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II. ESTADO DE ARTE

3. SEGURANÇA DO DOENTE E GESTÃO DO RISCO CLÍNICO

3.1. RELEVÂNCIA E CONTEXTO DA SEGURANÇA DO DOENTE

A segurança do doente, “patient safety”, como temática da Saúde em debate por diferentes stakeholders, tem menos de três décadas de evolução. Com início na década de 90, foi com a publicação do “To Err is Human: Building a Safer Health System” e de vários estudos, como o

Harvard Medical Practice Study71,72 que o tema dos EA passou a estar presente nas agendas políticas e nas linhas de investigação de vários países, como os Estados Unidos da América (EUA), a Austrália, o Reino Unido, o Canadá e a Nova Zelândia.

Ao revelar que ocorriam, por ano, nos hospitais americanos, entre 44 e 98 mil mortes, devido a erros nos cuidados de saúde, o Institute of Medicine (IOM) assume que, independentemente do nível de experiência ou do treino adequado, os profissionais de saúde, tal como qualquer outro ser humano, podem cometer erros que de uma forma inconsciente e involuntária afetam os doentes, numa proporção, que os autores assemelharam às perdas obtidas por um avião Jumbo (Boeing 747) a despenhar-se diariamente na América32.

Durante muitos anos, estes danos foram encarados como inevitáveis, contudo, ao provocarem mortalidade e morbilidade significativas, com implicações na qualidade de vida dos doentes, numa proporção maior ou igual do que alguns problemas de saúde pública (tais como a obesidade, acidentes de viação e cancro da mama) exigem ações amplas e concertadas para galvanizar esta temática e controlar o que passou de inevitável para um grave problema de saúde pública.

Apesar de estudos subsequentes indicarem que os números avançados pelo IOM foram subestimados73, não há duvida que este estudo, para além da sua pertinência, conseguiu focar, a atenção de todos os envolvidos na prestação e receção de cuidado de saúde, o que foi impulsionador para o desenvolvimento dos seguintes programas e ações:

- Em maio 2002, na quinquagésima quinta World Health Assembly (WHA) define-se que a Organização Mundial de Saúde (OMS) deve implementar conceitos, normas e práticas globais de SD em conjunto com os países membro da União Europeia (UE) (World Alliance for Patient Safety, 2008a). Para esse efeito, em outubro de 2004, foi criada pela OMS a World Alliance for

Patient Safety (WAPS)74.

- No ano de 2005, a Comissão Europeia – DG SANCO (Directorate General for Health and

Consumer Affairs) em associação com o Conselho da UE, realiza a conferência onde foi criada

a declaração de Luxemburgo sobre SD75. Esta declaração coloca a SD como tema de destaque nas agendas políticas da EU. Neste mesmo ano o programa da WAPS divulga que terá como ação prioritária, a criação de uma classificação internacional com a convergência e uniformização das várias perceções mundiais acerca dos principais problemas relacionados com a SD. A “Estrutura Concetual da Classificação Internacional sobre Segurança do Doente (CISD) foi apresentada em 2009 e é ainda hoje utilizada para categorizar, descrever, comparar e monitorizar, a informação sobre SD. A versão portuguesa desta classificação, surgiu em 2011 e apresenta 48 termos preferenciais e definições de conceito-chave76.

O primeiro desafio global da WAPS foi lançado em 2005 e priorizou/explanou a evidência sobre as infeções associadas aos cuidados de saúde (IACS) em todos os estados membro da OMS. Desenvolveu campanhas para: a higienização das mãos, procedimentos clínicos e cirúrgicos seguros, a segurança do sangue e dos hemoderivados, a administração segura de injetáveis, e a segurança da água, saneamento básico e tratamento de resíduos77.

O seu segundo desafio global, lançado em 2007-2008, pretendeu aumentar os padrões de qualidade nos serviços de saúde de qualquer lugar do mundo contemplando diferentes dimensões, tais como, a prevenção de infeções em ambiente cirúrgico, a anestesia e equipas cirúrgicas seguras74. A face mais visível desta campanha foi a elaboração e aplicação da lista de verificação cirúrgica78 - checklist cirúrgica.

Apesar do caminho percorrido, e reconhecidos os múltiplos avanços e trilhos estabelecidos, o trabalho realizado para tornar os cuidados de saúde mais seguros, tem desde 1999, progredido de uma forma sempre mais lenta do que o desejado. Comparativamente com outros empreendimentos biomédicos relacionados com o combate ao cancro, as doenças cardíacas, a diabetes e a genómica, é evidente que o parco investimento na SD, por parte das entidades politico governamentais foi, e continua a ser, um determinante que urge mudar. Para além deste determinante, é pertinente ressalvar alguns aspetos que, apesar de já terem sido subvalorizados na década de 90, mantêm dos pontos de vista científico e económico/politico/organizacional, melhorias modestas e incrementais:

- As contínuas lacunas no conhecimento em relação à magnitude das questões de segurança e dos danos que ocorrem fora dos hospitais. Wynia e Classen em 2011 identificam estas lacunas como as responsáveis por uma “década perdida”.79 De acordo com o comité de ministros do

Council of Europe (2006) é ainda hoje necessário reconhecer que os mesmos princípios de SD

podem ser aplicados tanto nos cuidados de saúde primários, como nos cuidados secundários e terciários, tal como acontece noutros aspetos dos cuidados de saúde como por exemplo, a promoção da saúde, a prevenção e o tratamento;

- O facto das questões de SD serem muito mais complexas e generalizadas, do que avaliado inicialmente - para além da tão “alarmante” mortalidade, os problemas relacionados com a SD incluem também a morbilidade e outras formas mais sutis de danos, como por exemplo, a perda de dignidade, respeito e confiança;

- O papel essencial dos doentes e seus cuidadores como parceiros em toda e qualquer estratégia ou programa que vise a redução e prevenção dos EA;

- As várias dimensões da qualidade interconectam-se, e abordar uma dimensão pode afetar as outras; como tal, falar de SD sem abordar a eficácia, o foco na família, a oportunidade, a eficiência e a equidade é contraproducente - algumas práticas de segurança podem originar compromissos entre segurança e eficiência79.

A maioria dos peritos considera que a assistência à saúde é hoje mais segura hoje do que foi anteriormente79. Tal convicção é fundamentada por:

- O uso aumentado de assistência baseada em evidência marcou uma melhoria notável na prestação de cuidados;

- As intervenções reduziram com sucesso os EA relacionados com medicamentos e procedimentos cirúrgicos e as infeções hospitalares (o relatório “Parceria para Pacientes”

comprovou uma redução na ordem dos um milhão e 300 mil infeções hospitalares - US DHHS 2014);

- A metodologia inerente à aplicação do código de barras provou reduzir os erros de administração de medicamentos (Poon et al. 2010);

- O treino e trabalho em equipa na cirurgia mostrou reduzir a mortalidade em 50% (Neily et al. 2010);

- O processo de troca de comunicações reduziu (de uma forma estatisticamente significativa p <0,001) os erros médicos em 23% e os EA evitáveis em 30% (Starmer et al. 2014)79.

Segundo Leape e colaboradores71,80 a complexa combinação que envolve o processo, a tecnologia e a interação humana, e que caracteriza o moderno sistema de prestação de cuidados de saúde, deve trazer benefícios significativos para os doentes57. Apesar de ser a base da evolução, inovação e progressão da Medicina (tal como podemos comprovar com o aumento da esperança média de vida e a redução da taxa de mortalidade infantil em Portugal), este moderno sistema de prestação de cuidados, envolve também, e felizmente em muito menor escala, risco de ocorrência de EA que como uma fonte importante de morbilidade, mortalidade e consumo de recursos devem ser analisados e controlados através de sistemas próprios e dedicados81.

Apesar do foco ampliado e algumas indicações de melhoria, cerca de 1 em cada 10 pacientes desenvolve um evento adverso, como uma infeção adquirida durante assistência à saúde, úlceras por pressão, EA relacionado com a medicação evitável ou queda durante a hospitalização12.

Um estudo recente concluiu que aproximadamente uma em cada duas cirurgias apresentou um erro de medicação e/ou um evento medicamentoso adverso82.

Mais de 12 milhões de pacientes por ano enfrentam um erro de diagnóstico na assistência ambulatorial, metade dos quais estima-se ter potencial para causar danos83.

Globalmente há 421 milhões de hospitalizações e aproximadamente 42,7 milhões de eventos adversos por ano84.

Como base da qualidade dos cuidados, a SD deve basear-se numa atitude preventiva e de análise da informação de retorno de vários sistemas de notificação (reclamações e queixas, incidentes e complicações notificados pelos profissionais), sendo que a sua estratégia deverá ser parte integrante do programa de melhoria contínua da qualidade. Em todo este processo propomos que líderes e profissionais de saúde exijam que a SD seja uma meta principal e não negociável79.

A ocorrência de EA nos cuidados de saúde, como acontecimentos inesperados e indesejados, que ocorrem em pessoas vulneráveis, são muitas vezes, sujeitos à mediatização. Neste contexto, valorizam-se as situações negativas, menosprezando os vários momentos/decisões clínicas em que os prestadores de cuidados (de uma forma quase heroica) evitaram estes eventos. Citando Vaz Carneiro, “quando falamos em Eventos Adversos (eventuais consequências dos erros), apesar de quase intuitivamente os associarmos a um “mau travo” com culpa e culpados, na maioria das vezes estamos perante atos cometidos por profissionais de saúde competentes e dedicados que trabalham em sistemas muitas vezes caóticos e

desorganizados e que desde a sua formação académica de base estão muito pouco sensibilizados para a questão da segurança dos doentes”47.

To Err is Human é destacado que “O status quo não é aceitável e não pode mais ser tolerado”

(IOM 2000). Infelizmente, essa afirmação é ainda hoje valida, os doentes continuam a sofrer danos evitáveis durante suas interações com o sistema de assistência à saúde. Apesar de sabermos e reconhecermos que pode nunca ser possível eliminar todos os danos, devido entre outros motivos, às novas tecnologias e aos tratamentos com novos riscos, obter SD nos cuidados de saúde é uma verdadeira jornada contínua. Como participantes ativos desta jornada pretende-se que: estratégias eficazes de prevenção sejam aplicadas para muitos dos danos evitáveis que conhecemos; as organizações de ensino reconheçam a problemática inerente à ocorrência de danos evitáveis e estejam preparadas para identificar problemas e desenvolver ações corretivas79.