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Uma posição mais ousada

AÇÃO RESCISÓRIA POR VIOLAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

4.13. Súmula 343 do STF 1 Posicionamentos

4.13.3. Uma posição mais ousada

Vou mais além. Suponha-se que uma sentença aplicou a norma com base em interpretação pacífica na jurisprudência. Após o trânsito em julgado, a jurisprudência muda e consagra interpretação completamente contrária à adotada pela sentença. Será cabível ação rescisória contra essa sentença, por violação da norma jurídica, para aplicar a nova interpretação da norma?

Entendo que sim.

Como já exposto, o comando do inciso V do art. 485 do CPC dirige-se ao órgão julgador da rescisória, e somente ele tem a competência para verificar, segundo a jurisprudência vigente, se houve infração da norma.

A existência de entendimento pacífico ou de entendimento divergente a respeito da norma no momento da sentença rescindenda não impede que o órgão julgador da rescisória faça o controle da subsunção da norma, conforme os parâmetros da jurisprudência atual.

Como a norma tem um significado mínimo, dentro do qual não podem variar os sentidos, a parte pode buscar, no Judiciário, enquanto o ordenamento lhe abrir oportunidades, a interpretação do dispositivo legal que reputa correta.

166 Como diz Teresa Arruda Alvim Wambier, enquanto houver instrumentos processuais à disposição das partes, sendo um deles a ação rescisória do inciso V, o Judiciário pode e deve buscar a melhor interpretação da norma, até para possibilitar o refinamento da qualidade da prestação jurisdicional:

“Se não é do Judiciário a tarefa de buscar a melhor interpretação da lei, de quem seria?

No parágrafo precedente servimo-nos propositadamente da expressão

buscar no lugar de encontrar porque, ainda que exista a possibilidade,

em tese, de que a melhor solução não seja encontrada, nada autoriza, nada justifica, que se deixe de buscá-la. Buscar a melhor solução significa fazer uso dos instrumento que estão à disposição dos jurisdicionados, instrumentos criados justamente com o objetivo de possibilitar o refinamento da qualidade da prestação jurisdicional”506. Ademais, a mudança de jurisprudência sempre deve ser encarada como um aprimoramento do sistema. Ao mudarem de posição quanto à interpretação da norma, os tribunais sinalizam que o atual entendimento é correto e deve ser aplicado a todos os casos. Leia-se o que diz Teresa Arruda Alvim Wambier:

“[...] quando a jurisprudência muda é como se os Tribunais dissessem: ‘tal é o entendimento que se deve ter, por ser o correto, a respeito de certa regra de direito’. Se tal entendimento é considerado correto, hoje, que sentido tem a manutenção de situações que foram decididas segundo entendimento que seria, então, equivocado?

Quando a lei muda, quer-se que certas situações, às quais a lei diz respeito, sejam resolvidas diferentemente. Mas quando se altera a interpretação que se deva a certo texto de lei, o que se pode dizer é que se terá evoluído, acertado finalmente”507.

Em igual sentido, posiciona-se Pontes de Miranda:

“Às vezes, a jurisprudência muda entre o proferimento da sentença e o último dia do biênio. Outras vezes, depois de proposta a ação. De modo que, no momento em que se vai julgar a ação rescisória, o direito já se acha diferentemente revelado. Dois acórdãos do Tribunal de Relação do Rio de Janeiro (8 de junho de 1926 e 1.º de junho de 1928) pretenderam que, sendo outra a revelação ao tempo da sentença rescindenda, não pode ser julgada procedente a ação rescisória. Estavam em erro. Não só é rescindível tal sentença, como o são quaisquer outras sentenças que tenham revelado erradamente o direito. A nova jurisprudência faz

506 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2008, p. 199.

507 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

167 suscetíveis de rescisão a todas e só o biênio pode cobri-las contra o exame rescindente”508.

Se não aplicar o entendimento vigente da jurisprudência, apenas porque a sentença rescindenda se baseou em interpretação da norma à época pacífica na jurisprudência, o órgão julgador desrespeitará o princípio da segurança jurídica. O princípio da segurança jurídica não significa apenas estabilidade das situações jurídicas passadas, ou de que tudo deva ficar como está, mas, principalmente, a previsibilidade das soluções judiciais. Novamente, vale conferir o pensamento de Teresa Arruda Alvim Wambier:

“Entendemos que, nesse contexto que vimos nos referindo, ao longo deste item, um dos valores que não pode ser desprezado é a segurança, tomada esta expressão no sentido de previsibilidade. Trata-se de um fenômeno que produz tranquilidade e serenidade no espírito das pessoas, independentemente daquilo que se garanta como provável de ocorrer como valor significativo.

Não se trata, pois, da segurança da expectativa de que tudo deva ficar

como está”509.

De acordo com a melhor compreensão do princípio da legalidade, sustentada por Teresa Arruda Alvim Wambier, o juiz não está vinculado apenas à lei, mas à lei, doutrina e jurisprudência, ou, como se preferir, ao sistema jurídico:

“Diríamos que a vinculação do juiz à lei se amolda por meio da doutrina e da jurisprudência, como se estes dois elementos desempenhassem uma função de ‘engate lógico’ entre a lei e os fatos.

[...]

Rigorosamente, pois, a vinculação que existe é entre o juiz, sua decisão e o sistema jurídico, e não à letra da lei, propriamente dita”510.

Assim, a solução a ser empregada pelo juiz deve ser extraída do “ethos dominante na comunidade jurídica”511, ou seja, do que o sistema jurídico entende atualmente como norma.

508 Tratado da ação rescisória das sentenças e de outras decisões. 5 ed. corrig. e aum. Rio de Janeiro:

Forense, 1976, p. 276.

509 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2008, p. 58.

510 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2008, p. 101-102.

511 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

168 Parece-me que os inconvenientes do problema aqui abordado não se relacionam com a insegurança que surgirá, caso seja possível rescindir a sentença, para aplicar a interpretação do dispositivo legal adotada pela jurisprudência vigente. Se o inciso V do art. 485 do CPC prescreve que o controle da incidência da norma pode ser feito após o trânsito em julgado da sentença, o órgão julgador da rescisória deve empregar a norma conforme o sentido que a jurisprudência atual lhe atribui.

Os inconvenientes, a meu ver, decorrem da facilidade com que nossos tribunais, inclusive os superiores, modificam a jurisprudência, sem que haja nenhum fato social a reclamar essa mudança.

Hoje em dia no Brasil, a jurisprudência parece mudar conforme a composição do tribunal. Modificada a composição, os novos membros, por diferentes motivações, veem necessidade de impor seu próprio convencimento, em desfavor da posição consolidada no tribunal, que, não raras vezes, está vigorando há bastante tempo. O magistrado brasileiro parece não atentar que sua convicção científica, em regra, deve ceder vez à orientação já firmada pelo tribunal e aplicada a um sem- número de casos. Em outros ordenamentos processuais, sobretudo de países do sistema da common law, a modificação da jurisprudência configura-se uma verdadeira exceção, como ressalta Teresa Arruda Alvim Wambier:

“Segundo nos parece, todavia, o que está realmente equivocado é haver estas viradas. Segundo informa Tercio Sampaio Ferraz Jr., em países em que a regra é a do stare decisis, EUA e Inglaterra, tanto a Corte Suprema quando a House of Lords só muito excepcionalmente alteram seus precedentes”512.

José Rogério Cruz e Tucci,em obra específica sobre o tema, ressalta os problemas provocados pela mudança de jurisprudência:

“Na verdade, a incerteza que nasce do advento de um novo precedente em substituição à orientação consolidada, acarreta um custo social e econômico elevadíssimo, mesmo nos sistemas que não conhecem força vinculante da jurisprudência, uma vez que a situação de incerteza gerada pela mudança somente poderá ser eliminada depois de um período relativamente considerável para que seja consolidada a nova regula”513.

512 Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. reform. e atual. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2008, p. 541.

169 Lamentavelmente, a jurisprudência brasileira não é dos tribunais, mas dos magistrados que a compõem. Essa situação, sem dúvida nenhuma, contribuir para propagar insegurança jurídica, porque torna as decisões dos tribunais completamente imprevisíveis514.

Logo, se a jurisprudência sobre a interpretação do dispositivo legal muda, e existe meio previsto em lei para fazer o controle da aplicação da norma, às partes deve ser garantido o direito de buscar a incidência do novo entendimento, sob pena de, como muito bem disse Teresa Arruda Alvim Wambier, se prestigiar o “acaso”. Afinal, só o “acaso” explica a impossibilidade de a parte buscar, por meio de rescisória, a aplicação do novo entendimento da jurisprudência, só porque, ao tempo da sentença rescindenda, a interpretação era em outro sentido.

Portanto, se o ordenamento processual prevê o controle da aplicação da norma por meio de ação rescisória, a parte tem o direito de buscar, no Judiciário, a aplicação da nova interpretação do dispositivo legal, pouco importando se a sentença rescindenda foi proferida à época em que a interpretação era em sentido diverso ou controvertida nos tribunais.

4.14. A ação rescisória por violação da norma jurídica como instrumento de