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PARTE II FASE DE PLANEJAMENTO

CAPÍTULO 5 GEORAMA: MAPA DA PERFORMANCE DOCENTE

5.2 SEGUNDA REFERÊNCIA DE NAVEGAÇÃO: AUTONOMIA

No lastro da TRM, a autonomia é outro princípio eleito para composição da cartografia da performance docente no processo de elaboração de material didático para EaD. É um conceito bastante demarcado e polêmico na área educacional como se tem tratado desde o Capítulo II.

Na especificidade da modalidade a distância, a autonomia, desde a teoria da Distância Transacional de Moore (1993), é injetada de todos os ângulos no processo de aprendizagem. No conceito de autonomia desembocam discursos que idealizam o estudante, os materiais didáticos, a mediação pedagógica, os ambientes virtuais, os sistemas de acompanhamento e tutoria, as situações de avaliação.

A preconização do estudo autônomo localiza os professores e estudantes dentro de um modelo idealizado. Na sua maioria, os textos que tratam de EaD utilizam, pelo menos uma vez, a palavra autonomia. Ela é, geralmente, difundida em relação à organização individual dos estudantes no seu tempo-espaço de aprendizagem.

Embora o princípio da autonomia tenha todo esse espaço no trato das questões pedagógicas em EaD, a discussão fica restrita à aprendizagem. O processo, centrado no estudante, aparece como condição para superação dos modelos de transmissão-recepção. (PRETI, 1996; ARETIO, 1994; SANCHEZ, 2005; 2006). A maioria dos discursos presentes, inclusive nos projetos pedagógicos dos cursos, compreende o estudante como um “usuário” autônomo do material didático, com capacidade para autodirigir e auto-organizar seus estudos. A partir disso, justificam-se os altos investimentos nos sistemas de acompanhamento e tutoria (MORAES, 2004a), minimizando, cada vez mais, o papel do professor nas suas responsabilidades didático-metodológicas.

Do ponto de vista da performance docente, durante a elaboração de material didático a autonomia se localiza no contorno da transposição didática e das interações em equipes. É condição sine qua non no processo de autorização na perspectiva do evento criativo da performance e das delegações na TRM.

A autonomia, enquanto um dos postulados da performance docente, requer seu esclarecimento do ponto de vista político e didático. A singularidade criativa no processo de elaboração de mediadores didáticos impressos e hipermidiáticos sofre implicações da autonomia enquanto princípio de investigação, decisão e escolha.

Para Guattari e Rolnik (2005), a “função da autonomia é aquela que permitiria captar todos os impulsos de desejo, todas as inteligências, não para fazê-las convergir num mesmo ponto central arborescente, mas para dispô-las num mesmo rizoma” (p.203). Fourez, Lecompte e Mathy (1997), definem autonomia como “a lei que vem de si” (p.136). Mariotti (2001) explica a autonomia como autoprodução, como “alternativa à posição representacionista”, enquanto os seres autônomos “não se limitam a receber passivamente comandos vindos de fora; não funcionam unicamente segundo instruções externas” (p.14). Para Maturana e Varela (2001), “um sistema autônomo é capaz de especificar sua própria legalidade, aquilo que lhe é próprio” (p.56). Carvalho e Struchiner (2002) consideram a autonomia como um sinônimo de escolha, apropriação e reconstrução do conhecimento produzido culturalmente. Esse processo exige responsabilidade, autodeterminação, decisão, auto-avaliação e compromisso.

Algumas nuances do conceito de autopoiese, na proposição biológica original de Maturana e Varela (1997; 2001) e Maturana (2001), auxiliam na compreensão da autonomia. O conceito de autopoiese possui uma elasticidade que permite estendê- lo no lastro conceitual das ciências humanas. A partir dele, três aspectos são fundamentais para compreender a autonomia dentro da heterogeneidade da rede de mediadores H-NH: organização, decisão e a cooperação.

As possibilidades singulares de criação de estratégias organizativas, dialógicas e participativas explicitam os bordas e sombreamentos da autonomia. O ponto de partida e o ponto de chegada é sempre o equilíbrio entre a individualidade e a coletividade. A autonomia ocupa lugar central na vida das redes de mediadores e nos conhecimentos gerados a partir dela. A autonomia torna-se acontecimento na dinâmica ação-reflexão-ação produzindo e sendo produzida pelas interferências, delegações e mediações provocadas por cada um.

A performance docente no processo de elaboração de material didático para mediação pedagógica em EaD possui uma dinâmica que ora é individual ora é interativa nas equipes multidisciplinares. As condições de decisão e ação estabelecem vizinhanças, agenciamentos, momentos de interação e diálogo. Nos

contornos da transposição didática, as práticas sociais de referência, a organização curricular e as orientações das políticas públicas são ângulos que problematizam a autonomia docente.

A autonomia dentro de uma rede de mediadores é marcada por modos de ser, pensar e agir singulares que se explicitam nos estilos de escrita, na fala, no grau de comprometimento com as atividades, na responsabilidade, motivação e formas de interação.

Essas singularidades são frutos do acoplamento da autonomia com a competência e o desejo em virtude da vigilância investigativa que orienta os ciclos de ação-reflexão-ação, da trajetória de formação e das experiências profissionais, sociais e pessoais diferenciadas para cada um dos mediadores humanos que participa da equipe.

A autonomia, definida como organização, decisão e cooperação, possui uma dimensão política extremamente importante. Integra a performance docente no processo de elaboração de materiais didáticos acentuando as características da transposição didática. Move-se no acoplamento com a dimensão didática, científica e ética na dinâmica das ações e criações na rede de mediadores.

Tornar-se autor dos materiais didáticos para mediação pedagógica em EaD gera um processo de afirmação profissional e intelectual para os professores e

designers de mediação. O professor arquiteta uma nova subjetividade, já que

intensifica sua autonomia diante da implementação de um novo modo de ensinar. O material didático, de sua autoria, acaba explicitando o seu modo de organizar as situações de ensino-aprendizagem. Diante disso, a autonomia na performance docente se define por uma questão de potência. Poder fazer. Aumento da capacidade de ação. Ação docente descentralizada na medida em que não é mais orientada hegemonicamente pelo material didático produzido em outras instâncias, como ocorre na modalidade presencial.

Toda filosofia de Espinosa (1983), fundamental nas obras de Deleuze (1998; 2002) e Deleuze e Guattari (1992; 1995 a e b), se fundamenta na tese central de que as coisas se definem por aquilo que se pode fazer, por aquilo que se faz e não por aquilo que “é”, como preconiza a filosofia platônica. Espinosa parte das perguntas: o que um corpo pode? Como aumentar a potência de agir em mim e nos outros? Compreender a autonomia como potência implica aceitar a possibilidade de

tomar decisões, construir ações, enfrentar os desafios, resolver os problemas e provocar acontecimentos, eventos e mediações.

Os mediadores H-NH se diferenciam entre si pelo que podem fazer e pelas ações/reações/delegações que provocam. A autonomia como potência, como poder fazer, se estabelece na dinâmica ação-reflexão-ação.

Em Buarque (1994) encontra-se a seguinte afirmação que faz todo sentido dentro dessa discussão sustentada na TRM.

A autonomia é condição para o trabalho competente. Mas, autonomia não significa isolamento. Lamentavelmente, em muitos casos, a comunidade acadêmica tem uma concepção equivocada de autonomia. Defende um isolamento que se transforma em autonomia cadavérica, que se manifesta pela passividade, pela negatividade em relação aos desejos, impulsos ou sugestões do mundo exterior, ou defende autonomia autista, que se manifesta em um total isolamento ensimesmado, que não toma conhecimento da sociedade. (p.166).

A autonomia, como potência/poder de decisão e ação, constitui um postulado essencial na performance docente, uma vez que implica na politicidade do processo ensino-aprendizagem. Freire (1999) defende a pedagogia da autonomia afirmando que ela tem a qualidade de ser política, uma vez que envolve professores, estudantes, conteúdos, métodos, técnicas e materiais num mesmo movimento espiralado. Para ele, a educação “é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos” (p.78).

A autonomia como potência na performance docente configura-se como

princípio de decisão estabelecendo critérios e parâmetros para a dimensão política no processo de elaboração de materiais didáticos para EaD.