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Yves Schwartz, em aula ministrada em outubro de 2006, na Faculdade de Educação da UFMG, foi interrogado no que se refere à afirmação de que ‘obedecer a uma norma é uma escolha, transgredir também’. Comentava o aluno que, em termos do micro, da renormalização singular, a afirmação acima seria discutível, já que a estruturação social que nos cerca impede certas renormalizações, certas transgressões. Continuava, dizendo que existem sim renormalizações se processando a todo o momento, mas que elas acabam sendo vistas como insignificantes diante do macro de desigualdades que nos cerca. Finaliza o comentário com a seguinte questão: “Como pensar a potência da renormalização diante da estrutura de poder em que está organizada a sociedade brasileira? Como a ergologia nos auxiliaria?”

Schwartz, de antemão citou a experiência de Ivar Oddone, com o Movimento Operário Italiano. Lembrou do quanto esse movimento deu riqueza à experiência operária, ao mudar o olhar dos operários, e de profissionais-pesquisadores, sobre o trabalho real, levando até a reestruturação do próprio conceito. Schwartz defendeu a necessidade de dar vida e força às renormalizações singulares, dar visibilidade ao nível micro. Pontua que de fato o macro (o Banco Mundial, o Governo, etc.) interfere no micro, mas que a relação pode ser invertida, se quisermos. Defende que lançar luzes sobre as renormalizações singulares engendradas cotidianamente é um passo importante para a transformação das práticas sociais.

O debate nos fortalece na defesa de que é preciso apostar no saber construído pelo trabalhador e na sua coletivização enquanto estratégia de transformação da realidade. Um processo permanente, formação contínua que se dá nos coletivos de trabalho. Assumir o desconforto intelectual que essa postura causa é passo importante para a mudança. É preciso tomar como iguais saberes da experiência e saberes científicos, fazendo-os dialogar em função da construção de outros possíveis frente ao embate da atividade.

Criar vias de socialização das experiências, abrir espaço para o novo e dividi-lo, ampliar os espaços de discussão é apostar em uma formação que se afirme enquanto processo de aquisição crítica de conhecimentos que possibilitam a transformação das práticas vigentes. Experiências que podem parecer fugazes, incipientes, emergentes do campo da percepção e que até talvez se dissipem em seguida. Mas é imprescindível a manutenção de sua potência para a invenção de novas subjetividades e de novos mundos. (KASTRUP, 2005).

Em meio às escolhas, aos usos de si, o sujeito se forma, em ato, numa dramática. Escolhas atravessadas por valores. Valores que circulam entre a forma mercantil do trabalho e os outros encontros com a vida social e cultural. É preciso pensar essas circulações dos valores para impedir que o trabalho seja apreendido unicamente pela lógica mercantil. Sua forma emprego está posta, e ignorá-la seria empobrecer a análise. Mas os valores não mercantis e por meio deles, os valores de “bem comum” estão presentes, operantes, eficazes, mesmo se pouco aparentes, nas atividades reguladas pelo dinheiro e as alocações de recursos.

Para Schwartz, promover confrontações entre valores mercantis e “valores sem dimensão” é fundamental para não mutilarmos o trabalho da complexidade que o mesmo representa. É essa confrontação que trata do uso de si problemático que é a atividade. Com o crescimento dos ‘serviços’ na população ativa, entra em cena a necessidade de reflexão sobre a questão da eficácia, pois a descoberta das dimensões enigmáticas, que suprimem a divisão das atividades, se depara com o problema da mensuração dos meios e recursos investidos nesses campos de atividade. (SCHWARTZ, 2004b).

A dificuldade de encontrar uma unidade nas formas atuais do trabalho humano traz a questão: Como fica a questão dos coeficientes nos serviços, já que não há produtos mensuráveis e sim entidades humanas e sociais?

Inserir o conceito de atividade na discussão, e pensar na dialética entre as normas, faz Schwartz caracterizar todo trabalho, inclusive o mais taylorizado, como lugar de uma dramática singular, negociação entre usos de si por si e por outros. Não

se trata, para o autor, afirmar ou não o declínio do trabalho imediato, mas tomar como eixo de discussão o que os serviços trouxeram de diferencial no que se refere à medida de eficácia do trabalho.

Os ‘serviços’ evidenciam a singularidade da atividade, pois põem em evidência a relação singular com o sujeito que opera. Nos ‘serviços’, e a educação aí se enquadra, fica mais vivível o quanto a ação e suas exigências imediatas não podem ser antecipadas e reguladas, fazendo com que a atividade volte-se para o agente, demandando dele um ajustamento entre as heterodeterminações do meio. Diante das exigências institucionais, tendo que se haver com as circunstâncias, as singularidades do encontro, e fazendo uso de seu patrimônio de valores o sujeito é convocado a ‘gerir’, ordenando prioridades, escolhendo.

Esse debate nos subsidia no questionamento: Como pode a eficácia da relação de serviço ser analisada sem que se leve em conta essa heterogeneidade de dimensões implicadas, esse engajamento subjetivo necessário ao humano diante das escolhas a serem feitas?

Não podemos neutralizar o espaço das escolhas, conscientes ou informalizadas, a serem feitas. A codificação possui seu limite. “Há uma partitura que pedimos para tocar: à qualidade da execução, acrescentam-se as fases variáveis de improvisação” (SCHWARTZ, 2004b, p. 44).

Pela existência sempre presente das dramáticas do uso de si, e pelas escolhas sempre necessárias em qualquer circunstância, é preciso insistir nas dialéticas do micro e do macro, nas circulações entre valores sociais, valores humanos e construção, passo a passo, dos atos industriosos. “Reconhecer a imanência de um horizonte de uso nas atividades de serviço obriga a passar pelas dramáticas do uso de si para sondar- lhes o valor econômico” (p. 46).

‘Debates de si com si’ são resultados de decisões ‘microcustosas’, que engendram vários e invisíveis comportamentos de eficácia.

“A gente fica brincando ‘Aqui, você tem alguma coisa com isso? Você não tem nada com isso’! Aí passa um tempo ela está, ‘E aí, você pensou em alguma coisa, como é que vai fazer?’ (risos)”

“Você olha o menino, muitas vezes a gente arranca mesmo o dinheiro do bolso, não é porque a gente é boazinha não, nada disso, é porque a gente quer mesmo. Vamos fazer? Vamos fazer”.

“[...] Eu já tentei ser brava, eu já tentei ser carinhosa, eu já tentei colocar de castigo... eu já tentei tudo. Semana passada tudo que ele fazia de errado eu ia lá e dava um abraço. ‘Vem cá. Deixa eu te dar um abraço. Pra ver se eu te passo alguma coisa boa’. Eu podia deixar pra lá, mas eu não consigo [...]”.

Pequenos e até imperceptíveis detalhes, certamente, mas forjados em decisões de ações ‘microcustosas’. Detalhes conectados a valores fundamentais, que dão energia criadora a esses micro-comportamentos de eficácia. As condições de exercício desse tipo de escolha, o grau de socialização e de colocação em patrimônio desses ‘detalhes’, servirão para abafá-los ou para reforçá-los.

As definições de eficiência e eficácia entram em cena para fomentar a discussão. Eficácia como grau de alcance de um objetivo, e eficiência como economia de custos humanos nas operações. Produto e processo. Mas as duas dimensões não remeteriam ao uso de si? A realidade ‘una' das prestações de serviço não combinariam essas duas exigências aparentemente destintas?

Nenhum ato pode ser inteligível seja como simples implementação retrabalhada das normas operatórias da empresa, do serviço, seja como determinado unicamente pela idéia de que os agentes construíram para si ‘efeitos’ sociais a serem satisfeitos (SCHWARTZ, 2004b, p. 47).

A atividade, e nos serviços isso é mais visível, integra processo e produto. Muitas soldas são possíveis diante das dimensões de eficácia e eficiência. Mas é preciso considerar que os valores, patrimônios, estão em jogo nessa operação. Os valores mercantis operam nas decisões e escolhas a serem tomadas, mas a eficácia e

eficiência também estão atravessadas por valores sem dimensão, que não podem ser avaliados em termos quantitativos.

Schwartz, na aula referida, ministrada na FaE (2006), afirma que colocar em primeiro plano, na análise, essa dialética é se inserir no coração das relações de poder, assegurando que a gestão pelo dinheiro mata a dimensão da vida no social.

De um lado, os valores mercantis, exigências externas, de outro a vida cotidiana, demandando renormalizações. Um campo de tensões que serve de terreno para as escolhas no trabalho. Schwartz propõe um terceiro pólo nessa relação: o pólo da política, do Estado, do ‘bem público’, que deveria, ao estabelecer suas diretrizes e ações, dialogar com os outros dois pólos.

Schwartz nos convida a afirmar que uma política pode exaltar ou mortificar a experiência adquirida na atividade. Quando não se funda nas alternativas de renormalizações, ela desconsidera os valores sem dimensão. O filósofo defende, com isso, a necessidade de dar visibilidade à atividade no seu esforço de renormalizar, afirmando o quanto isso altera as relações de trabalho e poder, pois se trata de adquirir postura de abertura ao outro, numa ética de reconhecimento do saber por ele construído.

E em ato, os valores direcionam as escolhas. Na escola, a eficácia toma sentido parcialmente diferente para a direção, para a coordenação, para as professoras, para as merendeiras, etc. As regulações gestionárias tornam difícil distinguir o que é pertinente a cada um. Essas regras de ação concernem, em maior ou menor grau, às pessoas individuais, às equipes, ao estabelecimento e seus próprios critérios (SCHWARTZ, 2004c).

A atividade é o ponto de cruzamento de um vaivém entre o conteúdo desses dois coeficientes (eficácia e eficiência). E está inserida num contexto social onde os trabalhadores possuem experiências, histórias diferentes, possuindo também diferentes possibilidades ou poderes para colocar esses saberes em prática. Tensão inevitável que justifica, em contrapartida, o uso do termo ‘dramática’ para evocar essas negociações de eficácia (SCHWARTZ, 2004b, p. 50-51).

Essa dramática nos convoca a defesa da necessidade de equiparação dos saberes em jogo na atividade. Eficácia a ser negociada. Isso implica na valorização dos saberes construídos em atividade, dos coletivos operando na negociação do que é preciso e do que possível. A atividade, cotidianamente, é constrangida à escolhas, e a complexidade que é revelada por esse drama precisa ser considerada na implantação e na avaliação de qualquer ação na escola. “Simplificar é o início de qualquer ineficácia” (SCHWARTZ, 2004c, p. 31).

Não se trata de desconsiderar as regras e exigências da gestão pública ou até privada. Mas faz-se fundamental defender o quanto essas dramáticas de eficácia precedem a toda diretriz gestionária que tente abafá-las.