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Ação rescisória contra sentença fundada em norma posteriormente considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal

AÇÃO RESCISÓRIA POR VIOLAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

4.10. Ação rescisória contra sentença fundada em norma posteriormente considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal

A decisão de inconstitucionalidade, por possuir efeitos erga omnes, vinculantes e ex tunc444, alcança todas as situações jurídicas anteriores, constituídas sob a égide da lei inconstitucional. Apenas para ilustrar, leia-se a lição de Teori Albino Zavascki:

“As decisões de mérito da Corte Suprema nessas ações de controle concentrado têm como resultado, conforme o caso, (a) a exclusão, do ordenamento jurídico, da norma declarada inconstitucional, ou (b) a sua manutenção, se reconhecida a sua constitucionalidade. Em qualquer caso, a decisão tem eficácia erga omnes e efeito vinculante. Disso resulta que as situações jurídicas anteriores individuais formadas em sentido contrário terão de se ajustar ao referido comando superior”445.

No entanto, a desconstituição das situações jurídicas pretéritas não se dá automaticamente. A decisão declaratória de inconstitucionalidade não tem o condão de, instantaneamente, modificar as situações jurídicas anteriores contrárias a ela. A ação direta de inconstitucionalidade é um processo objetivo, que tem por objeto a tutela da Constituição Federal. Não tem a finalidade de satisfazer direitos subjetivos ou acertar situações jurídicas individuais. Decretada a inconstitucionalidade da lei, caberá a cada indivíduo promover as medidas, judiciais ou não, para ajustar a sua situação jurídica à decisão proferida no controle concentrado. Mais uma vez, Teori Albino Zavascki reforça esse entendimento:

“Assim considerado o termo a quo do efeito vinculante, explica-se por que as decisões tomadas em ações de controle concentrado não produzem a automática desconstituição das relações jurídicas anteriores a elas contrárias. Para que se desfaçam tais relações, notadamente quando afirmadas por sentença judicial, é insuficiente a sentença proferida no âmbito do controle abstrato. [...] Por outro lado, a natureza objetiva do processo, no qual não figuram partes nem se levam em consideração

444 Salvo se não for aplicado o art. 27 da Lei 9.868/1999, que restringe os efeitos da decisão de

inconstitucionalidade a partir do trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado.

445 Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.

142 relações jurídicas ou direitos subjetivos, importa a conseqüência de inviabilizar, nele mesmo, em regra, a adoção de providências de natureza executiva.

[...] Publicada no Diário Oficial da União, a sentença de mérito na ação de controle concentrado assume eficácia erga omnes, cabendo aos interessados promover o ajustamento das situações anteriores com ela incompatíveis”446.

Na hipótese de a situação jurídica anterior, regulada pela norma inconstitucional, ser uma sentença transitada em julgado, a parte interessada tem direito de desconstituí-la. A coisa julgada não impede que os efeitos da decisão no controle concentrado atinjam a sentença que aplicou a lei inconstitucional.

Apesar de algumas vozes ainda resistentes447, admite-se a desconstituição da sentença transitada em julgado que aplicou norma posteriormente considerada inconstitucional, como informa Luís Roberto Barroso: “Como conseqüência, vem-se admitindo ação rescisória tendo por objeto decisão que, mesmo transitada em julgado, haja aplicado lei que veio posteriormente a ser considerada inconstitucional”448.

446 Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 55/56. 447 Vide José Carlos Barbosa Moreira, opinando sobre a possibilidade da decisão declaratória de

constitucionalidade atingir sentença transitada em julgado que deixou de aplicar a lei por considerá-la inconstitucional: “O art. 102, nº I, §2º, da Carta Federal (acrescentado pela Emenda nº 3) estatui, é certo, que a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em ação declaratória de constitucionalidade, tem ‘efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário’. Não faz, porém, remontar ao passado semelhante efeito. A redação adotada aponta no sentido oposto. Os órgãos judiciais ficam vinculados a observar o que haja decidido a Suprema Corte: não lhes será lícito contrariar o pronunciamento desta, para deixar de aplicar, por inconstitucionalidade, a lei declarada compatível com a Constituição. Mas isso apenas daí em diante! Não se concebe vínculo que obrigasse um órgão judicial a observar decisão ainda não proferida” (Direito aplicado II: pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 238/239).

Mais recente, leia-se o que pensa Leonardo Greco: “Com essas premissas, parece-me claro que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo Supremo Tribunal Federal não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional” (“Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior”. Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Fredie Didier Jr. (org.). 2 ed. rev. e ampl. Salvador: Juspodium, 2006, p. 228/229).

A Constituição Portuguesa, por exemplo, veda que as coisas julgadas anteriores sejam atingidas pela declaração de inconstitucionalidade: “Artigo 282.º (Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade): 1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. 2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última. 3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. 4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2”.

143 Visto que a declaração de inconstitucionalidade afeta a sentença transitada em julgado anterior que aplicou a norma considerada inconstitucional, resta saber qual é o meio processual para impugnar essa sentença.

Teresa Arruda Alvim Wambier e Tiago Figueiredo Gonçalves entendem que a sentença fundada em norma posteriormente considerada inconstitucional é passível de ação declaratória de inexistência.

Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier, há, nesse caso, impossibilidade jurídica do pedido, sendo certo que, para a autora, a ausência de uma das condições da ação acarreta a inexistência da sentença de mérito, tornando essa sentença sujeita à ação declaratória de inexistência:

“Portanto, segundo o que nos parece, seria rigorosamente desnecessária a propositura da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação seria juridicamente inexistente, pois que baseada em ‘lei’ que não é lei (‘lei’ inexistente). [...] O fundamento para a ação declaratória de inexistência seria a ausência de uma das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Para nós, a possibilidade de impugnação das sentenças de mérito proferidas apesar de ausentes as condições da ação não fica adstrita ao prazo do art. 495 do CPC”449. Para Tiago Figueiredo Gonçalves, justifica-se a ação declaratória de inexistência porque “uma sentença que se baseia numa ‘lei’ declarada inconstitucional é uma sentença sem dispositivo – que é um de seus requisitos essenciais. Por isso que é também uma ‘sentença’ inexistente”450.

Antes da elaboração deste trabalho, publiquei estudo, em que também sustentava o cabimento da ação declaratória de inexistência, mas por fundamentos distintos daqueles apresentados pelos autores acima referidos. Entendia que a decisão de inconstitucionalidade acarreta a inexistência da norma. E, se a norma, após a decretação de inconstitucionalidade, é inexistente, também o é a sentença que a aplicou:

“A escolha da medida judicial cabível depende da natureza jurídica da lei inconstitucional. Aqueles que advogam a tese da nulidade defendem o uso da ação rescisória, já que essa nulidade, por estar prevista no art. 485, inciso V, do CPC, sobrevive à coisa julgada. Os que sustentam a tese da inexistência jurídica acreditam que o meio adequado constitui a ação declaratória de inexistência.

449 O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 43. 450 “Ação declaratória de inexistência de ‘sentença’ baseada em ‘lei’ posteriormente declarada

inconstitucional”. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e de outros meios de impugnação às decisões

144 A meu ver, cabe ação declaratória de inexistência por um raciocínio muito simples, que quase chega a ser prosaico. Conforme a clássica definição chiovendiana, jurisdição é a atuação da vontade concreta da lei451. Se a lei inconstitucional é inexistente juridicamente, não houve jurisdição no processo em que transitou em julgado a sentença que aplicou essa lei. Não houve jurisdição exatamente porque a lei aplicada não existe. Se inexistiu jurisdição, também não houve processo, sentença e coisa julgada. Daí se conclui que a sentença fundada em lei posteriormente considerada inconstitucional é inexistente juridicamente e não faz coisa julgada. É como se tudo que se apoiasse na lei inexistente juridicamente o fosse também.

A inexistência jurídica da lei contamina a própria sentença que a aplicou. Essa sentença é um nada jurídico, pois aplicou uma não-lei e, por isso, deve ser considerada, até por coerência, uma não-sentença.

Sendo inexistente a sentença que aplicou lei posteriormente declarada inconstitucional, o único meio adequado para impugná-la constitui a ação declaratória de inexistência”452.

Hoje, tenho outro entendimento. Com efeito, não se pode entender que a norma inconstitucional é inexistente, porque o art. 27 da Lei 9.868/1999 permite ao Supremo Tribunal Federal, com base em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos a partir da decisão de inconstitucionalidade ou de outro momento a ser fixado.

Por conseguinte, o vício de inconstitucionalidade não pode ser tido como de inexistência, porquanto, se assim fosse, a decisão que o reconhece jamais poderia ter eficácia ex nunc, na forma do referido art. 27. Não vejo como compatibilizar o entendimento de que a norma inconstitucional é inexistente com a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade.

Assim, o vício de inconstitucionalidade gera a invalidade da norma, porque a sentença constitutiva de invalidade, ao contrário da sentença declaratória de inexistência, pode ter eficácia ex tunc ou ex nunc453. E, se a norma inconstitucional é inválida, o meio para desconstituir a sentença que a aplicou constitui, sem dúvida alguma, a ação rescisória.

451 “Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade

concreta da lei [...]” (Instituições de direito processual civil, v. 2. Campinas: Bookseller, 1998, p. 8).

452 “Impugnação de sentença transitada em julgado fundada em lei posteriormente declarada

inconstitucional”. Revisitando a teoria do fato jurídico: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. Fredie Didier Jr., Marcos Ehrhardt Jr. (org.). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 586-587.

453 Sobre a eficácia ex tunc ou ex nunc da sentença constitutiva, veja-se estudo de Carlos Alberto Alvaro

de Oliveira, “Sentença constitutiva e volta ao estado anterior”. Instituto dos Advogados do Rio Grande

145 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido do cabimento, nesse caso, da rescisória:

“Processual civil. Ação rescisória. Art. 485, V, CPC. Declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, de preceito legal no qual se louvara o acórdão rescindendo.

Cabível a desconstituição, pela via rescisória, de decisão com trânsito em julgado que deixa de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional ou a aplica por tê-la como de acordo com a Carta Magna.

Ação procedente”454.

O Supremo Tribunal Federal não adota posicionamento diferente:

“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança. Aplicação da Súmula 430. Recurso desprovido”455.

O fundamento dessa rescisória é, por óbvio, o inciso V do art. 485 do CPC, porque, se aplicou norma posteriormente considerada inconstitucional, a sentença infringiu, justamente, o dispositivo da Constituição incompatível com aquela norma.

Sendo o meio de impugnação cabível a ação rescisória, questão importante a ser resolvido refere-se ao fato de o Supremo decretar a inconstitucionalidade da norma após dois anos do trânsito em julgado da sentença.

Entendo que, nesse caso, se deve contar o prazo da ação rescisória, a partir do dia em que a decisão de inconstitucionalidade foi publicada, já que, somente com essa decisão, nasce para a parte o direito de propor a rescisória456.

Para os que sustentam que, nessa hipótese, o prazo se conta do trânsito em julgado, cria-se uma situação injusta, pois, antes da decisão de inconstitucionalidade, a parte não pode ajuizar para a ação rescisória. O motivo só surge com a decisão de inconstitucionalidade. Não é razoável iniciar a contagem do prazo para a parte exercer um direito, sem que ela tenha ainda adquirido esse direito.

Assim, somente se deve contar o prazo da ação rescisória após a publicação da decisão de inconstitucionalidade, porque, antes desse momento, a parte

454 STJ, Terceira Seção, ação rescisória nº 870/PE, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. em 13.12.1999. 455 STF, Terceira Turma, recurso ordinário em mandado de segurança nº 17.976/SP, rel. Min. Amaral

Santos, j. em 13.09.1968.

456 No mesmo sentido, mas para outras hipóteses, veja-se a posição de Teresa Arruda Alvim Wambier e

José Miguel Garcia Medina, O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 204-209.

146 não pode pedir a rescisão da sentença que a aplicou norma posteriormente considerada inconstitucional.

4.11. Ação rescisória contra sentença que considerou inconstitucional norma