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B A REVISÃO AS TEORIAS DA COMUNICAÇÃO: INDO PARA ALÉM E PARA AQUÉM DA MENSAGEM

PARTE II: QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA A Propaganda e seu cenário teórico, As Teorias de Análise da Comunicação e um Modelo Alternativo

II. B A REVISÃO AS TEORIAS DA COMUNICAÇÃO: INDO PARA ALÉM E PARA AQUÉM DA MENSAGEM

Este capítulo é uma revisão das principais teorias da comunicação utilizadas para este trabalho. Conglomera a visão do pesquisador acerca de algumas teorias, bem como revisa aquelas que remetem ao acesso do signo comunicativo. O que se apresenta aqui não é apenas um resumo didático, mas uma leitura dirigida e uma discussão acerca destas principais teorias. O ponto de partida da investigação teórica é aquele que questiona a extensão do signo comunicativo, ou seja: como se define o signo comunicativo, como acessá-lo e como analisá-lo? Parece existir algo que vai além da “expressão explícita” no discurso, e é essencialmente sobre isso que a maior parte das teorias parecem versar. A Teoria da Enunciação, por exemplo, inclui o sujeito emissor e o ato “enunciativo” como parte da mensagem; a A.D faz atenção ao contexto político e os intertextos. Já as pesquisas de Recepção e os Estudos Culturais colocam o papel da mediação social do significado em relevo, e as específicas relações com a cultura. Peirce aproxima sua teoria da ciência e da cognição e não discute tanto a questão „sócio-cultural‟ da comunicação, mas também amplia enormemente os domínios do signo e da comunicação de maneira única e extremamente relevante. Já a Semiótica “Francesa” e a Psicologia Cognitiva fazem, cada uma a seu distinto modo, importantes correlações a respeito da “atuação” destes signos em determinado contexto, analisando sua potência de agir. Destas formas, esta pesquisa retrabalha as noções de contexto e profundidade da significação já presentes em muitas teorias, tomando-as inclusive como grande ponto de partida. Segue-se, portanto, às principais contribuições das teorias em estudo.

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II.B.1. TEORIAS DA ENUNCIAÇÃO

A “enunciação” verteu-se sobre aquilo que Bally chamou da “língua em ação” (apud FLORES, 2005, p.17): ou seja, a língua e suas diversas possibilidades de significação em cada contexto. Os lingüistas da enunciação trabalham no sentido de alertar como as frases, ou aquilo que chamam de „enunciados‟, ganham sentidos diferentes e dependentes de um contexto composto por três instâncias: o espaço (1) e o tempo (2) onde é enunciado e as pessoas envolvidas em tal situação (3).

Um dos principais nomes contribuintes para a formação do que ficou então conhecido como a teoria da enunciação é o de Émile Benveniste. A partir do quadro saussuriano, o lingüista francês supera o estruturalismo vigente até então, que se restringia a uma linguagem centrada em seu código e distante de sua atualização e usos cotidianos. Procura então, situar o homem na língua (FLORES e TEIXEIRA, 2005, pp. 29-44), situando a subjetividade como fator preponderante na formação da significação. Até então, esta havia sido sublimada dos estudos da língua em nome de um recorte científico. A Teoria da Enunciação quebra a tradição que vinha desde Saussure e Hjelmslev, que não previam “espaço para aquele que enuncia” (FLORES, 2005). Se antes a estrutura da língua era entendida como um sistema, com núcleos duros e estáveis, agora se inseriam três categorias básicas na composição do significado: tempo, espaço e pessoa. FIORIN esclarece e exemplifica muito bem a questão:

Se lermos, num quadro de recados, o seguinte texto: "Estive procurando-o hoje. Esteja lá amanhã sem falta", não saberemos quem é que esteve procurando, quem ele esteve buscando, quando esteve fazendo isso, quando e onde a pessoa procurada deve estar sem falta. Isso, porque alguém deve ter apagado os elementos da situação de comunicação que permitiriam ancorar os dêiticos: nome do destinatário do recado, local e data em que a mensagem foi escrita, nome do destinador. Esses dados são obrigatórios, por exemplo, numa carta, exatamente para que possamos saber os referentes dos dêiticos que aparecem no texto. (FIORIN, 2010)

O exemplo de José Luiz Fiorin faz clara a necessidade das categorias de tempo, espaço e pessoa para a compreensão do “enunciado”. O ato de “enunciar algo”, ou seja, a “enunciação”, passa, portanto, a ter seu sentido completado apenas por estas informações. Por conseqüência, e, principalmente pela presença do “tempo” como fator crucial, o ato enunciativo adquire a qualidade de irrepetível, já que nunca haverá um mesmo enunciado que seja equivalente em tempo, espaço e pessoa ao mesmo tempo. A língua, portanto, se torna viva – e faz-se claro que sua atualização através do momento da fala é tão importante.

Língua e fala

O lingüista Ferdinand Saussure, anterior às teorias da enunciação, delimitara o estudo da linguagem através da sua famosa diferenciação entre a língua e a fala (langue/parole). FIORIN nos oferece um excelente resumo em 2010:

Ferdinand de Saussure, considerado o fundador da lingüística moderna, explica, em seu Curso de Linguística Geral, que a linguagem é um objeto heterogêneo e multiforme, porque ela é, ao mesmo tempo, social e individual; física, fisiológica e psíquica. Ele distingue dois aspectos na linguagem: a língua e a fala. A primeira é um produto social depositado na mente de todos os falantes, composto de um sistema de oposições fônicas e semânticas (que produz os sons e os sentidos) e de regras combinatórias desses elementos. A fala é o ato individual de realização da língua. (FIORIN, op cit, grifo meu)

Para Saussure, o desenvolvimento da ciência a qual se dedicava necessitava de uma clara delimitação entre uma e outra, e um foco na língua, que ele e seus seguidores estruturariam como um sistema de códigos – e não na fala. Dentre outros objetivos, esta definição de Saussure prezava pelo estabelecimento de um “objeto homogêneo” e “objetivamente verificável” no campo da lingüística, ou seja, livre das vicissitudes dos sujeitos, suas imprevisibilidades e, também, da amplitude de usos da fala. Estavam aí separados o individual do social, o essencial do acessório ou do acidental – e o campo aberto para o estudo das estruturas da linguagem como assim as concebeu Saussure (MEUNIER e PERAYA, 2004).

A partir deste “postulado”, são inegáveis os legados de seus estudos e escritos: seja notado, por exemplo, que nomes como Hjelmslev, Barthes e Eco têm Saussure um ponto de partida e de diálogo frequente. No entanto, esta “exclusividade” da língua em detrimento da fala fora depois revisitada pelos teóricos da enunciação. Segundo FIORIN (op cit), por exemplo, “Saussure não explica como se passa de uma [a língua] a outra [a fala]”. Assim, sem abandonar completamente as idéias de Saussure, como nos garantem FLORES E TEIXEIRA (2005, p. 105), a teoria da Enunciação busca justamente trazer a “fala” à linguagem. Quando Benveniste define que o enunciado é a “colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989), “isso significa que ela é uma instância de mediação entre a virtualidade da língua e a realização da fala” (FIORIN, op cit).

Estrutura ou aparelho formal da enunciação

Apesar de rebater pensamentos dos estruturalistas, BENVENISTE foi ele próprio um deles: “esta é a inovação de seu pensamento: supor sujeito e estrutura articulados” (FLORES, 2005,

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p. 30). Através do que chamou de “aparelho formal da enunciação”, uma espécie de “dispositivo que as línguas têm para que possam ser enunciadas” (idem, p. 36), Benveniste pode nomear a marcação da subjetividade na estrutura da língua, ou seja, a passagem da “língua para fala”. Estas chamadas “marcas de enunciação” – conhecidas também como dêiticos ou processo de embreagem/debreagem – estariam presentes no enunciado, e seriam “denunciantes” desta engrenagem onde a língua se atualiza na fala. Observe-se as palavras de FIORIN (op cit) como esclarecimentos:

Benveniste vai chamar aparelho formal da enunciação as categorias de pessoa, de espaço e de tempo, que são centrais no exercício da língua. Os elementos dessas categorias foram denominados embreadores, termo tirado da mecânica. Embreagem é um mecanismo que permite unir um motor em rotação ao sistema de rodas que não estão girando. Palavras como "eu", "tu", "aqui", "aí", "ali", "agora", "então" são chamados embreadores, embreantes ou dêiticos, porque só ganham referência quando se conecta a língua à situação de comunicação. (FIORIN, 2010)

Junto à noção de shifters, de Jackobson, as “marcas de enunciação” vão ser um dos grandes focos do trabalho dos lingüistas da enunciação, ao lado de estudos do dialogismo e da polifonia, foco da preocupação de Mikhail Bakhtin, e da Análise do Discurso. Para esta pesquisa, no entanto, não é mais interessante alongar-se mais no estudo acurado das marcas lingüísticas da enunciação do que debruçar-se agora sobre um elemento que adquire estatuto central na obra de Benveniste (cf. FLORES, 2005, p. 36): a questão da referencialidade.

A Questão da Referência

Ao se inserirem as categorias de tempo, espaço e pessoa no estudo da lingüística, pode-se dizer que é engendrada a importância da referência no conjunto da significação. “O referente é o objeto particular a que a palavra corresponde no caso concreto da circunstância de uso” (BENVENISTE, 1989). Desta forma, é possível afirmar que “a Referência é parte integrante da enunciação” (idem).

Neste momento, se faz patente fazer um paralelo com a semiótica Peirceana e seu modelo de signo. Peirce já havia se debruçado sobre as mesmas questões com as quais várias décadas depois se preocupariam os teóricos da enunciação. Retome-se o exemplo de Fiorin citado acima, a respeito do bilhete deixado fora de contexto, e compare-se com este exemplo de Peirce:

Suponhamos que um homem esteja lendo um jornal enquanto ele está de pé, do lado de uma janela que se abre para uma vista panorâmica da cidade lá fora. Se o homem, de repente diz: “Que incêndio terrível!”, seus ouvintes identificarão o

objeto desse signo de um modo diverso, visto que essa identificação depende dos ouvintes pensarem que a exclamação do homem foi proferida enquanto ele olhava para a janela ou para o jornal. (PEIRCE apud SANTAELLA, 2008).

Nos dois exemplos, o contexto se faz crucial para a significação final da mensagem. Interessante notar como Peirce já havia reservado a ele posição importantíssima em seu pensamento, mesmo antes da definição de signo de Saussure. Tanto o foi, que ele reservou um dos aspectos do signo inteiramente para ele: além de significado e significante (que Peirce denomina como interpretante e representamen, respectivamente), há também o referente, ou objeto. O objeto do signo triádico peirceano nada mais é do que “aquela parte do contexto que é comum ao signo e a todos os seus intérpretes” (SANTAELLA, op cit). Ele é, portanto, intrínseco a cada signo, único - assim como postula a enunciação: “se não podemos prever ou fixar a referência da frase é porque esta é sempre única a cada instância de discurso” (FLORES, 2005, p. 37).

Sem desconsiderar os inegáveis legados que os teóricos da linguagem e da enunciação trouxeram para o campo da comunicação, fica patente dizer que os antigos planos de “expressão” e “conteúdo” (de Hjelmslev), ou “significado” e “significante” (Saussure) se fazem agora incompletos sem a presença do referente, ou aquilo que Peirce chamaria de objeto. No entanto, mesmo sem fazer referência a Peirce, as teorias da enunciação deram conta, dentro de seu contexto lingüístico/verbal, de incluir o contexto como “superfície” geradora de significados no Discurso.

Legados da Linguística da Enunciação

A inclusão das categorias de tempo, espaço e pessoa podem talvez ser vistas como as principais contribuições das teorias da enunciação para o campo da comunicação, visto que frisam o aspecto da “irrepetibilidade” da língua, e uma necessidade iminente de analisar cada ato “enunciativo” como ato exclusivo, inserido em contexto.

“Cada vez que o locutor se apropria do aparelho formal da enunciação (...) produz um uso novo e como tal irrepetível. Essa irrepetibilidade deve-se ao fato de que jamais tempo, espaço e pessoa – categorias fundamentais em enunciação – podem ser perenizadas no uso da enunciação”. (FLORES, 2005, p. 37)

As “marcas de enunciação”, a teoria dos embreantes e correlatos, são aqui destacadas menos por se prestarem como ferramentas específicas da lingüística para acesso a este contexto, do que pelo fato de trazerem embutidas a noção de que o contexto pode ser acessado no próprio

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enunciado (quando estas marcas são entendidas como índices, traços ou vestígios do “ato enunciativo”, da enunciação).

No entanto, as teorias da enunciação trazem duas preocupações principais para esta pesquisa. A primeira delas é que a filiação e aplicação extremamente lingüísticas dessas teorias limitam-na a esta esfera comunicativa – e dificultam sua aplicação imediata com outros elementos importantes na cognição e que estejam fora da esfera textual/verbal. A segunda é o fato de que “tal perspectiva teórica [a qual se vincula a enunciação] restringe as abordagens da enunciação de natureza linguística às intenções do pólo de emissão e das mensagens, praticamente ignorando o pólo da recepção” (TRINDADE, 2008, grifo deste pesquisador). Embora amplie as possibilidades de significação da mensagem a partir do “ato enunciativo”, e abra o “espaço para quem enuncia”, ela pouco contribui para entender as possibilidades de significação para aqueles que estejam envolvidos na captação de uma mensagem.