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A RELEVÂNCIA DAS CIDADES PORTUÁRIAS

CAPÍTULO 1. A ECONOMIA GLOBAL, O ESPAÇOS, OS FLUXOS E O CONTEXTO

1.1. A RELEVÂNCIA DAS CIDADES PORTUÁRIAS

Santos (1993) reconhece a existência de duas redes principais dentro de um sistema urbano. A primeira está relacionada à importação/exportação de mercadorias – cuja racionalidade é orientada pela lógica do capitalismo global – e a segunda se refere ao consumo e circulação interna (além das dinâmicas indispensáveis para sua reprodução). Desta forma, o sistema urbano voltado para o exterior seria o principal organizador das grandes vias e meios de transporte. Essa força indutora levaria à construção de estruturas, rotas e dutos dedicados à circulação de mercadorias, como a ferrovia do aço ou a estrada da soja. Se algumas aglomerações eram praticamente exclusivas do subsistema exportador, a rede urbana como um todo seria utilizada indiferentemente por ambos os subsistemas (SANTOS, 1993). Em muitas cidades, como é o caso de Santos, os dois sistemas se encontram, utilizando-se dos mesmos objetos, gerando diferentes sobreposições.

A temática das cidades portuárias, quando pensada a partir de uma abordagem materialista histórica, pode remeter a três dimensões indissociáveis. O porto pode ser estudado como: nó da rede logística e produtiva do capitalismo global, que determina fluxos, lógicas e processos em seu território (hinterland); ator econômico - integrado junto à gestão pública e capital privado e; ente físico – material, representado por seus equipamentos, instalações e estruturas (SALES, 1999).

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estas dimensões aparecem mais ou menos determinantes em cada processo – conforme as características de cada questão. A análise da evolução espaço-temporal do porto evidencia sua ocupação territorial concreta. Todavia, sua expansão e consequente abandono das áreas tradicionalmente ocupadas pelas populações originais são determinadas pelos avanços das técnicas impulsionadas/geradas pelo capitalismo global.

Na análise histórica das diferentes políticas públicas elaboradas para a cidade ou região, fica evidente a dinâmica territorial estabelecida entre o porto e a cidade de Santos. Assim, o Porto se estabelece como propulsor de conflitos advindos, de um lado, do crescimento mal planejado deste expressivo complexo e, de outro, do avanço do sistema urbano outrora profundamente dependente do Estado para a definição dos vetores de expansão e crescimento, mas que revela dinâmicas próprias de construção e reconstrução de suas estruturas.

Para apreender as relações de apropriação, vivência e uso estabelecidas nas áreas entre o porto e a cidade, cabe inicialmente apresentar as definições de “território” e “territorialidades” consideradas neste trabalho. Para HAESBAERT (2004, 2005) e HAESBAERT & LIMONAD (2007) o “território” é uma construção histórica, portanto social, a partir de relações de poder entre sociedade e o espaço geográfico (totalidade). Assim, tem-se o conceito entre relações de poder mais concretas ou até imateriais, variando dentro da dicotomia “funcional” e “simbólico”, sendo certo que esses tipos nunca se manifestam em seu estado puro, isto é, todo território funcional sempre terá sua carga simbólica e vice-versa. O “território funcional” relaciona-se às definições tradicionais, estruturado em um processo claro de dominação e poder, de uso exclusivo e como recurso (dotado de valor de troca). Por outro lado, o “território simbólico” se estabelece em processos de apropriação (material ou imaterial – “vivenciado”), possui múltiplas identidades e, obviamente, dotado de valor simbólico.

A “territorialidade”, além de incorporar uma dimensão funcional de apropriação, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está “intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar” (SACK, 1986 apud HAESBART, 2005).

Tanto o território quanto a territorialidade devem ser entendidos na multiplicidade de suas manifestações, nos poderes neles incorporados pelos diversos atores envolvidos

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(populações, Estado, Porto, indivíduos). Logo, devem-se distinguir os sujeitos que constroem o território e a territorialidade (HAESBAERT, 2004).

Conforme já sinalizado, na atual fase do capitalismo, o capital não se atém apenas à lógica estatal de “controle de áreas” – do território funcional – mas também ao controle dos fluxos e das redes de circulação, produção e informação. Neste sentido, as novas territorialidades observadas são criadas pela força do sistema vigente, sendo o capital o grande articulador de novos territórios, que respondam à complexidade dos atuais tipos e níveis de controle, assim, territorializações mais flexíveis admitem a sobreposição territorial, seja sucessiva ou concomitante (como na sobreposição “encaixada” de territorialidades político-administrativas).

Para se compreender a relevância das cidades portuárias no passado e nos dias atuais é necessária a apropriação do conceito de território e dos processos de formação do espaço nesta relação da cidade com o porto. A expansão territorial portuária está diretamente ligada à evolução de suas técnicas (estruturas, especialização e desenvolvimento tecnológico), assim como à qualificação profissional. Enquanto nó de um sistema global, o Porto é assim o grande vetor de crescimento e desenvolvimento da cidade.

Desta forma, novamente reafirma-se que essa estrutura se caracteriza como o elo entre as redes globais e locais, isto é, entre o sistema econômico internacional (que orienta a demanda global de mercadorias e serviços e moderniza suas técnicas) e a produção de territorialidades no espaço urbano.

Baseando-se na análise comparativa do desenvolvimento de diversos portos europeus (especialmente os britânicos), Bird desenvolveu, nos anos de 1960, um modelo conceitual chamado Anyport (Rodrigue e Slack, 1998 apud ORNELAS, 2008). O autor destaca as três principais fases deste desenvolvimento (de acordo com as demandas do capital global), a saber: fase de assentamento, fase de expansão e a fase de especialização. A figura 1 ilustra conceitualmente este desenvolvimento.

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Figura 1: Modelo de desenvolvimento urbano-portuário de Bird

Fonte: ORNELAS, 2008

O modelo de Bird tem demonstrado aplicabilidade em estudos recentes. Conforme menciona Hoyle (1989), essa lógica enfatiza as mudanças provocadas na relação entre o porto e a cidade, com foco no reordenamento urbano (tratado aqui por meio das territorialidades) das áreas abandonadas ocupadas pelos obsoletos usos portuários. Segundo Monié e Vasconcelos (2012):

O modelo Anyport, elaborado por Bird (1963), buscou identificar e analisar a natureza e a evolução histórica dos vínculos entre funções portuárias e funções urbanas. Trata- se de uma perspectiva histórico-morfológica que, a partir do exemplo dos portos britânicos, pretendeu criar um referencial que provesse uma base comparativa para a compreensão dos mecanismos do desenvolvimento portuário. Em sua essência a reflexão teórica de James Bird entende o espaço portuário como uma sucessão linear e cronológica de fases históricas de desenvolvimento (MONIÉ e VASCONCELOS, 2012, p.4)

Hoyle (1989) vai além e apresenta um modelo da relação porto/cidade no desenvolvimento capitalista, indicado na figura 2.

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Figura 2: Modelo de evolução da relação Porto/Cidade de Hoyle, 1989

Fonte: ORNELAS, 2008

Na etapa I, porto e cidade aparecem unidos, coexistindo em uma estreita interdependência funcional espacial. Na etapa II, III e IV a separação entre o porto e a cidade é progressiva, dado os avanços das técnicas e especialização das atividades. Todavia, na etapa V, existe na cidade um espaço modificado historicamente pelo Porto, aqui tratado como territórios específicos – uma vez que possuem características específicas.

A cidade e o porto de Santos, inseridos dentro da lógica do capitalismo global, também apresentam em sua evolução espaço-temporal a dinâmica proposta por Hoyle (1989). Assim, são identificáveis as quatro primeiras fases de evolução portuária, essenciais para o entendimento das territorialidades existentes na interface porto/cidade: o período colonial, período cafeeiro no início do século XX e a especialização moderna, esta última contemplando a fase III e IV do modelo. Cada um destes períodos produziu

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diferentes espaços urbanos, ocuparam diferentes áreas e marcaram diferentes relações com a cidade, conforme será apresentado no capítulo 2 desta tese.

Ainda segundo Rodrigue e Slack, 1998 apud Ornelas, 2008, a cidade e o porto estão, frequentemente, competindo pelo mesmo espaço, o que tem implicações sobre o crescimento e o desenvolvimento de ambos. Os portos apresentam assim, um jogo complexo de relações, frequentemente conflitantes, com as cidades que os abrigam.

Ornelas, 2008 ressalta que a evolução das relações entre porto e cidade, no tempo e no espaço, foi marcada, segundo vários pesquisadores, por processos de fratura e de aproximação entre eles. No que se refere ao entorno imediato, na maioria das vezes, núcleos urbanos cujas gêneses estão intimamente relacionadas aos portos, ressalta-se o fato de que, durante muito tempo, “o porto e a cidade formaram um sistema baseado na imbricação e na complementaridade de suas diferentes funções para constituir lugares de intercâmbio, de valorização e de produção abertas ao comércio” (BOUBACHA, 1997, p.70 apud ORNELAS 2008).

Monié e Vasconcelos (2012), indicam que a interface cidade-porto pode demonstrar uma dissociação funcional e espacial em parte das cidades portuárias, contudo a intensidade desta interface dependerá das próprias peculiaridades, pois a “natureza e a intensidade das relações nas cidades portuárias são influenciadas pelo contexto regional/nacional específico onde estão inseridas e pelos valores associados à comunidade local. Ou seja, as cidades portuárias estão longe de serem homogêneas ou monolíticas” (MONIÉ e VASCONCELOS, 2012, p.3).