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Em se tratando de um programa de pesquisa em andamento, o ISD, enquanto quadro teórico-metodológico, elabora suas reorientações a partir dos resultados das pesquisas que são desenvolvidas com os seus colaboradores. Essa postura traduz seu caráter de ciência do humano (BRONCKART, 2006a) que foge aos princípios estáticos que mantêm a reprodução de abordagens tradicionais sobre o desenvolvimento da pessoa.

No quadro das contribuições do ISD, Bronckart, ao retomar os aportes saussurianos a partir de estudos dos seus manuscritos (BRONCKART; BULEA; BOTA, 2010), esclarece

26 Do original: ils s’accumulent historiquement dans un sous-espace des pré-construits humains.

27 Do original: portera, et les traces du genre choisi, et celles du processus d'adaptation aux particularités de la situation

que os textos-discursos constituem o ambiente de vida dos principais fenômenos línguageiros e que “é no âmbito de sua implementação sincrônica e no curso de sua transmissão histórica que os valores significantes dos signos são construídos permanentemente”28 (BRONCKART,

2011, p. 348-349, grifo do autor). Essa citação revela a noção de língua enquanto prática, fruto da retomada dos postulados mais recentes de Saussure, que mostram a natureza ativa e situada da linguagem na construção dos sentidos na história e na cultura humanas 29. Com base nas trocas de conhecimento entre os aportes do ISD com a semântica textual de Rastier, Tamba-Mecz e Rastier (1987, 1998, 2001a, 2001c), Bronckart (2008a, 2008b) elabora um quadro de atualização, mais especificamente, no que concerne às condições de produção e à infraestrutura dos textos.

Nesta interlocução, o texto é o objeto da discussão da qual sobressaem tanto os pontos em comum quanto os divergentes, de natureza teórico-metodológica. Para ambos, o estudo dos gêneros está articulado com o reconhecimento das atividades humanas, numa perspectiva praxiológica e da dimensão linguística, que participa da semiotização das práticas linguageiras e se manifesta concretamente em textos-discursos.

Os pontos em comum entre esses autores é que eles consideram que o estudo nas ciências da linguagem deveria, num primeiro momento, abordar os textos, apreendendo a sua dimensão enquanto gênero, e que a genericidade é o lugar da manifestação das relações de interdependência entre as propriedades do texto e as atividades sociais, no quadro interacional em que são produzidos (BROCKART, 2008b, p. 39).

Nesta direção, para Rastier, (2001a, p. 230) considerando-se que “todo texto relaciona- se com a língua através de um discurso e com um discurso pela mediação de um gênero, o estudo dos gêneros deveria tornar-se uma tarefa prioritária para a linguística” 30. Bronckart (2008b) está de acordo com este postulado e chama a atenção para o fato de que, quando os textos se desprendem das coerções de sua situação de produção inicial, os valores dos signos e das estruturas que eles organizam adquirem uma verdadeira autonomia (BRONCKART, 2008b, p. 40). Por conseguinte, esta identificação implica destacar nas análises a relevância qualitativa e quantitativa dos mecanismos das propriedades textuais, isto é, os elementos linguístico-discursivos que constituem os enunciados que, por sua vez, deveriam ser

28 Do original: c’est dans le cadre de leur mise en oeuvre synchronique, ainsi que dans le cours de leur transmission historique, que les valeurs signifiantes des signes se construisent, et qu’elles se transforment en permanence

29 Para um estudo aprofundado sobre esta questão consulte BRONCKART, Jean-Paul, BULEA, Ecaterina,

BOTA, Cristian, Le projet de Ferdinand de Saussure, Paris, Genève, Droz, 2010.

30 Do original: tout texte se rattache à la langue par un discours et à un discours par la médiation d’un genre, l’étude des genres doit devenir une tache prioritaire pour la linguistique

analisados enquanto tais, para em seguida, investigar as diferentes relações que eles mantêm com os fatos do entorno ou procedê-la somente após a sua exploração. Isto implica, do mesmo modo, uma abordagem metodológica que perpasse o texto, o seu significado e os polos de sua exterioridade com os quais ele estabelece relação de interdependência (RASTIER, 2001a, p. 41).

Porém, no que tange ao registro praxiológico e linguístico dos textos, Bronckart refuta o posicionamento de Rastier quanto ao uso do termo “discurso” para se referir à produção linguageira, como por exemplo: discurso jurídico, discurso literário, discurso privado, discurso técnico, discurso romanesco, discurso fictício e outros (BRONCKART, 2008a, p. 864). O autor observa que os discursos vão além das esferas da atividade humana e, por esta razão, propõe que este mesmo termo seja substituído por atividades/ações de linguagem que se desenvolvem nas diferentes esferas da atividade prática e que podem adquirir, além dessas esferas e de suas restrições, traços particulares, fictícios, lúdicos e outros.

Além do que acabo de expor, Bronckart rejeita diferenciar “tipos de ações linguageiras” desvinculadas de sua realização em textos que, por sua vez, mobilizam os recursos de uma língua natural. Proceder a essa distinção, previamente aos usos da língua, implicaria a convocação de escolhas não linguísticas dentre elas, as atitudes, os hábitos, os modos de pensamento, o que equivaleria, por conseguinte, a restaurar um tipo de preponderância das orientações sociocognitivas, no que se refere aos domínios da própria textualidade (BRONCKART, 2008a, p. 44‐45).

Ademais, para Bronckart, os discursos são “fenômenos” apreendidos na emergência da textualidade. Eles emanam “do registro praxiológico” (BRONKCART, 2008b, p. 45) e não do registro linguístico, como atesta o estatuto universal ou antropológico de critérios que supostamente discriminam os tipos de discurso (jurídicos, religiosos, privados, públicos, padronizados, lúdicos etc.). Neste posicionamento, ele rejeita, portanto, a concepção de “tipos de discurso" baseada em definições que desconsiderem o papel relevante dos pré-construídos, que são as bases essenciais dos gêneros textuais. A acepção do termo discours empregada pelo autor é aquela oriunda da Arqueologia de Foucault (1969) em sua concretização.

Assim, tomando emprestada a expressão de Rastier (2001a, 2006), Bronckart (2008b) considera que a palavra “discurso”, na acepção postulada por aquele autor, “constitui apenas uma “classificação nominal”, absolutamente perigosa e inútil31 (BRONCKART, 2008b, p.

45). Por essa razão, ele propõe um esquema interativo entre esses dois domínios,

diferentemente do modelo rastieriano. A Figura 1 explicita a reorientação proposta por Bronckart para o entendimento da produção dos textos.

Figura 1 – Modelo praxiológico de produção de texto

Fonte: Adaptado de Bronckart (2008b, p. 45).

Conforme explicita a Figura 1, Bronckart distingue no registro praxiológico duas formas de “intervenção no mundo”, intimamente associadas ou interdependentes, quais sejam: uma de natureza não verbal, que se refere à “atividade prática”, e outra de caráter verbal ou “atividade linguageira”. Ambas correspondem aos significados dos termos “discours” ou “atividade discursiva”, utilizados por Rastier. Nesta perspectiva, uma pessoa ou um grupo de pessoas “produz linguagem” numa dada situação comunicativa, dependendo dos objetivos individuais e finalidades na obtenção de um determinado resultado.

Para Bronckart, a tentativa de uma classificação ou de uma categorização de tipos de atividades linguageiras32 com base no “uso normatizado da língua”, apreendido na exploração

de uma língua e critérios não linguísticos, é ilusória, dada a sua diversidade e heterogeneidade, e apesar da existência de suas várias propriedades, dependendo das circunstâncias (BRONCKART, 2008b, p. 46) contextuais.

32 Na acepção de François Rastier, este termo é denominado tipo de discurso. Bronckart critica esta terminologia, já que não traduz o verdadeiro estatuto dos textos.

Atividade prática Atividadede linguageira

Dimensão praxiológica

Campo prático

Prática situada

Plano linguístico

Ação linguageira Texto empírico

Espaço gnosiológico: representações coletivas e individuais Campo de semiotização dos construtos infraordenados da língua ARQUITEXTOS E MODELOS DE GÊNEROS GÊNERO DE TEXTO

No que se refere à ordem das atividades práticas, depreende-se a noção de campo prático e de prática, conforme as proposições e definições postas por François Rastier (2001a). Dessa forma, a noção de campo prático está relacionada aos subconjuntos organizados de determinadas atividades, como aquelas já elaboradas sócio-historicamente por um dado coletivo social, seguindo os critérios de compartilhamento do trabalho, as formas de organização da sociedade, as formas de atividade cultural, os tipos de trocas interpessoais, etc. E a noção de “prática singular” se relaciona com a ocorrência situada de uma atividade que abrange um desses campos (BRONCKART, 2008a, p. 866). Aqui, o conceito de atividade de linguagem designa o fato de que as pessoas falam ou escrevem em determinadas circunstâncias.

Fazendo ainda uma leitura do esquema de Bronckart (2008b), observa-se que, ao tomar as noções de campo prático e prática em conformidade com Rastier, aquele autor coloca em evidência o registro linguístico que implica, necessariamente, a mobilização de recursos de uma língua natural. As flechas que se entrercruzam entre o campo prático e o campo genérico, de um lado, prática e gênero, de outro, estão relacionadas à complexidade, à mobilidade e aos resultados que se produzem na duração temporal, entre a ordem das práticas, e o curso do tempo dos gêneros textuais, respectivamente. Nessa orientação, os textos empíricos são construídos com base no modelo de um gênero por uma pessoa, no momento em que desenvolve uma ação de linguagem. A situação desta ação é determinada pelos conhecimentos que esta mesma pessoa possui do contexto que compreende o seu agir e dos tipos de relações existentes entre campo prático e campo genérico, estabelecidas pelo coletivo social.

Porém, é relevante ressaltar que, para uma melhor compreensão das atualizações e reorientações propostas no modelo de produção textual apresentado na Figura 1, não se pode perder de vista que a dimensão praxiológica (ordem do plano das práticas sociais) da produção linguageira não ocorre desvinculada dos princípios gnosiológicos – representações, conhecimentos e saberes (cf. BULEA, 2007, como produto das intepretações do mundo semiótico) – de suas manifestações concretas, que são os textos-discursos (plano organizador dos recursos infraordenados da língua). Com base no que foi dito, faz-se necessário uma breve explanação acerca da interface dessas três vertentes que constituem o fenômeno concreto das manifestações da linguagem humana e que se convertem em fontes indispensáveis para análisá-las.

Em uma visão de conjunto, o modelo colocado em destaque auxilia no entendimento do “desenvolvimento do espaço gnosiológico humano”, que constitui os corpora “de diversos tipos

de conhecimentos” que são elaborados no curso da história social e que são “transmitidos de geração em geração” (BRONCKART, 2011, p. 343). Esse espaço, segundo o autor, evocando a semântica saussuriana, é constituído por entidades ideacionais ou psíquicas significativas, porém, ambas emanam de dois espaços com diferentes ancoragens, nas quais se processam a semitiotização dos conhecimentos e saberes quando as pessoas mobilizam os recursos de uma língua natural, quais sejam:

1) a interioridade ou pensamento consciente da pessoa – considerando que as práticas da linguagem são situadas, os significados se constroem, “primeiramente”, através das atividades verbais (textuais/discursivas) que estão disponíveis em seu psiquismo individual, sendo eles, portanto, entidades que dão origem à língua interna que, por sua vez, constitui o substrato da organização das representações individuais, conforme a acepção já posta por Durkheim (1898);

2) os construtos socialmente elaborados podem ser entendidos como sendo o mundo das produções humanas. Nesta ancoragem, os significados estão disponíveis no psiquismo coletivo. É neste espaço social, em meio às relações de poder e grupos sociais, que se compreendem as intervenções e os acordos estabelecidos entre os agentes das comunidades verbais33. Nesse sentido, as normas linguageiras são elaboradas, dando origem à língua

normatizada, que participa das bases fundamentais que constituem as representações coletivas e que Habermas (1987) explora e denomina como sendo os mundos formais do conhecimento (BRONCKART, 2010b, p. 162-163), o mundo da vida.

Esses postulados colocam em relevo a interface entre as representações individuais e as representações coletivas, construídas nas/pelas interações humanas, no processo de elaboração das significações nas práticas linguageiras, produzindo, assim, nos/pelos textos- discursos “conhecimentos” para os indivíduos, e “saberes” para os grupos sociais (BRONCKART, 2010b) Isso posto, esses instrumentos, enquanto entidades semióticas, funcionam como operadores de certo tipo de enquadramento e/ou código implícito, por meio dos quais as obras do passado e do presente são recepcionadas e classificadas pelos agentes verbais (BRONCKART, 1999). Desse modo, os textos/discursos podem ser agrupados por eles, em diferentes séries que, por conseguinte, podem servir-lhes como modelos para agir, como, por exemplo: os textos teóricos e práticos, os textos de PLE (como é o caso da presente pesquisa), as normas, leis, convenções e outros que carregam em si as suas respectivas características genéricas.

Empreendendo uma síntese do que foi discutido nesta seção, é oportuno salientar ainda que o fenômeno da produção dos textos e a sua relevância na vida social estão relacionados à hierarquia das relações existentes entre praxiologia geral (as diversas atividades humanas) e a praxiologia liguageira (as atividades verbais). A esse respeito, Bronckart (1999) chama atenção para fato de que a atividade linguageira está a serviço da atividade humana em geral e funciona como um mecanismo que, ao possibilitar o acordo entre os agentes sociais, implementa as suas práticas verbais (os textos) se organizando em gêneros de textos que são adaptados conforme os propósitos e finalidades no quadro desta ou daquela atividade (BRONCKART, 2010b, p. 162. Grifo meu).

Esses princípios orientam a análise do objeto desta pesquisa, posto que ele se inscreve como resultado de práticas humanas socialmente situadas concretizadas em textos-discursos. Na próxima seção, discuto as condições de produção e o modelo de análise do agir comunicativo nos dispositivos semióticos.

1.6 Interpretação das condições de produção de um texto: funcionamento, modelo de