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CAPÍTULO 3: Cálculo mental

3.2. Memória e representações mentais no cálculo mental

3.2.2. Representações mentais

Representações mentais são representações internas que fazem parte das estrutu- ras cognitivas de um individuo (Cruz, 2002). É através destas representações que damos sentido aos fenómenos e explicamos conceitos e ideias matemáticas. Na perspetiva de Cruz (2002) as representações internas (mentais) e as representações externas (usadas para comunicar ideias) estão diretamente relacionadas em Matemática, uma vez que nos movemos entre ambas para podermos explicar a forma como pensamos, embora por vezes inconscientemente. Como indica a autora, pelo facto das representações mentais ocorrerem na mente de cada individuo e não serem diretamente observáveis, tudo o que podemos dizer sobre elas é baseado em inferências.

A Teoria dos Modelos Mentais de Johnson-Laird (1980,1983/90) pretende explicar processos de conhecimento complexos e, em particular, processos de com- preensão e inferência. Segundo esta teoria existem três tipos de representações mentais: modelos mentais, representações proposicionais e imagens mentais que são fundamen- tais na construção destes processos de pensamento. A diferença entre estas representa- ções mentais reside na sua especificidade e função embora os modelos mentais sejam a base para a criação de imagens e de representações proposicionais. Se estes modelos mentais representam o mundo real com alguma especificidade, são considerados ima- gens, se fazem inferências acerca do mundo real representado por modelos mentais são representações proposicionais. Os termos usados em Psicologia Cognitiva para designar estes “entes mentais” estruturantes do conhecimento varia de teoria para teoria.

De acordo com a Teoria dos Modelos Mentais (Johnson-Laird, 1990), os mode- los mentais são análogos estruturais do mundo real e as imagens são relações percetivas dos modelos a partir de um ponto de vista particular. O conceito de modelo mental, ape- sar de sujeito a diversas interpretações, parece ser aceite e entendido como fruto de representações pessoais e privadas de um individuo (Medeiros, 2001). Schnotz, Baadte, Müller e Rasch (2010), consideram que modelos mentais, enquanto representações men- tais, são criados a partir de conhecimentos prévios e da compreensão de representações

externas, que estão na base da compreensão e construção do conhecimento. É com base nesses conhecimentos que o modelo possui informação sobre atributos e relações que não estão incluídas na imagem ou diagrama que se visualiza. O modelo mental possui informação para além do que vemos. Por exemplo, a compreensão de um texto ou ima- gem não depende apenas de fontes externas (do que realmente observamos) mas tam- bém de conhecimentos prévios que estão na nossa memória a longo termo, enquanto fontes de informação internas.

A propósito da construção de modelos mentais, Dehaene (1997) salienta dois aspetos: a importância de, na resolução de problemas, se compreender o problema para que se possa formar um modelo mental da situação e não ser traído pelo acionar invo- luntário de determinados automatismos mentais e da intuição concreta como ponto de partida para aprendizagens mais formais com compreensão. No que se refere à intuição, o autor dá como exemplo a adição das frações ଵ

ଶ+ ଵ

ଷ. Na sua perspetiva, uma criança que

tem uma imagem intuitiva das frações ଵ

ଶ e ଵ

ଷcomo sendo porções de uma tarte, pode per-

ceber facilmente que o resultado é inferior a 1 uma vez que ଵ

ଷé inferior a ଵ ଶ e ଵ ଶ+ ଵ ଶ dá a

unidade. Se lhe faltar essa intuição, pode imaginar o processo formal de cortar a tarte em 6 partes iguais (reduzir ao mesmo denominador) antes de as reagrupar para assim calcular o resultado exato. Pelo seu lado, uma criança que não tem sequer um significa- do intuitivo de fração e que vê uma fração como sendo dois dígitos separados por uma barra horizontal (modelo abstrato), facilmente cai no típico erro de adicionar numerado- res e denominadores. Como tal, o autor sugere que no ensino e aprendizagem das fra- ções se deve incentivar a criança a usar a sua intuição de quantidade para compreender e construir um reportório de modelos mentais que a ajude a distinguir situações como as apresentadas anteriormente.

Na teoria de Johnson-Laird (1990) os modelos e as proposições são usados no processo de inferência. Os modelos mentais fornecem uma base para a representação de premissas e a sua manipulação torna possível raciocinar sem lógica. A busca de inter- pretações alternativas exige a representação independente das premissas, uma represen- tação que é proposicional na sua forma. Os modelos mentais desempenham um papel central e unificador na representação de objetos, afirmações, assuntos, sequências de eventos, a maneira como o mundo é, e as ações sociais e psicológicas do dia-a-dia. Os modelos mentais permitem ao individuo fazer inferências e previsões para compreender

fenómenos, para decidir como agir e controlar a execução e, acima de tudo, para expe- rienciar eventos através de representações. Permitem igualmente usar a linguagem para criar representações que comparem conhecimentos decorrentes do mundo e relacionam palavras com o mundo por meio de conceções e perceções. O autor refere ainda que a compreensão dos fenómenos se faz com recurso a modelos de trabalho (“working

model” – entre aspas no original) que possuímos desses fenómenos na nossa mente. Se

compreendemos um determinado fenómeno é porque temos uma representação mental que serve como modelo a essa entidade, assim como a função de um relógio serve como modelo para a compreensão da rotação da terra.

A representação proposicional, enquanto representação mental, refere-se à lin- guagem mental de uma proposição que é usada para fazer inferências. Estas proposições podem ser verdadeiras ou falsas e representam afirmações que não se parecem direta- mente com o objeto que representam (não são estruturas análogas), mas são fundamen- tais para estabelecer relações. Uma representação proposicional é o resultado da com- preensão e/ou tradução imediata do discurso para linguagem mental. Uma compreensão mais profunda leva à construção de um modelo mental, que é baseado numa representa- ção proposicional, mas que pode contar com conhecimentos gerais e outras representa- ções relevantes a fim de ir além do que é explicitamente afirmado. Os processos mentais subjacentes a uma representação proposicional são semelhantes aos subjacentes à perce- ção de um objeto ou figura. O mesmo elemento ou parte de um objeto pode ser referido através das diferentes proposições que constituem a descrição do objeto. Uma represen- tação proposicional deve ser capaz de lidar de igual forma com relações espaciais determinadas e indeterminadas (uma vez que a linguagem pode ser vaga), enquanto um modelo mental deve lidar mais com relações determinadas. Os modelos são mais fáceis de relembrar, talvez por serem mais estruturados e elaborados (relações espaciais determinadas). Mas os modelos praticamente não codificam a forma linguística das afirmações a partir das quais foram criados, levando o sujeito a confundir o original com descrições deduzidas. As representações proposicionais são mais difíceis de relem- brar e codificam a forma linguística das afirmações. Os modelos mentais e a representa- ções proposicionais diferem essencialmente na sua função. Enquanto as representações proposicionais são afirmações verdadeiras ou falsas tendo em conta os modelos mentais que o ser humano possui do mundo real (uma vez que o mundo não é percecionado de forma direta), um modelo mental representa um estado de coisas e, consequentemente, a

sua estrutura não é arbitrária como a de uma representação proposicional, mas represen- ta diretamente o mundo.

As imagens mentais são classes especiais de modelos, representam objetos ecor- respondem a uma visão dos modelos, como resultado da perceção ou imaginação, repre- sentando as características percetíveis dos objetos do mundo real. Para Presmeg (1992), uma imagem mental é a construção mental de um objeto que descreve informação visual e espacial. Os processos mentais subjacentes à experiência de uma imagem são semelhantes aos subjacentes à perceção de um objeto ou figura. Uma imagem pode sofrer transformações mentais, tais como rotações ou expansões, que correspondem à transformação física do objeto real que representam. Modelos como imagens são alta- mente específicos. Por exemplo, não é possível formarmos uma imagem geral de um triângulo sem que esta esteja associada a um triângulo específico (equilátero, escaleno, ou isósceles).

Cruz (2002), baseando-se no trabalho de Presmeg (1986, 1992), considera que a atividade matemática envolve diversos tipos de imagens, nomeadamente imagens con- cretas, de padrão, de memória de fórmulas, cinestésicas e dinâmicas. A autora define imagens concretas como “picture-in-the-mind” (aspas no original), ou seja, uma ima- gem fotográfica sem movimento mas com muito detalhe. Imagens padrão representam relações descritas através de um esquema visual-espacial, sem no entanto apresentarem detalhes acerca do objeto que representam. A visualização mental dos movimentos das peças num jogo de xadrez são imagens padrão. As imagens de fórmulas são usadas pelos alunos sempre que estes desejam “ver” (entre aspas no original) uma determinada fórmula na sua mente, imaginando-a escrita no seu caderno ou no quadro. Este tipo de imagem, que pode ser bastante precisa e detalhada, constitui uma forma de recordar informação e são um poderoso meio de representar informação abstrata, embora em alguns casos não reflita a compreensão matemática dos alunos (nem contribua para essa compreensão). As imagens cinestésicas envolvem atividade muscular onde os alunos acompanham com gestos a exteriorização das suas representações internas (e.g., indicar com o dedo a desenho de um círculo dividido em duas partes congruentes). Por fim, as imagens dinâmicas envolvem a capacidade de mover e transformar, mentalmente, ima- gens concretas (e.g., transformar um retângulo que roda sobre um eixo dando origem a um cilindro de revolução). Cruz (2002) acrescenta ainda que uma aprendizagem signifi- cativa está fortemente associada à utilização de imagens mentais onde a visualização

assume um papel importante. Se a Matemática escolar se basear unicamente na aprendi- zagem de regras e procedimentos, isto não permite aos alunos a criação de modelos mentais e de destreza na capacidade de encarar a Matemática de forma relacional e, tal como defende Dehaene (1997), pode inclusivamente ser a causa de alguns dos erros cometidos pelos alunos.

No que se refere à visualização, Duval (1999) acrescenta que esta, em conjunto com as representações são aspetos centrais da compreensão matemática. O autor faz uma distinção entre visão e visualização e acrescenta que a visualização não deve ser reduzida à visão uma vez que “a visualização torna visível tudo o que não é acessível à visão” (p. 13). A visão refere-se à perceção visual e proporciona um acesso direto ao objeto, enquanto a visualização se baseia na produção de uma representação semiótica que não mostra os objetos como eles são, mas sim as relações entre unidades de repre- sentação. A perceção visual refere-se ao tratamento de informação, ao nível cerebral, dos dados que recolhemos através dos olhos e relaciona-se com fenómenos como a for- mação de conceitos e de significados (Dias, 2008). A visualização refere-se a uma ativi- dade cognitiva que é intrinsecamente semiótica, ou seja, nem mental nem física (Duval, 1999). Duval (1999) acrescenta que os termos “imagem mental” ou “representação mental” são ambíguos uma vez que podem ser considerados tanto como uma extensão da perceção visual, como uma mera visualização que origina uma representação mental semiótica, como o que acontece no cálculo mental. Para o autor, o cálculo mental envolve a transição entre dois tipos de imagens mentais: as quase-percetivas (quasi-

percepts) que não são mais do que uma extensão da perceção visual e a interiorização

da visualização semiótica (internalized semiotic visualizations).

Ainda no que se refere a representações mentais, Schnotz e Bannert (2003) e Schnotz et al. (2010), consideram que estas podem ser consideradas sinais uma vez que a exteriorização de um sinal é realizada tendo por base o conhecimento que o indivíduo tem sobre esse sinal. Este conhecimento não é mais do que a representação mental que o indivíduo possui do conteúdo (o referente do sinal). Acrescentam que a compreensão de sinais é um processo que cria representações mentais (estruturas do conhecimento) com base em sinais externos. Esta complementaridade entre representações internas e exter- nas vai ao encontro da perspetiva de Cruz (2002) e, segundo Schnotz et al. (2010), per- mite-nos construir significados.

Schnotz et al. (2010) dividem estas representações em dois tipos, associando a ícones representações descritivas (description) e a símbolos representações representati- vas (depiction). As representações descritivas são símbolos, ou seja, sinais que não têm qualquer semelhança com o seu referente, mas que permitem perceber relações. A lin- guagem natural, falada ou escrita, expressões matemáticas ou fórmulas são representa- ções descritivas. Os autores relacionam-nas com representações proposicionais. As representações representativas são ícones, ou seja, sinais tais como fotografias, dese- nhos, pinturas, mapas ou linhas de um gráfico associados ao seu referente por seme- lhança ou analogia e relacionam-nas com modelos mentais e imagens. Na sua perspeti- va, ambas as representações servem propósitos distintos. Enquanto as representações descritivas são mais gerais, abstratas e poderosas a expressar o conhecimento abstrato, as representativas são mais concretas e específicas, mais seletivas, sendo fundamentais para fazer inferências e caracterizar objetos. Isto acontece porque, quando desenhamos um objeto não desenhamos apenas a sua forma, mas também as suas dimensões e orien- tação. Deste modo, as representações descritivas e representativas complementam-se. Por vezes, uma representação representativa (modelos e imagens) permite a criação de uma representação descritiva (representação proposicional) simples facilitando acesso rápido a um processo simbólico. Os modelos mentais são representações representativas porque são assumidas como quase-objetos internos hipotéticos que sustentam uma ana- logia funcional ou estrutural do objeto que representa com base nessa analogia. O uso destas duas representações é fundamental para o ensino da Matemática, pois são essen- ciais para atingir altos níveis de abstração e importantes para o pensamento criativo, a compreensão, para raciocinar, argumentar e resolver problemas (Schnotz et al., 2010; Otero, 2001). Para Schnotz e Bannert (2003) a construção de modelos mentais implica a transição entre representações descritivas e representativas. Representações proposicio- nais e modelos mentais interagem continuamente através de processos de construção de modelos e modelos de inspeção guiada por esquemas cognitivos.