas com foco na vontade da Administração e do Administrador.

Está calcada a Fazenda Pública, assim, em princípios especiais, basilares do ordenamento jurídico administrativo que, em momento inicial, se sobressaem à vontade do privado. Conforme conceituação acima, é como se a Supremacia dissesse respeito às prerrogativas pelas quais a Administração usufrui enquanto no papel te protetora dos direitos fundamentais. Já a Indisponibilidade viria para limitar o próprio exercício dessas prerrogativas, de tal forma que o gestor não poderia dispor do interesse público.

Cite-se, dessa maneira, o artigo 2º, caput, da Lei 9.784/99 (BRASIL, 1999), a qual dispõe acerca do processo administrativo, por meio do qual o Poder Público obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Baseado na única e simples análise de preceito legal positivado, anteriormente mostrado, na hipótese de interesses diversos entre administrador e o cidadão, a vontade daquele prevalecerá, já que seria do ente estatal a prática de atos visando à finalidade pública.

No entanto, esse pensamento inviabilizaria a consensualidade entre Estado e administrado, tendo em razão o fato dos procedimentos autocompositivos prezarem pela isonomia. Entretanto, conforme explicitações anteriormente apresentadas, a inviabilidade da prática mediativa não é pertinente com a normatividade jurídica hodierna, principalmente quando se depara com os preceitos constitucionais fundamentadores da prática da mediação e com a necessidade de conciliação de ambos os interesses na finalidade de satisfação coletiva, razão pela qual a recusa imotivada e injustificada à celebração de acordos com alegação de respeito à supremacia e indisponibilidade se mostra, em verdade dos fatos, autoritária, arbitrária e superficial.

Nesse sentido, a Lei 13.140/15 inova ao romper com a tradicional, e muitas vezes precária, resolutividade de litígios, a qual se insere num contexto de unilateralidade e autoritariedade das decisões estatais, incompatível com a valorização dos direitos fundamentais inerentes à presença da sociedade e exercício da cidadania na condução da função pública, além de se mostrar completamente adverso ao regime legislativo hodierno, tutelando uma processualidade administrativa e judicial calcada na utilização de instrumentos autocompositivos, inclusive a mediação, como é o caso da Lei 13.140/15, do Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) e da própria Resolução número 125/10 do Conselho Nacional de Justiça.

A aplicabilidade de métodos consensuais em processos, tendo a Administração Pública como parte, é ainda mais interessante quando se depara com a exacerbada quantidade de processos existentes na Jurisdição aguardando para serem julgados, representando o Estado um dos grandes litigantes nessas ações, corroborando imensamente para a morosidade do Judiciário e para a inefetividade da sua prestação. Dessa maneira, resta evidente a necessidade de enxergar os princípios do interesse público de maneira a não os caracterizar como absolutos e inflexíveis, mas sim que eles podem ser relativizados conforme a necessidade do caso.

O próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito dessa premissa, por meio do Recurso Extraordinário número 253.885, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, decidindo acerca da relatividade dos princípios inerentes ao fim maior do interesse da coletividade conforme a necessidade do caso, se essa relativização de bens e interesses for a melhor hipótese para o atingimento real do próprio interesse público:

Poder público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse, público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. E, por isso, o administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse.

Apesar da Supremacia e indisponibilidade serem bases do ordenamento administrativo, não se deve confundi-los com prerrogativas de manipulação desarrazoada e arbitrária por parte do Administrador, de modo a transformá-los em preceitos de prepotência no gerenciamento da gestão pública, justamente pela problemática discutida não se encontrar nas normas em si, mas na aplicação destas no caso prático. Dessa maneira, e em conformidade com a decisão da Suprema Corte, é preciso não só entender o papel dos referidos princípios na aplicabilidade que o problema do caso exigir, como também delimitá-los acerca de até qual ponto o Administrador poderá invocar a supremacia e a indisponibilidade, para escusar-se de realizar acordos, ou participar de procedimentos autocompositivos, como a mediação.

O que é inegável é a plena possibilidade jurídica de métodos consensuais de litígios envolvendo a entidade administrativa, já que nem todo o direito que o Poder Público administra é indisponível, além do fato dos direitos indisponíveis, nos quais a Administração defende, poderem se submeter ao procedimento de mediativo quanto ao modo de execução daquele direito, sobretudo quanto à maneira de cumprimento da obrigação referente ao direito indisponível.

Leila Cuéllar e Egon Bockmann Moreira (2017, p. 15) discorrem muito bem acerca da importância da mediação no atingimento do interesse público, afirmando:

Por isso, é importante reiterar que o interesse público não impede a realização de mediação. Ao contrário: conforme previsto expressamente emvários diplomas legislativos, regulamentares e contratuais, o interessepúblico autoriza, senão determina, a tentativa de composição consensual decontrovérsias envolvendo a Administração Pública – e a mediação é apenasuma das técnicas postas à disposição pelo princípio da legalidade. O queimporta dizer que, dentre os deveres legislativamente imputados aoadministrador público, está aquele de envidar os melhores esforços paraatingir a solução consensual de eventuais conflitos de interesse, inclusive pormeio da mediação.

Dessa maneira, mediar é contribuir para o atingimento do interesse coletivo comunitariamente elaborado, tendo em vista que, conforme explicitado acima, a satisfação do interesse da Administração, dito interesse público, somente se satisfaz quando os administrados são ouvidos, acolhidos e colaboram na criação, manutenção e execução das políticas públicas, de maneira a garantir uma gestão participativa. Quando se é utilizado o instituto da mediação de conflitos envolvendo a Fazenda Pública e os cidadãos, as insatisfações e os anseios da sociedade são

importantes, quando se escutam as pessoas, possibilitando a elas contribuírem para o melhoramento administrativo

Não tem a consensualidade o objetivo de desconstruir os princípios inerentes à finalidade administrativa, mas sim de tornar o processo mais humanitário e compreensivo aos interesses de todos os envolvidos. A relativização dos princípios da finalidade pública, num eventual acordo que a Fazenda Estatal realize com o administrado, será em prol de uma resolutividade mais efetiva e justa, de maneira a possibilitar que as pessoas participem das decisões que interessem a elas diretamente, além de distanciar os processos jurisdicionais e administrativos morosos e desgastantes, que desestimulam a confiança da sociedade nas instituições estatais.

No entanto, a relativização deve estar calcada em previsões normativas devidamente expressas nos regramentos disciplinadores do tema a ser discutido, justamente para não haver possibilidade de utilização particular dos princípios da supremacia e indisponibilidade, de maneira que a adequação, ao caso, não seja da Administração, mas sim da vontade pessoal do agente público.

3 BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PROCESSO DE MEDIAÇÃO NUM