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PARTE II – DIMENSÃO PASSIVA DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA

3. Da pluralidade passiva

3.3. Da pluralidade a posteriori

3.3.1. Responsabilidade tributária: Noção e enquadramento dogmático

Contrariamente ao que seria desejável, o legislador tributário não se preocupou em delimitar com precisão o conceito da figura do responsável tributário175, limitando-

174 Relembramos que exceciona-se, aqui, a sucessão tributária.

175Em termos semânticos, o sentido amplo e corrente de “responsabilidade” pode, certamente, considerar-se como decorrente da

locução verbal “rei spondere”, ou seja da ordem das relações sociais, económicas e jurídicas em que as pessoas eram, ou ficavam vinculadas a um certo procedimento de “dare” ou de “facere”, respondendo assim pelos efeitos ou consequências jurídicas de uma certa coisa (res) ou evento – declaração, facto ou situação – conexa ou decorrente da afetação de direitos ou interesses legítimos da pessoa a quem o vínculo ia respeitar; o que terá constituído a base essencial da figura jurídica de “obrigação” com a natureza e amplitude que hoje lhe cabe, Cfr. FAVEIRO, Vítor, Op. Cit., pág. 567.

63 se a adotar, sem definir o objeto, a ampla e geral conceção de vinculação ao pagamento da prestação tributária pelo contribuinte ou terceiros, mormente responsáveis. Nestes termos e para o efeito, a indagação conceptual da responsabilidade tributária passará pela tentativa de alcançar o seu enquadramento dogmático no seio da relação tributária.

Para tanto, estabelecemos como ponto de partida analítico a tese patrimonial emergente da dogmática civil alemã da segunda metade do século XIX que sustentava a distinção entre devedor (Shuld) e responsável (Haftung)176.

Esta tese previa duas relações jurídicas distintas e autónomas:

Por um lado, a relação jurídica de dívida, que atribuía ao sujeito passivo da mesma o dever de realizar ou adotar um determinado comportamento de satisfação in

debitum. E por outro lado, como objeto de uma relação jurídica distinta, atribuível ao

próprio devedor ou pessoa distinta, a responsabilidade a que estaria sujeito o património de uma pessoa, sujeita ao poder coativo do credor (tributário)177178.

Esta ideia permite-nos conceber, em termos teóricos e conceptuais, a atribuição do débito tributário e a responsabilidade a pessoas distintas, de tal modo que é possível sujeitar como garantia do débito tributário o património de uma pessoa distinta do devedor originário, o qual responderá subsidiariamente pelo pagamento de uma dívida alheia.

A autonomização jurídica, semântica e conceptual que a palavra “responsabilidade” opera entre débito próprio e responsabilidade encontra paralelo em situações triviais da relação jurídica privatística, onde também surgem sujeitos cujos patrimónios garantem e respondem por dívidas próprias de outras pessoas, em relação aos quais não se verificaram os pressupostos do debitum, mas que estão sujeitas ao poder coativo do credor dessas pessoas. É o caso, por exemplo, do instituto jurídico da fiança, em que o fiador não será devedor a título próprio e originário, na medida em que

176 Embora cientes que esta tese tenha sido preterida em favor da unidade teleológica da obrigação civil e, apesar de atualmente

não assumir entre nós relevo jurídico assinalável, não deixa de prestar um importante subsídio teórico à conceptualização e compreensão das realidades ora em questão, pelo que lhe dedicaremos algumas palavras.

177 Cfr. ORTIZ, Diego Gonzalez, La Figura Del Responsable Tributario En El Derecho Español, Universitat De Valencia, 2003, pág. 18 e

seguintes.

64 não contratou a dívida, mas um mero responsável patrimonial acessório pelo cumprimento da obrigação assumida pela pessoa que contraiu a dívida, o devedor principal, originário e direto.

No mesmo sentido, a respeito da noção de fiança entende Menezes Leitão179, “o

fiador tem um dever de prestar perante o credor, ainda que a sua função seja apenas a de assegurar a realização do pagamento pelo devedor. Daí que, se o fiador efetuar a prestação, tal seja considerado como um caso de prestação por um terceiro que garantiu a obrigação”. Nesta ordem de ideias, de acordo com teoria da Shuld und Haftung, o

fiador não é objeto da relação debitória, mas da relação de responsabilidade, pois este não deve, mas apenas responde distinguindo-se, assim, a fiança da assunção cumulativa de dívida180. Situação que como a seguir veremos é equiparável à responsabilidade

tributária.

Falamos, então, de responsável tributário, em sentido restrito, quando uma terceira pessoa, física ou jurídica, é chamada ao cumprimento de obrigações tributárias de outrem. Trata-se de uma pessoa que sem deter uma relação direta e pessoal com o facto tributário, será, ainda assim, sujeita às obrigações tributárias que originariamente recaiam sob a pessoa que detém a relação de pessoalidade direta com o facto tributário – o contribuinte direto ou sujeito passivo originário.

A lei admite, assim, o cumprimento da obrigação tributária por um terceiro, em relação ao qual não se encontram verificados os pressupostos do facto tributário e cuja capacidade tributária, não é neste particular tributada181. Na verdade, o princípio da

capacidade tributária é respeitado, mas quanto ao devedor originário, ou seja, o

quantum tributário não é aferido em função da capacidade contributiva do terceiro

(responsável) a quem é exigida a respetiva prestação (também ele sujeito passivo por força do artigo 18.º da LGT), mas sim ao devedor originário relapso. É porque assim sucede que, a título excecional, o ordenamento jurídico-tributário admite subsidiariamente a incidência tributária sobre terceiro alheio ao índice de capacidade contributiva ou a qualquer relação direta com o facto tributário, porquanto apenas lhe

179Cfr. MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles, Direito das Obrigações Volume II, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 318. 180Ibidem e Cfr. notas bibliográficas em rodapé indicadas pelo autor.

65 cumpre o dever funcional de afiançar o crédito tributário, mediante o preenchimento de determinado quadro legal.

Igual sentido se advoga na doutrina espanhola que define como primeira nota caracterizadora do instituto da responsabilidade o facto de o responsável ser um terceiro que se coloca junto ao sujeito passivo ou devedor principal do tributo, mas, diferentemente do substituto, não ocupa o seu lugar, apenas se adiciona a ele como como devedor, de maneira que haverão dois devedores tributários, embora por motivos diferentes e com regimes jurídicos diferenciados182.

Por aqui se destrinça esta figura dos devedores solidários analisados em transato, na medida que a responsabilidade tributária não pressupõe um nexo de coparticipação ou adesão à realização do facto tributário.

De salientar é que, contrariamente ao que sucede na substituição tributária, a esfera patrimonial do responsável sofre o desfalque em que se traduz a prestação tributária em falha pelo devedor originário.

Posto isto e cientes que incorremos em repetição, entendemos que a responsabilidade tributária em sentido técnico-jurídico diz respeito a dívidas de outrem, pelo que, em nosso ver, erradamente se andará a utilizar o termo “responsabilidade” no sentido de fazer referência à responsabilidade pelo pagamento de dívidas próprias e pessoais do contribuinte. A este respeito, constatam-se confundibilidades jurídico- semânticas nos textos legais, quando se mistura o significado natural que o termo adquire no contexto sócio-económico da vida humana, com o significado técnico- jurídico próprio de que se reveste a instituição jurídica da responsabilidade tributária. É o que parece suceder com o número 2 do artigo 22.º da LGT, ao preceituar que: “para

além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas”. Descuidadamente, o legislador mescla

semânticas distintas via utilização de igual expressão linguística. É o caso da

responsabilidade originária do sujeito passivo e da responsabilidade tributária de outras

66 pessoas. A este propósito, é precioso importar o raciocínio de Ana Paula Dourado, na medida em que nos traduz com exatidão o problema: “embora possa ser utilizada pelo

legislador em muitos sentidos, a responsabilidade tributária deve ser distinguida das situações em que implicam uma obrigação fiscal por dívidas próprias, de forma que o responsável distingue-se do devedor originário, e a designação deve ser utilizada no Direito Fiscal em sentido próprio”183. Cabe, assim, ao intérprete diferenciar entre a

responsabilidade (por dívidas de outrem) e débitos tributários próprios. Ora, no caso sob estudo, a expressão “responsabilidade” ínsita no número dois daquele artigo deve ser diferenciada em dois momentos normativos distintos aos quais correspondem sentidos e alcance diferentes: a expressão “responsabilidade” adquire, num primeiro momento, um sentido impróprio, na medida em que se refere à responsabilidade pelo pagamento do débito próprio e pessoal do devedor originário, à relação de débito (Shuld); já num segundo momento infere-se ao instituto jurídico da responsabilidade tributária, à responsabilidade em sentido próprio ou técnico-jurídico, enquanto conjunto de normas legais, que visa estabelecer e disciplinar o regime de responsabilidade por dívidas tributárias de outrem, ou seja, a previsão e regulamentação da componente acessória de respondência Haftung da obligatio – a relação de obrigação de garantia de pagamento184. É especificamente deste último

sentido de responsabilidade que cuidaremos.

Em reforço desta tese, Joaquim Freitas da Rocha185 ensina que “apenas existe

responsabilidade tributária em sentido próprio quando se está a falar de dívidas de outrem, o que significa que não será correto utilizar-se o termo “responsabilidade” em referência a dívidas próprias”. Casalta Nabais186 apresenta idêntica dissociação

semântica, segundo o autor no âmbito da responsabilidade tributária, importa distinguir entre responsabilidade em sentido amplo por dívidas próprias e alheias187 e

responsabilidade em sentido restrito por dívidas alheias, pese embora (e infelizmente a

183 Cfr. DOURADO, Ana Paula, Substituição e Responsabilidade Tributária, Ciência e Técnica Fiscal n.º 391, Centro de Estudos Fiscais,

Direção-Geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças, Lisboa, 1998, pág. 51.

184Em entendimento oposto V. MARTINEZ, Soares, Op. Cit, pág. 228.

185 Cfr. ROCHA, Joaquim Freitas da, Apontamentos De Direito Tributário (A Relação Jurídica Tributária), 2012, Braga, AEDUM, pág.

34 e 35.

186 Cfr. NABAIS, Casalta, Op. Cit., pág. 260.

187 Conceito amplo que labora no direito civilístico, a ponto de se conceber a responsabilidade por dívidas próprias, p.e.:

responsabilidade do devedor pela falta de cumprimento da obrigação (artigo 798.º do CC); do gestor de negócios (artigo 466.º do CC); do locador (artigo 1032.º e 1033.º do CC), do mandatário (artigo 1183.º do CC), entre muitas outras situações.

67 nosso ver), o autor entendeu a solidariedade tributária como regime exclusivo de responsabilidade por dívidas alheias, o que não adere à realidade como já tivemos oportunidade de estudar.

Por razões naturais o presente trabalho ocupar-se-á da responsabilidade em sentido próprio, por ser aquela que no sentido institucional mais releva para a relação jurídica tributária, mormente para a responsabilidade do gestor de bens ou direitos prevista no artigo 27.º da LGT.

Sinteticamente, podemos conceptualizar a responsabilidade tributária quando alguém, por força da lei e só por sua determinação, é chamado ao cumprimento de obrigações tributárias alheias, isto é, pela dívida tributária de outra pessoa ou entidade - o contribuinte direto ou como refere Joaquim Freitas da Rocha o sujeito passivo direto - na medida em que esta incumpriu no seu dever de prestar ou não se mostra capaz de a satisfazer e, porque em virtude das suas funções, o responsável encontra-se em posição de influenciar o seu comportamento ou na incumbência de o fiscalizar de algum modo188. Estamos perante os casos em que a pluralidade subjetiva surge em momento

posterior à realização do facto tributário.

Ultimamente, cumpre referir-se que a responsabilidade tributária em apreço configura-se uma responsabilidade (garantia se quisermos) subjetiva por oposição a uma responsabilidade objetiva ou real189, o que significa que a amplitude da

responsabilidade recai sobre uma pessoa, sob o seu universo patrimonial e não sobre determinado bem da sua esfera patrimonial, ou seja, a pessoa é responsável com todos os seus bens.