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CAPÍTULO 2: Números racionais

2.2. Números racionais: Sentido de número e de operação, representações e significados

2.2.1. Sentido de número e sentido de operação

A aprendizagem dos números racionais é complexa dada a diversidade de rela- ções que se verificam, algo que não acontece com os números naturais. Além disso, os números racionais, nas suas diferentes representações (decimal, fração, numeral misto, percentagem), referem-se a quantidades cuja grandeza por vezes não é fácil de com- preender, como é o caso de uma média de “2,5 filhos por família” (Lamon, 2006). Ter uma boa compreensão dos números racionais é mais do que manipular símbolos, é ser capaz de fazer conexões com situações modeladas por esses mesmos símbolos (Lamon, 2006) e ter sentido de número racional. O desenvolvimento do sentido de número racio- nal é um processo lento e gradual, que se inicia antes do ensino formal dos números racionais (McIntosh et al., 1992; Monteiro & Pinto, 2005) e que envolve conexões entre diferentes formas de representação.

Sentido de número

Na perspetiva de McIntosh et al. (1992), ter sentido de número “refere-se ao conhecimento geral que uma pessoa tem acerca de números e das suas operações a par com a capacidade e inclinação para usar esse conhecimento de forma flexível para cons- truir raciocínios matemáticos e desenvolver estratégias úteis para lidar com números e operações” (p. 4). Apesar de considerarem que o sentido de número é difícil de descre- ver mas possível de perceber em ação, estes autores, apresentam um quadro de referên-

cia para um sentido básico de número que sistematizam em três áreas: (i) no conheci- mento e destreza com números, (ii) no conhecimento e destreza com operações e (iii) na aplicação do conhecimento e destreza com números e operações em situações de cálculo. No conhecimento e destreza com números é essencial ter sentido de ordenação dos números, usar múltiplas representações, ter sentido de grandeza absoluta e relativa dos números e possuir um sistema de números de referência. A aquisição do sentido de ordenação envolve a compreensão do sistema de numeração, do sistema decimal de posição ao nível dos números naturais e racionais e também a compreensão dos núme- ros racionais nas suas diferentes representações. Na perspetiva destes autores, a simbo- lização das várias representações de um número implica reflexão onde a composi- ção/decomposição de números permite expressar um número numa forma equivalente que pode facilitar as operações com números racionais. Os números de referência, ou âncoras, assumem também um papel importante no desenvolvimento do sentido de ordenação. Por exemplo, ao considerar a fração , pode-se pensar na sua representação pictórica, na decimal, numa fração equivalente ou ainda usar como referência para se compreender a sua grandeza. A utilização de números de referência é fundamental para se pensar sobre os números, e a sua importância é referida por diversos autores (Behr, Post & Wachsmuth, 1986; Cruz & Spinillo, 2004). Para McIntosh et al. (1992) números de referência são números sem contexto que se desenvolvem a partir das experiências dos alunos e que são úteis para avaliar a grandeza de uma resposta, fazer comparações entre números, ou ainda arredondar números facilitando a sua utilização. Segundo estes autores, as referências são geralmente potências de 20, múltiplos de potências de 10 ou pontos médios como e , embora possam existir outros, desde que sejam com- preendidos pelo aluno. Por exemplo, é importante que o aluno perceba que a soma de dois números de dois algarismos é sempre inferior a 200, ou que 0,87 é inferior a 1 ou que é superior a metade.

Quanto ao desenvolvimento do sentido de grandeza de um número, McIntosh et al. (1992) referem que este é adquirido com o tempo e com experiência Matemática. O trabalho com números ao longo do tempo irá permitir desenvolver “a capacidade de reconhecer o valor relativo de um número ou de uma quantidade relativamente a outro número ou quantidade e a capacidade de detetar o valor geral (ou grandeza) de um dado número ou quantidade” (p. 11).

No conhecimento e destreza com operações importa compreender o efeito das operações, ter a noção das propriedades matemáticas das operações e da relação entre operações. Relativamente ao efeito das operações, esta deve ser compreendida usando vários tipos de números. McIntosh et al. (1992) realçam a vantagem em usar várias representações (modelos) para trabalhar o efeito das operações. A utilização das adições sucessivas, bem como da reta numérica ou da representação retangular em diferentes contextos são boas opções para que o trabalho dos alunos não seja limitado e leve a generalizações erradas, como é o caso de associar a multiplicação a uma operação que dá origem sempre a um número maior ou a divisão a uma operação que dá origem sem- pre a um número menor. Segundo estes autores, as propriedades matemáticas como a propriedade comutativa, associativa e distributiva, têm sido ensinadas como regras for- mais sem que se perceba muito bem qual a sua utilidade nas operações. No caso da comutativa, os alunos memorizam que mas nem sempre fazem uso das suas potencialidades. As propriedades aritméticas são úteis quando aplicadas a proce- dimentos de cálculo de forma a torná-los mais rápidos e eficientes. Consideram ainda que um aluno que, ao calcular primeiro faz e depois , está não só a usar a propriedades comutativa quando troca a ordem dos fatores, mas também a distri- butiva quando decompões 36 em . Alunos que utilizam as propriedades das ope- rações em situações diversas de cálculo manifestam ter sentido de número, apesar de muitas vezes esse uso ser intuitivo. Os alunos devem compreender a utilidade das pro- priedades das operações, em vez de memorizar um conjunto de procedimentos que aca- bam por nunca mobilizar em situações onde estas têm um papel fundamental, como é o caso do cálculo mental.

Na perspetiva de McIntosh et al. (1992), compreender e conhecer as relações entre operações é ter mais ferramentas para pensar e resolver problemas, para relacionar as operações é preciso primeiro compreendê-las. A relação inversa entre operações é uma ferramenta com muito potencial na resolução de problemas. Por exemplo, a opera- ção pode ser vista como e em vez de se utilizar a divisão na sua resolução, usa-se a multiplicação. Os autores consideram que o trabalho com números racionais facilita a exploração e descoberta de novas relações, principalmente entre a multiplicação e a divisão aumentando a possibilidade de surgirem novas estratégias.

Na aplicação do conhecimento e destreza com números e operações em situa-

sentido de número: compreensão entre o contexto e o cálculo a efetuar, escolha da estra- tégia adequada e verificar de forma reflexiva a resposta dada. O enunciado de um pro- blema fornece as pistas necessárias à sua resolução, não só quanto ao tipo de operação mais adequada, mas também relativamente ao tipo de resposta que se pretende, se exato, arredondado ou aproximado. Quanto ao tipo de estratégias a usar na resolução de um problema, ter sentido de número implica ter um leque de estratégias disponíveis para resolver um dado problema. Estas estratégias vão sendo cada vez mais diversas à medi- da que aumenta a complexidade dos números. A possibilidade de seguir vários cami- nhos permite ao aluno repensar a sua resolução, avaliá-la e completá-la ou até substituí- la por outra que lhe pareça mais eficaz. A verificação do resultado deve ser feita em função do problema, pensando sempre se essa resposta faz sentido considerando os dados e o que era pedido inicialmente. Por vezes, os alunos omitem esta verificação de resultados, ou porque aceitam o resultado como um produto acabado e inquestionável, ou porque o resultado não é importante para eles.

Muitos dos aspetos realçados por McIntosh et al. (1992) no seu quadro de refe- rência para a análise do sentido de número, são sublinhados por outros autores. Cruz e Spinillo (2004) sublinham a importância das crianças utilizem números de referência ou âncoras. Na perspetiva das autoras, as crianças que usam âncoras alcançam melhores resultados do que quando adotam estratégias puramente simbólicas. Consideram que a utilização do referencial de metade favorece a quantificação das frações e a compreen- são acerca da adição de frações pois permite o aparecimento de esquemas de equivalên- cia relevantes para esta compreensão. As âncoras podem ser entendidas como um apoio ao raciocínio durante o processo de resolução de situações-problema que envolvam diversos conceitos matemáticos. Referem ainda que os esquemas de equivalência estão relacionados com a habilidade de sistematizar unidades para gerar uma outra unidade equivalente à soma das suas partes, como por exemplo, identificar que equivale a . Para além da referência usam também 1 como apoio em situações envolvendo esti- mativas ou operações com frações uma vez que têm dificuldades em usar simbolismo formal. Behr et al. (1986) acrescentam ainda que alunos que estimam a soma entre números racionais têm mais sucesso quando usam como referência , ou outra frac- ção que considerem importante como ponto de referência, criando assim formas espon- tâneas de equivalência e ordenação de números racionais. Finalmente, na perspetiva de

Cramer, Wybeg e Leavitt (2009) um aluno que tenha sentido de número é reflexivo sobre os números, as operações e os resultados obtidos e apresenta flexibilidade na uti- lização de estratégias de comparação e operação com números. Consideram ainda que ter sentido de número para frações é ser capaz de julgar a grandeza relativa de uma fra- ção usando o que o grupo de trabalho do Rational Number Project (RNP) chama de estratégias informais de ordenação.

Sentido de operação

McIntosh et al. (1992) consideram o sentido de operação como um aspeto do sentido do número, uma vez que as operações realizam-se com números. No entanto, Schifter (1997) e Slavit (1999) referem-se ao sentido de operação separadamente do sentido de número e consideram-no uma ligação entre a Aritmética e a Álgebra.

Na perspetiva de Schifter (1997), desenvolver nos alunos o sentido de operação no âmbito dos números naturais ou racionais é prepará-los para a aprendizagem da álgebra. Para a autora, quando os alunos começam a estudar álgebra aprendem uma nova linguagem, uma forma mais eficiente de representar propriedades, relações, quan- tidades e operações. Para os alunos que já estão familiarizados com as propriedades e relações, o desafio coloca-se sobretudo ao nível da aprendizagem de uma nova simbo- logia. Acrescenta que, se as operações tiverem sentido para os alunos, estes conseguem encontrar uma variedade de estratégias de cálculo apropriados para resolver uma dada questão, alargando a sua compreensão das leis da comutatividade, associatividade e distributividade. Considera ainda que, quando os alunos usam diferentes operações para resolver um problema, isto evidencia ter sentido acerca da forma como as operações se relacionam dentro de uma mesma situação. Por exemplo, se uma criança resolve um problema de adição em que uma das parcelas é desconhecida recorrendo à subtração, ou resolve um problema de divisão tentando encontrar o fator desconhecido, está a desen- volver experiência no trabalho com relações inversas adição/subtração e divi- são/multiplicação e equações equivalentes.

Schifter (1997) considera que uma prática comum dos professores é primeiro apresentar regras de cálculo que os alunos devem memorizar e depois dar-lhes proble- mas e exercícios para aplicarem os conhecimentos. É relativamente fácil encontrar no

problema os números com que se deve operar, mas mais complicado perceber que ope- ração usar. Para ajudar os alunos a ultrapassar esta dificuldade, os professores apelam frequentemente à memorização de diversas palavas chave. Assim, referem que proble- mas cujo enunciado possui a palavra “perder” requerem uma subtração e aqueles cujo enunciado contém a expressão “vezes mais” requerem multiplicação. Muitas vezes tam- bém induzem os alunos a desenvolverem estratégias que passam por selecionar a opera- ção de acordo com a ordem de grandeza dos números, ou testar operações até encontra- rem um resultado que lhes pareça razoável. Para a autora, os alunos devem trabalhar com diferentes tipos de problemas e os professores devem encorajá-los a experimenta- rem e a partilharem estratégias, bem como a procurar novas estratégias de forma a per- ceberem como diferentes problemas podem ser modelados por cada operação e como diferentes operações podem modelar uma mesma situação. A resolução de problemas e exercícios de cálculo proporcionam situações de aprendizagem que favorecem a cons- trução do sentido de operação e da estrutura do sistema de numeração.

Para Slavit (1999) o sentido de operação envolve a habilidade para usar uma operação num conjunto de objetos matemáticos. O sentido de operação envolve conce- ções flexíveis relacionáveis pelo individuo e que passam pelas estruturas da operação subjacentes, o uso da operação, a relação com outras operações matemáticas e estruturas e uma potencial generalização. O autor apresenta dez aspetos que ajudam a clarificar o significado do sentido de operação e que gradualmente vão exigindo do individuo maior compreensão das operações e nível de abstração: (i) conceptualização dos componentes

básicos do processo – envolve a capacidade para decompor a operação nos seus com-

ponentes básicos, encarando-a como um conceito dinâmico onde existe ação; (ii) fami-

liarização com propriedades processáveis pela operação – implica perceber as proprie-

dades subjacentes a cada operação e estar consciente da sua aplicabilidade na operação inversa (e.g., na adição verifica-se a propriedade comutativa, mas não na subtração); (iii) relação com outras operações – para além da relação entre uma operação e a sua inversa, a propriedade distributiva estabelece uma relação entre duas operações; (iv)

facilidade com a variedade de simbologia subjacente a cada operação – a utilização de

diferente simbologia para representar uma mesma operação aumenta a carga cognitiva (e.g., a multiplicação pode ser representada recorrendo a ; (v) familiarização

com os contextos das operações – o contacto com diferentes contextos em que surgem

preciso saber distinguir o conhecimento do contexto da situação em estudo (e.g., juntar) do conhecimento da operação Matemática (e.g., adição); (vi) familiarização com factos

relacionados com as operações – e.g., se então ; (vii) capacidade para usar a operação fora de situações concretas

ou de referência – um aluno que consegue operar com números abstratos ou objetos

mentais tem um avançado sentido de operação; (viii) capacidade para usar a operação

a partir de inputs desconhecidos ou arbitrários – o que requer atos de generalização em

que o foco é a própria operação; (ix) capacidade para relacionar o uso das operações

em diferentes objetos matemáticos (e.g., a adição com material concreto como a base-

dez com os números naturais, frações, decimais, expressões com variáveis, gráficos, vetores e sequências partilham uma relação fundamental, para além do processo, mesmo sendo objetos matemáticos diferentes; e a (x) capacidade de avançar e retroceder entre

os vários aspetos anteriores, uma vez que o sentido de operação envolve uma com-

preensão de vários componentes e propriedades das operações em que a flexibilidade no seu uso permite ao aluno movimentar-se nesta teia de conceitos.

Tal como Schifter (1997) também Slavit (1999) considera que o sentido de ope- ração envolve pensamento algébrico. Assim, considera que o oitavo aspeto indica um marco importante no desenvolvimento do pensamento algébrico uma vez que este passa pela capacidade de generalizar processos aritméticos. Neste caso, a operação não só é usada sem significado ou quantidades imediatas associadas, como também pode ser mentalmente manipulada sem referências associadas a quantidades. O autor considera que ambientes que favoreçam o uso de processos cognitivos associados à generalização fazem uso de aspetos particulares da aritmética das operações.