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1. Desafios e Dilemas Organizacionais e a Administração Pública e Tributária

1.2. Qualidade e Ação Organizacional

1.2.4. Valores e sentidos da ação organizada e a qualidade?

Quando se fala em qualidade nas organizações “quase sempre se pensa em equipamentos e procedimentos, esquecendo-se que a sua implementação e eficácia depende da implicação e responsabilização do pessoal, motivado para assumir como seus os objetivos organizacionais” (Domingues, 2001, p. 153). Subscreve o autor que a qualidade é sobretudo uma construção social e um problema de toda a organização pelo que se exige modificações dos comportamentos dos atores. Não é de admirar que nos discursos

manageralista enfatizam a ideia de que “a qualidade tem de ser estruturada e estruturante, deve marcar a cultura organizacional, ser atualizada nas práticas diárias nos diferentes pontos de trabalho, corporizar a missão da organização. (Assim sendo, a qualidade deve ser entendida) como uma questão de relações humanas e de clima organizacional, onde as pessoas sabem quais são as suas posições sociais, conhecem os procedimentos e as operações que Ihes competem ou podem desenvolver, partilham símbolos e significados para facilitar a sua conduta e a comunicação (pelo que) na mudança da qualidade, as pessoas, as formas e práticas de participação devem ter prioridade na agenda organizacional” (Domingues, 2001, p. 152- 154).

Pensar a qualidade nos termos colocados acima como uma construção social, é um problema da organização e dependente da participação dos atores, vem recolocar a importância da organização como um objeto social e o carater construído da ação organizada. Contudo para Friedberg (1995) a perspetiva das organizações como objeto social envolve um triplo “défice”: a) racionalidade; b) interdependência; c) legitimidade. Relativamente ao primeiro défice, o autor refere-o como resultado da própria ação humana, irredutivelmente limitada, na medida em que “a racionalidade limitada própria de toda a ação humana infunde tudo, tanto os comportamentos humanos no dia a dia, como os dispositivos materiais, as regras, os procedimentos e as estruturas que supostamente os canalizam, os ‘racionalizam’, os regulam e os articulam para objetivos coletivos” (Friedberg, 1995, p.109).

De referir que Weber já tinha assinalado a problemática da racionalidade organizacional, quando aplicada à estrutura burocrática do seu modelo, argumentando que ela é frágil e que precisa ser constantemente protegida contra pressões exteriores. Poderemos entender que também Weber considera a racionalidade como algo frágil e limitado, tal como Friedberg (1995), ainda que segundo abordagens diferentes. Quanto ao segundo défice assinalado por Friedberg (1995), o da interdependência, refere-se à inter-

relação dos elementos no seio de uma organização, podendo este gerar uma relação de causalidade linear e homogénea, o que não acontece nas organizações em que os elos são frágeis e, por isso, rica em heterogeneidade e descontinuidade. Acrescenta ainda o autor que “todos os participantes de uma organização procuram naturalmente limitar por todos os meios a sua dependência em relação aos outros, ‘desligando’ tanto quanto possível a sua função ou a sua tarefa da dos outros” (Friedberg, 1995, p.110). O último défice referido pelo autor, é o da legitimidade que limita de certo modo todos os “objetivos e fins englobantes”, isto é normas, valores e registos de justificação no qual se apoiam. Friedberg pretende fazer relevar através da noção de “triplo défice”, que uma organização enquanto objeto de estudo, mostra-se tão complexa que perde não só a sua particularidade como a própria simplicidade, previsibilidade e finalização.

Porém, se atendermos que, parafraseando Domingues (2003), as estruturas sociais, vistas como modos de utilização de regras e recursos conhecidos das pessoas, recursivamente implicados na atividade diária em contexto organizacional, são simultaneamente constrangimento e oportunidade para as práticas quotidianas. Argumenta o autor que tais realidades permitem a reprodução dos sistemas sociais através da sua condição dualista permitida por ser simultaneamente constituída e constituinte das práticas (Giddens, 1979:69 cf. Domingues, 2003). A verdade é que, nesta linha de argumentos giddensianos, está-se a admitir que o conhecimento e a dualidade da estrutura permitem a atividade reprodutiva e criativa nos limites das possibilidades de utilização dos recursos e das regras. Por outras palavras, considera-se que as pessoas sempre podem agir de vários modos e estes resultam dos processos de interação social, simultaneamente marcados por relações de significação, dominação e legitimação (Giddens, 1979:29 cf. Domingues, 2003). Efetivamente, as pessoas nem sempre integram oportunidades e objetivos, tecnologias e meios, competências e decisões, nem mantêm congruência e convergência das práticas, tanto procuram como perturbam equilíbrios facilitadores da eficiência, cooperação e convívio diários. Ou seja, os atores sociais possuem estilos próprios de fazer as coisas,

seguem racionalidades diversas e hierarquizam as suas preferências de diferentes formas, monitorizam o seu comportamento movido por interesses que oscilam entre o que é desejável-indesejável, útil-inútil, possível- impossível, permitido-proibido, legítimo-ilegítimo e, mesmo quando a sua ação é muito determinada pelos requisitos duma norma da qualidade, preservam considerável grau de variabilidade e incerteza (Domingues, 2003). De facto, segundo Domingues (2003), um dos maiores desafios que se coloca ao gestor dos nossos dias é saber como combinar as vantagens das normas da qualidade e as vantagens da anarquia organizada sem perder o sentido da produtividade e qualidade, e até melhorar os desempenhos. Argumenta o autor que seguimos que as práticas da qualidade em contexto de anarquia organizada dependem menos de qualquer propriedade organizacional independente da sua atividade, espécie de consciência coletiva externa à capacidade de decisão e ação dos agentes, do que da sua atividade reflexiva de participantes intencionados. Esta realidade coloca em evidência que a otimização dos recursos e regras da qualidade depende essencialmente de fatores organizacionais, como os procedimentos e as instruções de trabalho, prescritoras das formas de agir, mas também de fatores pessoais, como o conhecimento, a motivação, a inteligência e a sensatez, influenciadoras da atribuição de sentido e da tomada de decisões. Assim sendo, se a burocracia é indispensável e a anarquia organizada inevitável, a otimização dos sistemas da qualidade exige operadores excelentes e gestores inteligentes, capazes de fazer da prudência o maior recurso e a mais importante regra da sua atividade diária (Domingues, 2003).

Segundo Domingues (2003), a ambiguidade faz parte das estruturas sociais e da vida das pessoas e esta condição atravessa as organizações e a qualidade. A estrutura formal é geradora de ambiguidade porque não prevê nem pode prever todos os problemas que podem surgir nas práticas quotidianas e aceita no seu seio desconexões formalmente consagradas entre órgãos, funções e regras. A vida diária da organização é marcada pelas grandezas e fraquezas dos seres humanos e pelas vicissitudes das suas práticas sociais e parte

significativa da realidade da organização compõe-se de “conversas, símbolos, promessas, mentiras, interesses, atenções, ameaças, agradecimentos, expectativas, memórias, boatos, prescritores, apoiantes, detratores, confiança, suspeição, aparências, lealdades e envolvimentos” (Weick, 1985:128 cf. Domingues, 2003). As pessoas têm limitações cognitivas e estas aumentam a ambiguidade dos processos, avolumando a incerteza na elaboração de conjeturas e integração das preferências, parecendo que a inconsistência é necessária à clarificação das preferências, que podem existir independentemente das ações e às vezes são mesmo ocultas (March, 1986:156 cf. Domingues, 2003). Por fim, as pessoas raramente conseguem ser permanentemente congruentes. Seja pela incapacidade de abarcarem por via da reflexão todas as variáveis importantes que condicionam e integram a situação, seja pela descontinuidade e incongruência entre o que se pensa e o que se faz, elas organizam o seu comportamento em torno de várias desconexões. O expediente constitui tipo de comportamento que emerge em situações de incerteza, podendo existir em todas as práticas da qualidade. Em situações de ambiguidade, as alternativas da ação bem como os seus efeitos são vagamente conhecidos ou mesmo desconhecidos, a convocação de conhecimentos anteriores úteis à decisão mais dificilmente ocorre, o processo de decisão caracteriza-se pela complexidade, novidade e incerteza. Nestes casos, as pessoas têm pouco entendimento da situação em que se processa a decisão ou do sentido que esta deve tomar, têm uma vaga ideia acerca da melhor decisão e das formas de avaliar a sua implementação, pelo que a escolha ocorre segundo processo “recursivo e descontínuo” (Mintzberg et al., 1976:250 cf. Domingues, 2003).

Tendo presentes os argumentos descritos acima, aquando da implementação e desenvolvimento da qualidade numa organização da AP, esta pode tornar-se numa arena política ou um mercado onde se trocam comportamentos e se perseguem estratégias de poder especiais, e cujas características são o simples produto dessas trocas e desses confrontos. Admite-se assim que numa organização “nunca se está na presença de medidas/regras/estruturas que tiram a sua legitimidade unicamente de considerações técnicas: misturam-se

sempre considerações de oportunidade ‘política’, no sentido da gestão das relações de poder e de acomodamento dos compromissos necessários entre lógica de ação e registos de justificação” (Friedberg, 1995, p. 110).

Assim sendo, aquando da análise coletiva pura e simples na dinamização dos processos de qualidade numa organização, mais do que olhar a qualidade como uma inevitabilidade e um problema de participação, e parafraseando Friedberg (1995), torna-se necessário ter em conta a presença de uma estrutura de jogos que regulam e coordenam essa ação. Neste contexto, é de considerar que, mesmo que haja apelo à relativização e à participação de todos nos processos de qualidade, não há ação social sem poder e que esse poder supõe e constitui uma estruturação do campo de ação. Este poder pode ser entendido como a “troca desequilibrada da possibilidade de ação, ou seja, de comportamentos entre um conjunto de atores individual e ou coletivos” (Friedberg, 1995, p.115). Na verdade, o poder está presente em toda e qualquer ação coletiva, em tudo o que se faz, quer queiramos quer não, há sempre quem mande e quem obedeça, quem “sugira” e quem “solucione” (Silva, 2004a, 2004b). Efetivamente numa AP, tais factos são de certa forma bem presentes e regulados pelos normativos e códigos de prática na função pública.

Apesar da relação de poder ser facto inegável e poder parecer uma relação desequilibrada, não podemos de modo algum considerá-la negativa. Importa considerar que numa organização as relações de poder são imprescindíveis pois para a prossecução dos objetivos impõe-se que os indivíduos sigam o mesmo caminho e que partilham o mesmo interesse. Não se trata de uma relação de poder em que o mais forte impõe-se sobre o mais fraco, mas uma relação necessária pelas características, estruturas de uma organização (pirâmide hierárquica) que viabiliza o seu bom funcionamento. É impensável uma organização da AP ou outra sem relações de poder, pois seria difícil haver tomadas de decisão, objetivos partilhados por todos, ações organizadas de forma pacífica. Se assim fosse, uma organização tornar-se-ia numa anarquia em que cada um teria a sua opinião e não se chegaria a conclusão

alguma. A anarquia que tiver lugar é sempre organizada. Na linha do pensamento de Friedberg (1995), poder e cooperação são uma “sequência natural”, não uma contradição na ação organizada. No fundo, o poder visa a troca, a reciprocidade e sobretudo a cooperação entre os atores para que seja possível alcançar os objetivos comuns, em todas as tarefas do quotidiano do trabalho (Silva, 2004a, 2004b).

Face ao exposto, a ideia de cooperação é importante e necessária no funcionamento das dinâmicas da qualidade numa organização, mas que não deve ser misturada com o poder. O conceito de cooperação aliado ao fenómeno em que ele próprio se manifesta é assim, para o Friedberg (1995) e Silva (2002, 2004a, 2004b), algo natural e que deve ser valorizado pelos resultados que permite obter para a organização. Assim sendo, o “poder de cada um dos parceiros e ou adversários num processo de troca, provém da pertinência das possibilidades de ação de cada um dos participantes para a solução, ou pelo menos, para o controlo e gestão dos problemas dos quais tropeça a realização das empresas ou dos desejos dos outros” (Friedberg, 1995, p.120).

De relevar ainda que é necessário observar as competências específicas dos diversos atores de modo a perceber o porquê das tensões e o modo como estes (atores) se organizam e negoceiem para solucionar um problema organizacional. Contudo, a estratégia de ação dos atores, imprevisível numa negociação, não é idêntica em contextos diferentes (Silva, 2002, 2004a, 2004b). Para Friedberg (1995) “quanto mais um contexto for constrangido e regulado, mais a imprevisibilidade que resta será importante para todos os participantes, e mais reforçará as possibilidades de negociação dos poucos atores que ainda são parcialmente imprevisíveis. Em contrapartida, num contexto fluido e em processos de troca relativamente pouco estruturados, a possibilidade e a vontade de renunciar temporariamente à sua capacidade de rebelião e de se tornar assim mais previsível para os outros poderiam tornar- se uma fonte de poder, pelo menos a curto prazo” (Friedberg, 1995, p.125). Assim sendo, quando mergulhamos no campo da qualidade numa organização,

“para onde quer que olhemos parece que sempre deparamos com pessoas, movidas por diferentes intenções, e orientadas por diversas racionalidades de participação. Seguem diversas orientações normativas, agem de forma situada no espaço, no tempo e nas relações sociais. E a qualidade depende essencialmente disto – da sua vontade, atenção e razão” (Domingues, 2001, p. 152).

Face ao exposto, o comportamento dos atores, que estão envolvidos na relação organizacional das dinâmicas da qualidade, deve sempre ser entendido dentro da totalidade da situação concreta na qual os atores se encontram e não apenas do ponto de vista da sua racionalidade instrumental ou económica. É necessário considerar que “podem ter por alvo direto os outros atores, seja para construir com eles sistemas de alianças, ou para restringir diretamente a sua liberdade de movimento e para impedir por todos os meios a sua retirada” (Friedberg, 1995, p.127). Podem, por outro lado, fazer-se notar de uma forma indireta, tentando modificar a estrutura da situação ou mesmo a perceção que os outros têm dela. Acrescenta ainda o autor que o jogo de atores constitui um dos pontos centrais da ação organizada, sendo imprescindível a sua existência para que um ator possa entrar em negociação com outros. De notar também que, na lógica friedberguiana, os campos de ação nos processos de troca situam-se sempre num meio-termo, onde o acesso aos recursos é incompleto e desigualmente repartido, e onde a interdependência dos atores nunca é equilibrada.

Contudo, argumenta Friedberg (1995) que este jogo de trocas com as suas regras, garante estabilidade acabando por se definir estratégias e definir exigências, fundando um equilíbrio que ainda que não seja igualitário constitui uma espécie de compromisso aceitável. Parafraseando o autor, o interesse fundamental da AP na sedimentação dos processos de qualidade deve passar pela reordenação da estrutura de poder inicial para poder promover a regulação social, a cooperação e a participação ativa de todos, enquanto sentidos e valores fundamentais para o sucesso da praxis na gestão da qualidade. É caso para dizer que “a qualidade depende de diversas

dimensões organizacionais. As atitudes das pessoas face a mudança predispõem favorável ou desfavoravelmente para a melhoria da qualidade” (Domingues, 2001, p. 150). Assim sendo, “a qualidade como realidade multifacetada, ao mesmo tempo realidade objetiva e subjetiva é também uma construção social. São os agentes nesse processo que aceitam ou rejeitam determinados critérios da ação coletiva e organizada, isto é, inscrevem os seus comportamentos dentro de determinados padrões, regras e normas. A qualidade é também uma questão de imagem e de representação da ação organizada que vai de encontro às aspirações da sociedade. Por vezes poderíamos até afirmar que o mais importante não é a qualidade em si mesma, ou seja, a qualidade objetivo do produto, mas a imagem positiva que esse produto obtenha junto dos clientes” (Silva, 2002, p. 258)