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Não é recente a atenção dada à juventude no interior da Igreja Católica. O trabalho de Suely Aparecida Martins (2000) indica que a criação da Ação Católica em 1935 pode ser considerada o início de uma ação organizada dessa igreja junto à juventude; antes disso não havia uma metodologia específica nos trabalhos desenvolvidos com jovens. A Ação Católica adotou para sua organização o modelo italiano, que tinha a idade e o sexo como critérios para a formação de grupos. Essa organização se dividiu em quatro grupos fundamentais, dos quais dois compreendiam a juventude masculina e a juventude feminina, sendo que os outros dois se destinavam aos leigos adultos também divididos entre homens e mulheres. A partir de 1937 com a expansão dessa entidade por várias dioceses, surgiu a necessidade de promoção de

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eventos como as Semanas Nacionais, para a discussão de temas, propostas e decisões, no processo de continuidade da Ação Católica. A preocupação com a formação espiritual e moral e com a atuação política de seus membros, bem como os perigos que representavam a modernidade e o comunismo, foram temas tratados nessas semanas. No final da década de 1950 e início de 1960, se explicitou o processo de renovação no interior da Igreja Católica. Esse processo significou a substituição do modelo de estruturação italiano pelos modelos belga e francês (MARTINS, 2000). Segundo a autora, nos referidos modelos seguidos pela igreja,

os jovens deveriam evangelizar a partir do próprio meio social em que estavam inseridos.(...) Desta forma, o critério central para a divisão de grupos, além da idade e do sexo, era o meio específico do jovem. Neste sentido, escola, fábrica, universidade, mundo rural, etc. foram tomados como critérios para a divisão dos grupos. Estruturaram-se a Juventude Agrária Católica (JAC), a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Independente Católica (JIC), a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC) (MARTINS, 2000. p. 09).

A partir da mudança de modelo, a ACE adotou uma nova metodologia no trabalho com a juventude da Igreja Católica no Brasil e, principalmente no final da década de 1950 e início da década de 1960, tornaram-se perceptíveis os sinais de mudanças oriundas do pensamento católico francês, tendo como principal difusor Alceu Amoroso Lima. Foi utilizado o método ver-julgar-agir10, que objetivava uma formação

com especial atenção à ação embasada no humanismo cristão. Dessa maneira, “muitos jovens da ACE foram aos poucos abandonando o discurso espiritualizante e moralizante, voltado para a conversão individual, presente na década de 1950, e assumindo uma prática social engajada, que questionava as estruturas sociais e levava ao compromisso político” (MARTINS, 2000. p. 09). Foi através da JUC e da JEC que o processo de mudança começou a se fortalecer, espalhando-se em seguida para os demais segmentos.

Embora a influência francesa no catolicismo brasileiro datasse do final do século XIX, foi somente no final da década de 1950 que ela adquiriu um tom radical. As

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Seguindo Wanderley (1984, p. 385-386), Martins observa : “o Ver era enfocado a partir de cada meio específico (...). O Julgar baseava-se na soma de uma pluralidade de orientações doutrinárias, reflexões teológicas, interpretações da realidade segundo pensadores de múltiplas concepções (...). O Agir se abria num leque enorme. Desde serviços aos meios, campanhas de festas religiosas, solidariedade com companheiros, publicações, etc., até um compromisso mais efetivo nos organismos de classe (sindicatos operários e rurais, e estudantis – grêmios e uniões)”(MARTINS, 2000, p. 09).

reflexões de intelectuais católicos franceses, como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Pe. Lebret, buscavam justificar a entrada dos cristãos na história pela necessidade de exercer oposição às estruturas sociais, provocando uma mudança rumo a uma sociedade justa e fraterna (MARTINS, 2000). Conforme afirma a autora,

Tais reflexões, aliadas às diversas tendências teóricas que buscavam explicações para o desenvolvimento do país, bem como formas para o seu desenvolvimento por vias nacionalistas e que tinham seu núcleo central nos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), foram importantes para a leitura que muitos jovens da ACE, especialmente da JUC, fizeram da realidade social daquele período e que aos poucos foi sendo mesclada com conceitos marxistas. Foi o encontro das ciências sociais com a teologia humanista (MARTINS, 2000, p. 10).

O contexto era o dos 50 anos em 5 – o Brasil de JK – incentivado pelos Estados Unidos, com crescente industrialização e abertura ao capital estrangeiro, com a construção de Brasília, eventos que apontavam para o desenvolvimento do país segundo o modelo dos países desenvolvidos adotado no governo sob a presidência de Juscelino Kubischeck (1955-1960). Acreditava-se que os problemas relativos à miséria urbana e à má distribuição de terras seriam superados pelo desenvolvimento econômico, mas, no final da década de 1950, esse modelo econômico e a subjacente ideologia do nacional- desenvolvimentismo dão mostras de esgotamento. Diversos setores da população afetados pela queda do salário e pelo aumento da inflação se articulavam segundo seus interesses, e o Brasil vivenciava novas experiências: as Ligas Camponesas exigem reforma agrária; os sindicatos rurais se expandiram por todo o país; surgem greves e protestos de várias categorias de trabalhadores; estudantes se mobilizam através de suas entidades UNE (União Nacional dos Estudantes) e UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas) pela redemocratização do ensino e apóiam as lutas populares; aparecem várias experiências de educação popular, experiências de alfabetização de jovens e adultos segundo as concepções educacionais de Paulo Freire e a Campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler” (MARTINS, 2000). A autora salienta que,

Coincidentemente no período em que a ACE, através das JUC, iniciava um processo intenso de politização, inserindo-se na realidade social brasileira, assumia o Vaticano o papa João XXIII. Intitulado como o papa dos pobres, este pontífice teve um impacto muito grande sobre a igreja do Brasil. Pelas atitudes e encíclicas sociais, assinalou para o diálogo com a modernidade e para uma igreja aberta ao mundo e aos seus problemas. Esta perspectiva foi materializada principalmente pelo Concílio do Vaticano II (...). No entanto, as proposições trazidas pelo Vaticano II tiveram maior impacto sobre a

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igreja no Brasil num período posterior, com o desabrochar da igreja popular e da Teologia da Libertação (MARTINS, 2000, p. 12).

No decorrer da história das organizações de jovens da Igreja Católica, a JUC se destacou no campo político, tendo grande inserção na sociedade. Engajando-se no trabalho popular e no meio estudantil universitário, enfrentou conflitos com a hierarquia católica, por questionar a obediência a esta, teve aproximação com os comunistas, rompeu com o tradicionalismo da instituição.

À medida que a JUC avançava na análise da realidade brasileira e na sua prática política, ia desenvolvendo uma cultura político-religiosa própria que reunia o humanismo cristão com diversas orientações políticas-ideológicas, entre elas o marxismo, e que desenhava o socialismo como alternativa ao capitalismo dependente e ao subdesenvolvimento do país. Neste período, fica visível o conflito entre a JUC e a hierarquia eclesiástica. A JUC acabou por romper com a igreja, constituindo-se como um grupo de cristãos autônomos, que chegou ao seu fim em 1968 (MARTINS, 2000, p. 22).

Ancorada no método ver, julgar e agir, objetivava “inserir o jovem na sua realidade específica, para que daí refletisse sobre ela a partir de bases cristãs e voltasse a tal realidade com o fim de mudá-la” (MARTINS, 2000, p. 22). A autora destaca que o contato com o meio universitário possibilitou à JUC o encontro com linhas teóricas e políticas divergentes da cristã, que foram essenciais para o seu processo de politização, pois o meio universitário trazia questões que extrapolavam o universo estudantil.

O método utilizado pela JUC de forma eficiente “acabou sendo incorporado pela Teologia da Libertação e pela igreja do Brasil nas décadas posteriores. Assim, também foi absorvida pela PJ nos anos 80, sendo destaque em seus documentos e textos de formação” (MARTINS, 2000, p. 22).

Além da Juventude Universitária Católica (JUC), outras organizações de jovens emergiram no interior da igreja e tiveram suas trajetórias, atuaram em diversos espaços políticos e enfrentaram problemas similares: a Juventude Operária Católica, a Juventude Agrária Católica, a Juventude Estudantil e a Juventude Independente Católica. No entanto, conforme expõe Martins,

No ano de 1966, a CNBB declarava extintas a JUC, a JEC e a JIC, ajudando a pôr fim também a JAC, que se extinguiu em 1968. A única experiência que sobreviveu foi a JOC, entretanto com pouca expressividade nos dias de hoje. Nesse processo de desmantelamento da ACE, a igreja não agiu sozinha. A repressão política instalada pela ditadura militar ajudou a enfraquecer este movimento, pois implantou

um clima de terror e perseguição a todos que ousassem desafiar o regime (MARTINS, 2000, p. 23).

Apesar da repressão que se instalava dentro e fora da igreja, foi nesse mesmo período que emergiram posturas renovadoras no interior da Igreja Católica, sobretudo no Vaticano. “Questões como a participação social dos leigos, o diálogo com a modernidade e a defesa e promoção dos direitos humanos foram colocados na agenda católica como objetivos centrais para a ação dos cristãos no mundo contemporâneo” (MARTINS, 2000, p. 23). Daí surgiram a II Conferência Episcopal Latino-Americano, em Medellin, que, apoiada no método ver, julgar e agir, informou o compromisso da igreja latino-americana com a transformação social, convocando os cristãos a lutar a favor dos pobres e oprimidos. No Brasil a igreja evitava críticas à repressão e à política econômica promovida pelo governo, porém uma nova configuração já se fazia presente e indicava que a igreja emergente assumiria posição a favor dos excluídos (MARTINS, 2000). Para Martins, os fatores que contribuíram para isso foram:

O movimento interno de renovação que vinha da própria igreja , seja através do Vaticano II e da ação de uma minoria de bispos brasileiros preocupados com a realidade social brasileira, seja através do próprio laicato, primeiro a partir da Ação Católica especializada e depois principalmente através das CEBs, conjugando fé e vida, fé e política. Soma-se a estes fatores a própria conjuntura social do período. Esta dinâmica interna da Igreja Católica aliada à própria realidade social ajudaram a gestar a Teologia da Libertação (MARTINS, 2000, p. 24).

O Golpe Militar de 1964, com todas as suas conseqüências, não conseguiu reprimir as manifestações que eclodiam nos diversos setores da sociedade, e a Igreja Católica também não ignorou este processo, aliando-se às classes populares. “Na década de 1970 assistiu-se a um avanço da igreja popular e da Teologia da Libertação, conquistando a adesão de parte significativa do episcopado e uma certa hegemonia dentro da CNBB. Desta forma, foi se consolidando como árdua defensora (...) dos setores marginalizados da sociedade” (MARTINS, 2000, p. 25).

Para Martins (2000), depois do fim da ACE, a Igreja Católica conviveu com um certo período de “silêncio” em relação à juventude. Um silêncio imposto pelos quartéis e pelo medo do episcopado, ainda não recuperado dos rumos tomados pela ACE e da repressão que os seus militantes vinham sofrendo. Desse contexto surgiram novos movimentos de jovens católicos na década de 1970, caracterizados pela emotividade e pelo personalismo. Entre os que mais se destacaram, Martins aponta o Treinamento de Liderança Cristã (TLC), o Shalon, Caminhada, bem como aqueles de

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origem internacional com carismas próprios, como o Movimento Geração Nova, Schoenstatt e a Renovação Carismática Católica (RCC), que surgiu no Brasil em 1972. Esses movimentos se assemelhavam pelo caráter apolítico e pela ênfase dada ao espiritual, psicológico e moral e, dessa forma, não representavam perigo ou resistência ao regime militar; se tornaram conhecidos como movimentos de encontro, por realizarem eventos em fins de semana objetivando a conversão do jovem. Baseados em concepções tradicionais, enfatizavam a dualidade entre o Reino de Deus e o mundo, dicotomizando a relação entre fé e vida.

Paralelamente a esses encontros - que geralmente duravam três dias – surgiram outros grupos de jovens que tinham como ponto de referência a paróquia para desenvolverem seus trabalhos de organização, cujos membros por vezes possuíam um histórico de atuação política, mas se encontravam limitados pela repressão. Conforme aponta DICK (1999), citado por MARTINS

Devido à repressão militar, as reuniões em diretórios acadêmicos, grêmios e sindicatos estiveram proibidas e muitos jovens encontraram nas paróquias um lugar seguro para suas reuniões, formando assim vários grupos de paróquia. Além do que, no Nordeste houve uma reação contra a entrada de movimentos de

encontro, vinda principalmente através de ex-agentes da ACE, que

procuraram realizar trabalhos especializados de juventude com

estudantes, com jovens do meio rural e do meio popular urbano

(DICK, 1999 apud MARTINS 2000, p. 34).

Segundo Martins (2000), o surgimento de pastorais específicas, como a Pastoral Universitária e a Pastoral da Juventude do Meio Popular - PJMP (fundadas respectivamente em Lins – SP, em 1977, e em Olinda, em 1979), em conjunto com outras experiências que procuravam se diferenciar daquelas realizadas pelos movimentos de encontro – principalmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul –, fortaleceu as iniciativas de articulação da juventude católica nacional para reunir os grupos de jovens, também denominados grupos de base, organizados a partir do espaço eclesial, e aqueles originados de meios específicos como escola, universidade, rural, etc. Aqueles grupos ligados ao espaço eclesial se denominaram PJ Geral, e os que se organizavam a partir de seu meio formaram a PJ Específica. À soma dos dois se denominou PJ.

Em 1983 foi realizado o IV Encontro Nacional da Juventude no qual se buscou efetivar a articulação nacional, através de encontros inter-regionais que apresentaram duas propostas de organização para a PJ: “uma que vinha do Sul e

propunha a organização por meios específicos (...), ou seja, a escola, universidade, bairro. A outra vinha do Nordeste, apostando na organização por classes sociais (...). O fortalecimento da PJ por classes acabou prevalecendo” (MARTINS, 2000, p. 35). Para a autora, durante a década de 1980 esse foi o debate interno da Pastoral da Juventude, que se valeu de conceitos marxistas.

Assim, a PJ aos poucos foi conquistando e constituindo espaço de atuação para os jovens católicos, que não se mostraram alheios às questões políticas do Brasil, sobretudo na década de 1980.

Em 1986, a CNBB publicou seu estudo nº 44, intitulado Pastoral da

Juventude no Brasil. Dessa maneira a PJ foi forjando, segundo os

critérios da CNBB, um certo protagonismo como pastoral de jovens, coordenada e articulada pelos jovens, visando à evangelização de outros jovens e à transformação social, baseando-se nas próprias diretrizes da igreja brasileira, que pelo menos até a década de 1980, tinha muita influência da Teologia da Libertação. Além do que esta década foi rica em experiências e mobilizações populares que buscavam restabelecer a democracia no país (...). O que é considerado o início da articulação da PJ aconteceu, portanto, em terreno propício para o incentivo à participação política e social (MARTINS, 2000, p. 37).