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1. Desafios e Dilemas Organizacionais e a Administração Pública e Tributária

1.1.1. Revisita à racionalidade burocrática e a administração pública

A administração pública portuguesa que conhecemos hoje é herdeira das mutações ocorridas no século XX no âmbito da organização do Estado e que permitiu a génese do designado Estado Social que avocou para si as responsabilidades de intervenção na sociedade, transformando-se em prestador e garantidor dos direitos económicos, sociais e culturais. À semelhança do que ocorreu na Europa Ocidental, a AP em Portugal desenvolveu uma ampliação das suas tarefas e atribuições, e consequentemente modificou a sua relação com os cidadãos. O dever do Estado de respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos transformou-se numa obrigação positiva de acautelar o bem-estar social e económico, passando a ser conhecido como Estado de Providência. Com o Estado Social em Portugal, as obrigações assumidas perante o cidadão passaram a ter um caráter constitucional, tornando assim percetível a importância dessa absorção de incumbências. Contudo, a amplitude e a diversidade das novas áreas de atuação do Estado acabaram por promover o crescimento da máquina administrativa (Gonçalves, 2013).

Tratando a administração tributária portuguesa (AT) duma organização da administração pública (AP), importa clarificar alguns aspetos relacionados com as organizações formais e a racionalidade burocrático-administrativa. Diferentes autores assinalam que as organizações da administração pública possuem uma natureza burocrática (Weber, 1971; Crozier, 1964; Blau & Scott, 1979; Etzioni, 1974, 1980; Mayntz, 1990; Gonçalves, 2013). De recordar que Weber (1971) foi o primeiro autor que se debruçou sobre a questão da burocracia nas organizações. O modelo burocrático de Weber, amplamente descrito desde a 1ª guerra mundial, é entendido como uma parte importante da consolidação da modernidade e a aceitação da mudança para um pensamento racionalista específico, controlando sentimentos com ações instintivas ou tradicionais, e evoluindo para um controlo ideal e ordenado através duma estratégia e forma administrativa, dita mais perfeita, ou seja, pela via da burocracia-racionalista-legítima.

Na perspetiva de Weber (1971), a burocracia é “a maneira mais eficiente de organização administrativa, porque os especialistas com grande experiência estão melhor qualificados para tomar decisões tecnicamente corretas, e porque uma atuação disciplinada, governada por regras abstratas e coordenada pela hierarquia de autoridade, promove uma busca racional e consistente de objetivos organizacionais” (cf. Blau & Scott, 1979, p. 47). As organizações burocráticas representam um modo ideal, na medida em que exibem a combinação de características que maximizam a tomada racional de decisões e uma eficiência na administração. Por outras palavras, para Weber (1971), o aparelho burocrático surge, assim, como um tipo-ideal organizacional onde se otimizam as ações humanas, dentro duma precisão, ausência de ambiguidade, redução do erro e dos custos de pessoal e materiais. Subjaz nas teses weberianas, a ideia de que, para se atingir esta otimização da eficiência e eficácia dos serviços a burocracia, deverá reorganizar e adaptar uma hierarquia formal de postos e de funções, a aplicação de regras no respeito pelo que está estabelecido, a promoção por mérito ou antiguidade, o controlo estrito da informação, e sobretudo

reconhecer que uma organização é sobretudo um sistema racional, governado por regras muito formalizadas e inflexíveis.

Face ao exposto, existe na organização burocrática um certo padrão de formalização e normalização institucionalizado de autoridade, marcada fortemente por formas de poder, estruturas racional-legal, fundada na divisão do trabalho, legitimado pela aceitação das próprias normas. Na racionalidade burocrática, tal como assinalou Etzioni (1974, 1980), a seleção de pessoal é cuidadosamente preparada, dando preferência aos indivíduos com habilitações formais, tendo esta seleção por objetivo assegurar a homogeneidade no processo de produção das organizações. Tal formalidade das relações é realizada através de um ideal de impessoalidade, conduzindo a relações baseadas nos cargos. O interesse pessoal, a afetividade e os sentimentos são excluídos do campo das relações formais. Parafraseando Crozier (1964), a propósito do fenómeno burocrático, a importância da autoridade hierárquica e das normas impessoais servem para preservar as características estruturais burocráticas, razão pela qual se torna necessária a coordenação da divisão interna do trabalho e a interdependência de tarefas. Ou seja, as regras e a hierarquia, enquanto instrumentos centrais de gestão e de controlo, são apresentados como imprescindíveis e insubstituíveis para os fins da mesma, gerando assim uma certa utopia no mundo da atual organização do trabalho. Admite-se assim que “a formalização dos procedimentos é necessária à estrutura oficial do sistema já que a organização formal permite definir como informal e ilegítima toda a ação que nela não encontra forma ou orientação” (Domingues, 2000, p.1)9.

Sintetizam-se assim, para Weber (1971), que a burocracia constitui um modo particular de desenvolvimento da forma moderna de organização, caraterizada pelo seguinte: “a) as tarefas da organização são distribuídas entre as várias posições como deveres oficiais; b) as posições ou postos são organizados dentro de uma estrutura de autoridade hierárquica; c) um sistema de regras e regulamentos, formalmente estabelecido, governa as

ações e decisões oficiais; d) espera-se que os chefes assumam uma orientação impessoal com os clientes e outros chefes; e) o emprego na organização constitui uma carreira para os chefes.” (Weber, 1971, p. 329-336).

Enquanto Weber (1971) atribuía à forma burocrática da organização um grau máximo de adequação, enfatizando a rapidez, precisão, fidelidade das normas e eficácia da ação administrativa, outros autores, pelo contrário, criticaram a sua forma rígida e ineficiente. Como sugeriu Merton, a burocracia comporta um conjunto de disfunções na medida que tal modelo organizacional promove a alienação, a impessoalidade e um clima de desmotivação e desinteresse dos indivíduos pelo trabalho (cf. Etzioni, 1974, 1980). Por outro lado, segundo Friedberg (1995), a teoria clássica weberiana mais não defende se não um postulado do tipo “homo economicus”, com o qual ela dispunha de uma teoria das motivações que tornava os comportamentos humanos previsíveis, e que supunha que cada agente era a cada instante racional, ou seja, respondia de maneira estereotipada às mudanças das condições físicas do seu meio ambiente, procurando a maximização dos seus ganhos. Argumenta ainda Domingues (2000) que “a organização burocrática não consegue eliminar toda

a incerteza da conduta humana, porque não consegue prevenir todas as incertezas organizacionais e ambientais que marcam o contexto da atividade das pessoas e estas seguem diferentes orientações normativas e não são capazes da linearidade e congruência comportamental” (2000, p. 1).

De acordo com estas críticas, as deficiências de organização burocrática não são uma espécie de degeneração evitável. As vantagens e as deficiências da organização burocrática são como os dois lados da mesma moeda, ou seja, provem ambas dos mesmos princípios estruturais (Mayntz, 1990).

No que concerne à abordagem sociológica da administração pública, tal como nota Mayntz (1990), a organização burocrática mostra-se claramente como um dos seus elementos centrais, ou seja, a sujeição de toda a atividade administrativa do setor público a regras ou programas explicitamente formulados. Esta é uma condição essencial para que a administração pública funcione. Acresce-se ainda que a vinculação às regras pressupõe também à

norma, própria do Estado de Direito, para que haja uma igualdade de tratamento de todos os cidadãos. Assim sendo, o pessoal administrativo deve decidir de acordo com regras fixas, cujo desempenho é constantemente medido pelos critérios de fidelidade à norma. Por outras palavras, a sujeição às regras e orientação às mesmas afetam não só a ação administrativa dirigida ao exterior, mas também as regras de procedimento interno. Tais procedimentos constituem meios impessoais de direção das hierarquias sobre os funcionários públicos subordinados, na medida em que facilitam a prestação de contas aos órgãos de controlo.

Para Mayntz (1990), a combinação da sujeição desmedida às normas com a dependência hierárquica e com as competências estritamente estabelecidas é responsável pela insuficiente capacidade de adaptação e de inovação da administração pública. Acrescenta ainda o autor que a rigidez da organização burocrática afeta principalmente as suas características estruturais e modos de procedimento, e não tanto as suas tarefas ou objetivos. A mudança de objetivos não é um processo autónomo nas organizações administrativas do setor público, visto que as suas tarefas são atribuídas pelas instâncias políticas.

Vários problemas disfuncionais decorrentes da organização burocrática da administração pública têm vindo a ser assinalados como graves, especialmente do ponto de vista do desempenho. Para Mayntz (1990), enquanto que a crítica à organização administrativa burocrática se vinha centrando especialmente na sua rigidez e, secundariamente, em algumas deficiências qualitativas do desempenho, o essencial da crítica em questão mantém-se ao nível da acusação central sobre a escassa eficiência das organizações da administração pública.

Face ao exposto, existe um conjunto de fatores que favorecem os princípios estruturais burocráticos e a ineficiência da AP. No caso concreto da AP portuguesa, Mozzicafreddo (2001) assinala que algumas falhas da burocracia têm a ver com a sua insuficiência do modelo burocrático “relativamente à forma organizativa da administração pública e sem deixar de considerar as

justificadas críticas ao modelo e ao funcionamento da burocracia, afigura-se necessário assinalar que, pelo menos no caso português, uma das razões da sua limitada responsabilidade pública e de algumas das limitações em matéria de eficácia e de eficiência assentam precisamente numa insuficiente burocracia. O modelo burocrático da organização, no sentido que os clássicos da teoria da organização o postularam – Weber, Farol, Taylor e mesmo mais recentemente, Mintzberg e Friedberg – sublinham justamente que, para limitar as disfuncionalidades de uma administração menos profissional e arbitrária, a administração deve reger-se pela especialização funcional e qualificação dos serviços, posições hierárquicas com competências decisórias e fiscalizadoras formalmente atribuídas, sistemas de regras e procedimentos de implantação da lei e da imparcialidade dos atos e decisões administrativas. Ora, considerando que uma das razões das disfuncionalidades evidenciadas resulta da não observância do chamado modelo burocrático de organização” (Mozzicafreddo, 2001: 14).

Em síntese, a falta de eficiência no desempenho das unidades da AP na prestação de serviços está intimamente relacionada com as crescentes dificuldades de financiamento dos orçamentos públicos, a natureza do desempenho dos funcionários públicos, a especialização, qualificação e os custos dos serviços e os critérios essencialmente políticos dos objetivos organizacionais.

É pela constatação destas situações que têm vindo a ser propostas novas orientações de gestão na AP para melhorar as condições para uma atuação eficiente da Administração. Contudo, tal como argumenta Gonçalves (2013), as organizações da AP são por essência objetivadas para o serviço e interesse público, pelo que subsistem muitas dúvidas sobre a possibilidade das mesmas poderem ser geridas como se fossem empresas privadas para ganhos de eficiência. Para o autor, a AP representa um instrumento político para a realização das próprias funções do Estado e a para a satisfação das necessidades do cidadão. Neste sentido, um administrador público é subordinado e dependente do poder político, sendo um gestor empresarial

autónomo e independente. Por outro lado, argumenta ainda o autor que a AP portuguesa, como a conhecemos hoje, constitui um megassistema; pode afirmar-se que as direções-gerais foram ’institucionalizadas’. Elas são um subconjunto da grande ‘instituição’ que é o Sistema Administrativo Português. Acrescenta ainda Gonçalves (2013) e outros autores que a AP possui as características weberianas de um sistema de tipo legislativo–burocrático, pelo que o princípio da legalidade domina a organização legislativa democrática, a qual assenta na lei segundo princípios de hierarquia, e rege a conduta do administrador. Tal como nota Gonçalves (2013), é de relevar que a AP não é uma empresa, pois, esta, por definição, é um outro tipo de organização, e o gestor privado pode fazer tudo o que a lei não proíbe.

De salientar que a amplitude e a diversidade das áreas de atuação do Estado Social que marcam o perfil da administração pública, acabaram por promover o crescimento da sua máquina administrativa, tornando-se necessário recorrer a novos modelos de organização e de atuação mais flexível e dinâmica. A este modelo de Estado está associado o modelo de Administração Profissional, que se caracteriza pelo aumento da atividade da AP e pela profissionalização e o poder dos funcionários. Entretanto, esta etapa foi derrocada pelo alargamento da função e dos serviços prestados diretamente pelo Estado que modificou a relação entre os cidadãos e a Administração. A variedade e a importância das áreas em que o Estado era chamado a atuar determinou a criação de esquemas de parcerias entre a Administração e a sociedade civil (Gonçalves, 2013).

Segundo Araújo (2002) “falar de reforma administrativa em Portugal é falar, principalmente, nas mudanças que ocorreram nas últimas três décadas com o regresso do regime democrático em abril de 1974. Até então, as iniciativas de reforma foram esporádicas, algumas sem consequências visíveis. É com o advento da democracia que surge um grande impulso reformador despoletado pelas necessidades de democratização do país, de desenvolvimento económico e das concomitantes reformas económicas e sociais. Contudo, a definição do modelo de Estado e de Administração Pública que se pretendia

para o país só assume contornos claros mais tarde, a partir de meados da década de oitenta” 10

De acordo com Gonçalves (2013), nas últimas décadas, o Estado já não conseguia sozinho tornar exequível a sua atuação intervencionista, presenciando-se a ineficiência dos serviços prestados, as burocracias excessivas impostas sobre os programas sociais, frente aos procedimentos exigidos pela crescente complexidade da máquina administrativa, o aumento das despesas suportadas pelos cidadãos, a falta de imparcialidade do Estado, a crise fiscal provocada pela dificuldade cada vez maior de harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista, o envelhecimento da população, entre outras, situações que promoveram cada vez mais o incremento da insatisfação popular. Estas adversidades e o descontentamento geral do campo social colocou em crise o modelo WelfareState.

Na tentativa de resolver o problema e reencontrar a eficiência, eficácia e racionalização, implementa-se uma reforma do Estado, aplicando-se uma nova gestão pública. Ou seja, introduz-se na AP a influência das ideias neo- liberais e das teorias económicas, associadas a um contexto económico difícil, dando a origem a um novo modelo de Estado ao qual se associa uma AP orientada pela racionalidade gestionária e pelos valores da eficiência, da economia e da eficácia. Tal mudança administrativa ficou conhecida como

New Public Management. A Administração buscava então reformular modelos

e processos desajustados, originando um quadro legal “inovador,” dotando os serviços de mecanismos próprios e seguindo modelos praticados pelo setor privado. A nova gestão pública procurou orientações nos mecanismos e ferramentas oriundas da gestão empresarial. Foram propostas várias alterações a serem realizadas na AP, entre elas, e de forma principal, as privatizações de atividades estatais de natureza económica (Gonçalves, 2013). Surgiu assim um novo modelo de gestão, marcado pela forma organizativa do direito privado, juntamente com a atuação administrativa. Nasceu então o Estado Regulador, marcado pela onda de privatizações e liberalizações da

economia, e pela diminuição da atuação do Estado na atividade económica. As empresas públicas remanescentes transformam-se em concorrentes das empresas privadas. Perante este quadro de concorrência instaurada entre as empresas públicas e a iniciativa privada tornou-se necessária uma separação clara entre as funções de propriedade do Estado e outras funções estatais que podiam e possam influenciar as condições das empresas de propriedade estatal, particularmente no que diz respeito à regulamentação do mercado (Gonçalves, 2013).

Nessa perspetiva, seguindo ainda de perto Gonçalves (2013), é lançada para o espaço social a ideia otimista de que o setor empresarial público encontrou inspiração nos padrões seguidos pela iniciativa privada, com vista a uma gestão eficiente e eficaz, surgindo a referência a um Estado “Colaborativo”, no qual a atuação da AP, considerando a sua atividade empresarial, sem perder de vista os serviços públicos, se faz valer de uma concorrência regulatória suprindo as falhas estruturais de mercado e coexistindo com a iniciativa privada, em prol do consumidor e da sociedade em geral.

É pela constatação destes dilemas e desafios da AP a nível da eficiência do serviço público e da gestão pública que importa refletir um pouco mais e contextualizar melhor, em seguida, as novas tendências de reforma e gestão pública da AP.

1.1.2. Reinvenção da administração pública: nova gestão pública e as