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PARTE II FASE DE PLANEJAMENTO

CAPÍTULO 5 GEORAMA: MAPA DA PERFORMANCE DOCENTE

5.3 TERCEIRA REFERÊNCIA DE NAVEGAÇÃO: DESEJO

O desejo é um conceito pouco comum na literatura científica do campo da didática, da modalidade a distância ou da formação de professores. Talvez até cause certo espanto. Por isso, esclarecer o lugar que ocupa na performance docente requer, de antemão, retirar os decalques que o encobrem.

A palavra desejo, em nossa cultura, designa comumente o movimento impetuoso, intenso e potente, da energia libidinal. E, no entanto, pensando bem, é verdade que estamos acostumados a conceber o desejo a partir de

uma carência, de uma negação e de uma exterioridade – desejamos o que não temos, o que precisaria vir de fora para nos preencher, nos completar. (DOS SANTOS, 1990, p. 209).

Certamente a palavra desejo remete, numa primeira instância, às explicações que tratam da sexualidade. As teorias psicológicas, como a psicanálise, produziram grandes contribuições nisso. O desejo vem relacionado àquilo que não se possui, à carência, falta, privação, ausência, necessidade a ser suprida.

Essa compreensão é construída por modelos como o esquema edípico da psicanálise de Freud (1997a e b) e Lacan; pelos discursos do diálogo socrático no “banquete” de Platão (1983), no qual se lê: “o que deseja, deseja aquilo de que é carente”.

Para o cristianismo, “o desejo é pecado original e origem de pecado”, (CHAUÍ, 1990, p. 37). Ou seja, vem associado ao profano, à transgressão da “lei moral”. Se, como diz Bordieu, (1988) “todo sagrado tem seu profano complementar”, então mesmo assim o desejo ainda poderia ser tratado como “luta de morte pela vida”. (p.58).

Para Guattari e Rolnik (2005), “o desejo aparece como algo meio nebuloso, meio desorganizado, espécie de força bruta que precisaria estar passando pelas malhas do simbólico e da castração, segundo a psicanálise [...] Poder-se-ia enumerar uma infinidade de tipos de modelização que se propõem, cada um em seu campo, a disciplinar o desejo.” (p.260).

A fenomenologia hegeliana compreende o desejo enquanto movimento em torno da mudança desejada. Para Hegel, o desejo é impulso para a ação. Na Fenomenologia do Espírito retrata a luta entre o senhor e o escravo. No fim, os dois vencem. São duas potencialidades.

Marx cria uma teoria a partir da categoria do objeto que interpela a necessidade de uma ação. Retira do indivíduo sua passividade tornando-o ativo. A teoria marxista não trata especificamente do conceito desejo, mas alguns de seus fundamentos poderiam ter ressonância interpretando-o como necessidade de ação diante da transformação do mundo e da sua história. (BORNHEIM, 1990). Segundo Novaes (1990), o “desejo que nasce da razão é aquele que tem sua origem em nós mesmos, e que, portanto, é a própria essência do homem.” (p. 17).

Chauí (1990) percorre a origem da palavra desejo. Deriva do verbo “desidero” e “desiderare” querendo dizer: “cessar de olhar (os astros) ou deixar de ver (os

astros)”. É uma palavra “pertencente ao campo das significações da teologia astral”. (p.22).

Quando se trata de “cessar o olhar para os astros, desiderium é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos. O desejo chama-se, então, vontade consciente nascida da deliberação. Deixando de ver os astros, desiderium significa uma perda, privação do saber sobre o destino, e o desejo chama-se, então, carência, vazio, que tende para fora de si em busca de preenchimento”. (CHAUÍ, 1990, p.22-3, sublinhados nossos).

Chauí (1990), ao analisar a mutação do conceito desejo ao longo da história da humanidade, conclui que, desde Aristóteles, ele está associado à noção de movimento. O desejo está “enlaçado às particularidades da vida de cada indivíduo, de sua geração e educação”. (p.38). A autora, a partir de Espinosa, afirma:

O desejo, apetite de que temos consciência, é a essência atual do homem. O desejo é, pois, conatus, movimento infinitesimal de autoconservação na existência. O desejo é o poder para existir e persistir na existência. É a pulsação de nosso ser entre os seres que nos afetam e são por nós afetados. O desejo, sempre o soubemos, esteve enlaçado ao movimento. Entretanto, antigamente, o movimento era desejo; agora, o desejo é movimento [...] É o vínculo entre desejo e ação que transforma o primeiro no principal objeto da ética e da política. (CHAUÍ, 1990, p.46-7).

O desejo pensado como movimento, pulsão e ação, imprime características à performance docente. Embora a palavra desejo apareça atrelada a grandes mitos, como o da carência, não existe uma única teoria do desejo, mas inúmeras contribuições que permitem estabelecer parâmetros e vínculos com o trabalho docente. Correia (2005) explica a ação ensinar do professor como um vir-a-ser. Para isso, “é necessário o desejo de ensinar, diante de uma profunda valorização da produção de subjetividade. É tendo desejo que se provoca no outro o desejo incansável de construir, destruir e reconstruir valores” (p. 131).

Frente às abordagens fatalísticas do desejo, como carência e falta, contra a condenação filosófica e psicológica do desejo (DUMOULIÉ, 2005), autores como Deleuze e Guattari (1995a; 1997); Guattari e Rolnik (2005); Deleuze e Parnet (1998) apresentam uma nova referência para o desejo. Adotam-no numa perspectiva de singularização, como um processo político de construção de diferentes modos de ser, pensar e agir frente à soberania das regras, do estabelecido.

Nessa investigação, trata-se do desejo na perspectiva das decisões, deliberações, das escolhas que caracterizam a performance docente durante o processo de elaboração de material didático. Dessa forma, o desejo, acoplado aos princípios da competência e autonomia em virtude de uma vigilância investigativa na resolução de problemas, acrescenta um tempero essencial à performance docente. Especialmente, no movimento da autoria de novos textos didáticos, decisão seletiva de determinados conceitos, opção rigorosa dos procedimentos metodológicos, deliberação consciente de estratégias de ensino-aprendizagem e no empenho da incorporação das potencialidades hipermidiáticas na mediação pedagógica.

O conceito desejo, atrelado ao quadro epistemológico da TRM, explicita-se como princípio de ação, como vibração, sustentando uma dimensão ética da ação- reflexão-ação. Nesse sentido, o desejo não se resolve como preenchimento de uma falta, mas contempla ao mesmo tempo conteúdo e expressão, discurso e ação. Propõe um esquema diferente do estruturalismo que ora prioriza o significado ora o significante, da tripartição crítica que separa ciência, política e representação. (LATOUR, 1994).

Lacan vê o desejo “sempre vinculado a um projeto de recuperação impossível, no qual o que deve ser recuperado é tanto o campo libidinal reprimido, constitutivo do inconsciente, quanto o ‘objeto perdido’, a mãe pré-edipiana”. (PEIXOTO JUNIOR, 2004, p.05). A devoração dos objetos e imagens como alimento do ideal fragmenta o desejo. Desvaloriza-o ontológica e politicamente. Entende-o como pesar, voltado para o passado, como falta daquilo que se perdeu, um pathos resumido em anseio e cobiça. (DUMOULIÉ, 2005).

Na filosofia de espinosista e deleuziana, entende-se o desejo como potencialidade, posititividade, latência heterogênea. A associação entre política e desejo aparece como produção de micropolíticas, de novos modos de ensinar e aprender, movimento que acontece no contexto em que se vive. “A problemática micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade [...] Todos os fenômenos importantes da atualidade envolvem dimensões do desejo e da subjetividade”. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p.36). É, por isso, essencialmente atividade de resolução de problemas, de tomada de decisão e ação.

O desejo constitui “todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção

do mundo, outro sistema de valores [...] O desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de construção de algo” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p.261, grifos nossos).

Na perspectiva teórica priorizada nessa investigação, as noções de produção, criação e invenção são inseparáveis da noção desejo. Sempre afirmação. Positividade articulada e criadora de diversos conceitos. O desejo “é o sistema de signos a-significantes com os quais se produz fluxos de inconsciente em um campo social. O desejo é revolucionário porque quer sempre mais conexões e agenciamentos” (DELEUZE e PARNET, 1998, p.94). O desejo é pulsão para tomada de decisão, é princípio de ação.

O desejo não é, portanto, interior a um sujeito, tampouco tende para um objeto [...] Só há desejo quando há desdobramento de determinado campo, propagação de determinados fluxos, emissão de determinadas partículas [...] desejar não é de modo algum coisa fácil [...] desejo que certamente nada tem a ver com falta nem com a ’lei’ [...] o desejo nunca deve ser interpretado, é ele que experimenta [...] Só há desejo agenciado e maquinado [...] O desejo não está reservado para privilegiados; tampouco está reservado ao êxito de uma revolução uma vez feita. Ele é em si mesmo, processo revolucionário imanente. Ele é construtivista, de modo algum espontaneísta”. (DELEUZE e PARNET, 1998, p.105-7-11-12, grifos dos autores).

Os textos deleuzianos têm a preocupação em esclarecer qual é o lugar que o desejo ocupa num quadro teórico que argumenta a favor das multiplicidades, das diferenças, da rede de mediadores. Enquanto princípio de ação se associa com conceitos como agenciamentos, desterritorialização, linhas de fuga amplamente presentes em sua teoria. Todas essas explicações a respeito do desejo se reúnem no conceito de “máquina desejante” ou “agenciamento maquínico” e suas derivações. “Máquina, maquinismo, ‘maquínico’: não é uma mecânica, nem orgânico.[...] a máquina é um conjunto de vizinhança homem-ferramenta-animal- coisa” (DELEUZE e PARNET, 1998, p.121-2). Nessa perspectiva, o desejo é um conceito que ocupa lugar privilegiado na TRM. As mediações acontecem em virtude das pulsões que provocam as ações na relação H-NH.

Máquinas desejantes entendidas como enunciação coletiva do desejo. “O termo máquina envolve uma noção de arranjamento de multiplicidades” (KROEF, 2001, p.03). “O desejo nada tem haver com uma determinação natural ou

espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado”. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.78).

Nessa perspectiva, o desejo se manifesta como princípio de ação na performance docente enquanto movimento de produção, criação. O princípio da máquina desejante deleuziano está fortemente associado à noção de construção/criação tanto filosófica [conceitos], artística [perceptos e afectos] ou científica [proposições]. (DELEUZE e GUATTARI, 1992). O desejo é essencialmente construtivismo. (BOUTANG, 1989; BAPTISTA, 1998).

Foucault (1977), pergunta: como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Perguntas que suscitam muitas respostas e que o autor responde quando afirma que a “ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas de representação) possui uma força revolucionária”. Não existem modelos ou roteiros para responder as perguntas. Mas, existem ações. E é no interior dessas ações, tal como é o processo de elaboração de mediadores didáticos para EaD, que se mapeia essa prerrogativa construtivista inédita.

As teses platônicas, freudianas e lacanianas sobre o desejo são muito mais complexas do que a abordagem que se faz aqui. Implicam numa discussão mais aprofundada sobre a filosofia, fenomenologia e a psicanálise. Das contribuições de Espinosa, Foucault, Deleuze e Guattari sobre o desejo produtivo, sobre a vontade de potência, contrai-se o postulado que se refere à potência das máquinas desejantes. Entende-se o desejo como princípio de ação na performance docente. Como extravasamento da potência. Criação de condições. Trata-se o desejo como conceito filosófico que ressoa na educação gerando novas compreensões sobre o processo de elaboração de materiais didáticos para EaD.

PARTE III PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO