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A transformação social é definida na doutrina católica progressista pela

“mudança de princípios e da essência do sistema que rege a sociedade. Não se trata de mudanças periféricas ou reformas de alguns aspectos, mas a troca da própria base de sustentação do sistema” (Alguns Princípios e Diretrizes para a Pastoral da Juventude,

1982, p. 37). Desse modo, observamos que a idéia de transformação presente nesse enunciado se refere à mudança da sociedade capitalista para uma sociedade socialista, conforme material didático norteador da prática política dos seguidores dessa doutrina cristã, preconizadora do ideal de “justiça e fraternidade”.

É a partir de sua condição de jovem e trabalhador rural que Marcos e outros jovens da sua época pensavam na transformação da sociedade. A realidade do pequeno agricultor que não contava com uma boa estrutura para o trabalho agrícola, a falta de terra para produzir, a vontade de intervir nos processos eleitorais locais e, como no dizer de Marcos, “poder mandar também no município” podem ser entendidos como os elementos materiais objetivos que convenceram esses jovens sobre a necessidade de transformar a sociedade, a pensarem no caráter desta transformação. A igualdade material – terra para plantar – e jurídica – o direito de concorrer às eleições – emergiu como valor a conquistar na nova sociedade.

A transformação da sociedade na época o que vinha na cabeça era que nós transformasse (...) De nós fazer alguma coisa diferente, não, por exemplo, só um cara lá ter uma trilhadeira, isso era uma coisa, naquela linha lá só o fulano tinha trilhadeira e os outros nenhuma, todo mundo dependia daquele cara! Transformar a sociedade era nós poder mandar também no município e tal, não só um prefeito que

a gente ficava até com medo de chegar perto (Marcos, entrevista

realizada em 14 de outubro de 2005).

Enquanto jovem e pequeno trabalhador! Na verdade as duas coisas, assim, porque que isso passava muito na nossa cabeça: “Porque que tem que ser assim, porque fulano aí não pode ser vereador, porque que tem que ser um cara lá da cidade?!” Aí também passava muito na nossa cabeça que eles vinham ali e iludiam o agricultor pra ser candidato a vereador pra arrecadar voto pra eles! Então essas coisas também nós já percebia! Então nós transformar a sociedade era isso: nós ter uma vida diferente, nós ter direito de mandá, o que mais? Ter terra, é, eu acho que era mais ou menos por aí a situação

(Marcos, entrevista realizada em 14 de outubro de 2005).

Marcos reconhece uma certa ingenuidade, quando diz que eles, jovens, não tinham dimensão das dificuldades envolvidas num processo de transformação social. Quando as discussões aconteciam no âmbito das reuniões, o grupo se sentia motivado, porém no momento da ação direta é que percebiam a extensão do trabalho.

Assim de ver, por exemplo, como jovem de ver todos os meus companheiros de ter uma família, de ter uma casa pra morar, de ter os filhos indo na aula de calçado e coisa assim, de ter o necessário pra comer, de domingo nós podê se reunir (...). São coisas assim que a gente sonhava muito e tal. Ali por aí tinha uma série de coisas bonitas que a gente pensava e tal. Só que nunca se pensava que ia ser tão duro a coisa! Por outro lado, quando a gente participava de uma reunião, a gente ficava motivado, só que, quando ia pra prática, quando nós discutia lá o que nós vamos fazer pra prática e a gente ficava meio arrepiado, às vezes ia pra prática e era muito pior do que nós pensava (Marcos, entrevista realizada em 14 de outubro de

2005).

Ademir relata que inicialmente pensou na transformação da sociedade através de uma revolução ou luta armada, e com urgência.

No primeiro momento a gente pensava que seria via revolução, luta armada. Ah! pensava em que se não tivesse outro jeito a gente iria tomar o poder um dia pela força, que a miséria era tanta, que a pressão era tanta sobre os pobres, que um dia essa classe ia se rebelar e faria revolução! (...) Não tinha idéia, não tinha paciência histórica, de que isso era um processo, que pra chegar até lá levaria tempo (...) Pra nós isso teria que acontecer logo (risos) (Ademir,

entrevista realizada em 18 de outubro de 2005).

Essa compreensão reflete o que nossa análise constatou nas cartilhas de estudo e formação: a predominância, no início dos anos de 1980, de maior radicalidade no discurso da Teologia da Libertação, preconizando a transformação da sociedade pelo questionamento das estruturas da sociedade capitalista, com o entendimento de que esta era constituída por classes antagônicas e que a construção de uma nova sociedade

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precisaria superar esse antagonismo, entendido pela igreja como a relação de exploração do rico opressor para com o pobre oprimido. Para a Teologia da Libertação, “o conceito de classe aparece estreitamente relacionado à opção pelo pobre e, neste caso existe o esforço de politizar a pobreza, emprestando-lhe uma conotação de classe e buscando fugir do tratamento histórico dado ao pobre pela igreja: objeto de caridade (...)” (MARTINS, 2000. p. 87).

Mais tarde, conforme relata Ademir, sua geração “foi aprendendo” que a transformação social através de uma revolução, “um sonho apressado”, não era a melhor escolha e em seu lugar ganhou sentido a idéia de “paciência histórica”, definida por ele como um processo de transformação que se faz aos poucos, por etapas e por via institucional. Assim, a idéia de revolução saía de cena para dar espaço ao processo de mudança pela política instituída. Como na construção de uma casa, onde num primeiro momento se erguem os pilares, na política institucional se elege os representantes para o parlamento, prefeituras, sindicatos: iniciava-se a afirmação da democracia representativa.

Depois, com o tempo, a gente foi aprendendo um pouco mais essa questão da paciência histórica. De ir construindo aos poucos e que a questão era não de uma revolução, mas a idéia de que a sociedade era que nem uma casa e a gente ia tomando os pilares dela e quando via colocando alguns, elegendo seus representantes no parlamento, assumindo as prefeituras, ganhando os sindicatos, mudando a postura da questão sindical e construindo lideranças e que isso ia acontecer depois, que isso era um processo e já morreu, quando a gente entendendo essas coisas ia o sonho, a idéia da luta armada já foi ficando mais de lado, até porque já começavam a entender também que isso era um risco pra vida da gente, então de que esse sonho meio apressado poderia acabar logo aí e que o ideal seria construir uma sociedade aos poucos (Ademir, entrevista realizada em

18 de outubro de 2005).

Na visão de Cláudio, a mudança na sociedade que a juventude deveria promover era a conquista de igualdade de direitos, entendida como acesso à saúde, aposentadoria de um salário mínimo para mulheres agricultoras aos 55 anos e para os homens agricultores aos 60 anos, a subsídios para a agricultura. Cláudio relata experiências marcantes em sua prática política: a participação na Constituinte no ano de 1986, que resultou na Constituição de 1988, quando ajudou a organizar um abaixo- assinado reivindicando aposentadoria com salário integral para as mulheres agricultoras, e mais tarde ao fazer greve de fome com o objetivo de chamar a atenção dos

governantes para a relevância desta aposentadoria e dos demais direitos para os trabalhadores do campo.

A transformação social era ter mais igualdade. O povo mais pobre precisava de mais saúde, não tinha. Só tinha saúde quem tinha dinheiro pra pagar. O povo precisava de aposentadoria, que na época a gente defendia muito e era o homem se aposentava com 65 anos o agricultor e a mulher agricultora com 70 anos e era meio salário mínimo. Então foi assim, foi uma luta muito grande desde a época da CPT, depois no ano da constituinte foi assim, foram milhões de assinaturas pedindo aposentadoria com salário integral. A Constituinte aprovou, só que na época o Collor não pagava aí (...), eu fiz quatro dias de greve de fome, justamente pra reivindicar essa aposentadoria e direitos dos agricultores, uma política agrícola mais voltada aos agricultores. Então foram assim naqueles anos, assim uns anos difíceis (...) Então (...) a igualdade foi uma bandeira que a gente defendeu e assumiu e hasteou essa bandeira e continua defendendo isso: mais igualdade. Então com certeza a transformação social se baseava na igualdade de direitos à saúde, enfim e tudo aquilo que na época o povo não tinha e que hoje a gente pode dizer que temos muitos direitos ainda a conquistar, mas já conquistamos muitos e com a organização (Cláudio, entrevista realizada em 15 de

outubro de 2005).

Cláudio conta que foi a conquista de igualdade de direitos que o motivou a entrar na carreira política, pois, quando percebeu que “a solução e a decisão sempre é política” se sentiu mais convicto ao ingresso na política partidária. Hoje, prefeito, adulto, percebe os limites legais que lhe são impostos para administrar.

(...) a gente tem limites, existe a lei de responsabilidade fiscal que você tem que cumprir, tem coisas que você gostaria de fazer que não pode porque a lei não deixa e enfim era isso (Cláudio, entrevista

realizada em 15 de outubro de 2005).

Darci partilha da idéia da transformação social através da política partidária, como os “ex-jovens” Cláudio, Ademir, Marcos. Ele relata um curso de formação com Frei Beto como professor, onde lhes foi ensinado que a construção de uma sociedade nova passaria pela ocupação dos cristãos nos espaços institucionais da política.

Que todos pudessem ter uma casa, um transporte, um lazer, uma comida e saúde, educação. Então (...) as esferas hoje pra chegar lá então eram: os sindicatos, os movimentos sociais, eram as pastorais, e ele (Frei Beto) citava cinco, seis esferas, e uma era a política, por que a política? Porque é na política partidária, assim na câmara, aqui na câmara, no congresso nacional, é na assembléia, no senado, que se fazem as leis e as leis decidem, decidem tudo, tudo é decidido, organizado, a sociedade caminha em cima de leis e quem faz as leis é a vida política. Então ele colocava assim, que a vida política é um espaço importante que o cristão, que o cristão tem que perseguir, tem que entrar pra decidir, pra mudar a sociedade, pra ajudar a

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botar pessoas conscientes, ligadas nesses movimentos sociais, pra poder realmente criarem leis justas pra você mudar essa realidade

(Darci, entrevista realizada em 20 de outubro de 2005).

Darci também revela fatores que nos dão uma idéia da configuração da agricultura regional na década de 1980, do processo de modernização pelo qual os agricultores vinham passando e o endividamento pelos altos juros bancários quando tentavam acompanhar as mudanças instauradas pelo projeto modernizador. Essa situação estranha e, portanto, inadmissível à juventude se tornava um elemento pedagógico de aproximação entre a geração juvenil e os adultos: os jovens lhes ensinavam a necessidade de organização social, como etapa importante na promoção da mudança da sociedade.

Nós pensávamos na organização familiar, na organização social, na garantia futura de emprego, trabalho na própria agricultura. Porque existia toda uma evolução, evolução na agricultura e a gente tinha que acompanhar, mas a gente, pra acompanhar, tinha que ter dinheiro. Ter dinheiro porque a nossa sociedade, os bancos naquela época cobravam muito caro, tudo o que se pegava no banco normalmente muitos agricultores tiveram que ir pra cidade por causa do banco. Então a reflexão que passava interna era de que os bancos tavam se aproveitando da situação, os bancos tavam lucrando em cima dos agricultores. A gente fazia os encontros e passava esses valores pros próprios pais que às vezes não tinha essa visão, que nasceram assim, nunca tiveram informação de nada, a gente como buscava informação fora e procurava passar pra família, pra comunidade, pras próprias lideranças (Darci, entrevista

realizada em 20 de outubro de 2005).

No depoimento de Andréia, a transformação adquire o sentido de liberdade e igualdade como condições necessárias à conquista de novos valores comportamentais na construção de uma sociedade nova.

Ah! A gente tinha valores assim de igualdade, de liberdade, da gente poder se expressar, de viver com mais liberdade até o próprio amor, a sexualidade, e a sociedade era extremamente inversa a isso! Os próprios valores sociais de mais igualdade, então nós queria transformar o mundo e se deparava com tudo contra a gente

(Andréia, entrevista realizada em 20 de outubro de 2005).

Essa “expectativa” de liberdade foi construída pelo projeto religioso na difusão de signos que instrumentalizaram a juventude para construir a “nova sociedade”, abstração pouco compreendida pelos jovens, embora possuidora de um forte apelo mobilizador. O jovem se apoderava da “idéia”, mas não tinha a dimensão prática do processo, não se capacitava à crítica diante da forte cooptação do projeto modernizador.

Destacamos no depoimento de Antônio os aparatos simbólicos produzidos pela Teologia da Libertação. Esse conjunto de símbolos tinha como objetivo instrumentalizar a juventude para a incorporação da idéia da construção de “uma nova civilização”, como lembra o entrevistado. Observa também que “construir a nova sociedade” se tornou um lugar comum, mas não havia a real compreensão do que representava essa mudança. Ele destaca que foi somente no movimento estudantil, com o estudo de “pensadores socialistas”, que aprofundou a compreensão do que seria uma efetiva transformação da sociedade.

A gente falava na Teologia da Libertação em construir uma nova civilização, então era um marco que a gente usava, um chavão, a gente usava muito “construir uma nova sociedade”. E aí junto com isso veio um emaranhado de suportes, né, então os cantos tinha a adaptação da Asa Branca, que era “Quando eu Vejo Tanta Terra”, Espinheira, aí tinha a Classe Roceira também, então tinha esse conjunto de cantos que a gente levou e incorporou isso na juventude. E aí a gente começou a fazer um questionamento: “mas o que é essa nova sociedade que a gente quer?” E essa nova sociedade ela veio, pra mim, no entendimento. Na verdade esse entendimento começou a ocorrer quando eu fui me aprofundar um pouco mais no Movimento Estudantil, porque aí no ME tinha leitura, por exemplo, dos pensadores socialistas nessa questão de ter um pouco mais de conteúdo (Antônio, entrevista realizada em 04 de janeiro de 2006).

A idéia de “transformação social” possibilitou à geração em análise a consciência de que a sociedade é organizada em classes sociais, competindo aos jovens intervir politicamente nessa estrutura. A rejeição ao capitalismo era difundida através da leitura dos teólogos marxistas, que, fundamentados neste referencial teórico, pregavam uma sociedade sem classes, a ser alcançada a partir da “transformação social”. Ao jovem, cabia o papel de identificação das causas dos problemas da sociedade capitalista para alavancar uma mudança social efetiva.

Percebemos que o discurso e a ação por uma nova sociedade não estavam isentos dos valores religiosos cristãos, que essa luta foi motivada pela utopia da conquista do “reino de Deus na terra”, sem opressores e oprimidos. Inicialmente almejada via processo revolucionário, a transformação social se mostrou um objetivo frágil, que foi substituído pela conquista de direitos e cidadania, resultando em um projeto reformador e de manutenção da sociedade capitalista.

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