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PARTE II – DIMENSÃO PASSIVA DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA

3. Da pluralidade passiva

3.2. Da pluralidade ab initio

3.2.3. Subsídios à interpretação do artigo 21.º, n.º 1 da LGT

A este respeito, há ainda a assinalar que o legislador não é isento de culpas na dificuldade da determinação do sentido e alcance que a presente norma apresenta. A exiguidade de rigor técnico e inadequação linguística utilizada para expressar o pensamento legislativo resulta bem patente da desarticulação entre a epígrafe da norma - “solidariedade passiva” – e respetivo corpo textual, no qual lança mão da expressão “solidariamente responsáveis” para fazer referência às pessoas sujeitas à solidariedade passiva. Dito de outro modo, o legislador estatui a solidariedade passiva, mas faz referência a este regime utilizando uma expressão técnico-jurídica própria do instituto da responsabilidade tributária. Dita ambiguidade jurídico-conceptual introduz um significativo índice de contradição no elemento literal da norma que, em nosso ver, justifica a preterição da presunção estabelecida pelo número 3 do artigo 9.º do CC144145.

Estamos perante um daqueles casos, parece-nos, em que a expressão verbal atraiçoou o pensamento legislativo. Devemos, assim, recusar uma interpretação literal146 do

enunciado linguístico da norma, procurando nos elementos interpretativos lógicos o verdadeiro e correto sentido da norma, desvelando a intentio legis subjacente ao presente enunciado linguístico.

Relativamente ao elemento interpretativo racional ou teleológico, remetemos para o que se expôs a respeito do pressuposto da pluralidade passiva ab initio147, isto é,

estando na presença de débitos de natureza própria e pessoal, decorrentes da corealização do facto tributário, consideramos ilógica e irracional a interpretação que atribui aos co contribuintes uma responsabilidade em sentido técnico-jurídico pelas suas próprias dívidas tributárias. Pela mesma razão intelectual, dever-se-á evitar a interpretação que corre no sentido de estabelecer uma responsabilidade solidária perante dívidas de terceiros pela simples razão que não estamos perante um facto

144 Por remissão do número 1 do artigo 11.º da LGT.

145 No mesmo sentido, Baptista Machado ensina que ”(…) nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo”, Cfr.

MACHADO, Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2012, Coimbra, pág. 189.

146 Interpretação literal na conceção de que é possível extrair das palavras do texto legal o sentido que elas mais naturalmente

comportam.

53 tributário alheio, o facto tributário foi conjunta e diretamente realizado por várias pessoas e em relação a todas elas se verifica a presunção de benefício económico, tratando-se por isso de codevedores originários, ao invés de um débito tributário de terceiros.

Por sua vez, o elemento sistemático a que faz referência o artigo 9.º do CC parece reforçar esta hermenêutica. Considerando o complexo normativo em que se integra o instituto da responsabilidade tributária (artigos 22.º a 28.º da LGT), verifica-se que o legislador apartou a norma interpretanda do quadro normativo que regula a responsabilidade tributária. Esta constatação adquire especial significado se tomarmos em linha de conta que o normativo que estabelece o enquadramento geral da responsabilidade tributária, o artigo 22.º da LGT, encontra-se sistematicamente localizado após a norma do artigo 21.º, o que à luz da unidade sistemática da LGT148,

legitimamente permite supor que não constituiu vontade legislativa a atribuição da qualidade de responsáveis solidários aos corealizadores do facto tributário a que a norma em apreço se refere. Além do que já se deixou dito, entendemos que esta interpretação é a única que respeita e adere à coerência e espírito de unicidade lógica do diploma.

Posto isto, fazendo uso das palavras de Baptista Machado149 entendemos que a

expressão “solidariamente responsáveis” trata-se de uma “fórmula normativa mal

inspirada que não consegue aludir com uma clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei”, devendo o intérprete recorrer a uma interpretação corretiva no sentido de quando

lê “solidariamente responsáveis” deverá entender “solidariamente devedores”150.

Assim se entendendo, os devedores solidários a que se reporta o número 1 do artigo 21.º da LGT serão aqueles que respondem pela dívida nos mesmos termos que o devedor originário151, o que revela todo sentido, pois em rigor, os devedores solidários

148 Partindo-se do princípio que a codificação das normas contidas na LGT obedeceu a um pensamento legislativo unitário. 149 Cfr. MACHADO, Baptista, Op. Cit. pág. 186.

150 No mesmo sentido V. nota de rodapé 2 em LOPES DE SOUSA, Jorge, Código de Procedimento e de Processo Tributário - Anotado e Comentado, 6ª Edição, Volume III, Áreas Editora, 2011, Lisboa, pág. 72.

54 assumem-se igualmente como devedores originários pela sua quota-parte de realização do facto tributário.

Em suma, cremos que a ratio legis do artigo 21.º, n.º 1 da LGT não reside, pelo menos em primeira linha, na fixação de um exclusivo nexo de garantia do crédito tributário152, assente numa lógica de acréscimo de responsabilidades patrimoniais,

porquanto a intenção do legislador foi a de, primacialmente, enunciar o regime jurídico aplicável às situações plurais descritas – as que decorrem dos comparticipes do facto tributário. Por outro lado, não podemos ignorar que a opção pelo regime da solidariedade passiva153 é bem compreensível à face da especial necessidade proteção

de um crédito público154, sendo a opção que produz a configuração jurídica suscetível

de conferir superiores índices de segurança jurídica à prossecução da satisfação do crédito tributário, uma vez que o credor tributário pode eleger qual ou quais patrimónios que respondem pela totalidade da prestação comum, como adiante analisaremos. Todavia, nem sempre assim foi, de facto, na vigência do antigo Código de Processo das Contribuições e Impostos e do Código de Processo Tributário155, a

solidariedade passiva apresentava natureza excecional relativamente à conjuntividade da obrigação tributária, apenas se verificando aquela nos casos expressamente referidos na lei156, o que em termos de interpretação histórica da evolução legislativa assinala a

visão civilística dos sucessivos legisladores sobre esta matéria, estabelecendo, primeiro, correspondência com o regime da conjunção e, depois, com o regime da solidariedade passiva na LGT, invertendo-se essa visão com a aprovação deste diploma.

Passemos agora à análise os contornos e implicações da solidariedade passiva no âmbito das relações tributárias.

152 Diferentemente V. TEIXEIRA, António Braz, Op. Cit, pág. 290 e 291.

153 Enunciação que apenas é possível na medida em que estamos perante devedores a título originário. 154 Necessidade de proteção à qual o legislador não pode alhear-se.

155 Cfr. artigo 241.º.

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