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Um caminho investigativo construído no curso da experiência

De posse do nosso objeto – as práticas formativas vistas sobre o ponto de vista da atividade – e de nossos pressupostos teórico-metodológicos, o que nos movia era a abertura às contribuições que pudessem nos auxiliar nessa caminhada investigativa. Sem nos fechar a qualquer forma ou método, buscávamos alianças que partilhassem de nossa postura ético-política: dar visibilidade às movimentações cotidianas que emergem nos processos de trabalho, aos saberes construídos no e pelo trabalho, com vistas a problematizar as práticas instituídas e expandir as resistências. Sabíamos que nossas escolhas metodológicas produziriam configurações de realidades muito

diferentes. Por isso, o que nos importava era não abrir mão de nossos pressupostos éticos, para assim ir ao encontro das teorias e métodos investigativos que se dispusessem a, conosco, servirem-se à abertura, a construção de outros possíveis.

[...] negar as movimentações cotidianas que emergem nos processos de trabalho pode ter como efeito a negação da experimentação que se constitui nesse processo, bem como a desqualificação desses movimentos como importantes formas de indagar e desmontar os modos de organização do trabalho docente e as políticas educacionais instituídas. Ao mesmo tempo, acentuar a inoperância e passividade dos trabalhadores tem servido para enaltecer e eleger alguns grupos sociais, e até mesmo e próprio Estado, como protagonistas exclusivos das transformações históricas (BARROS, HECKERT e OLIVEIRA, 2005).

Buscávamos diálogo com interlocutores que dividissem conosco essa perspectiva acerca da produção de conhecimento. Uma perspectiva que afirma a vida na sua potência de diferenciação, lutando contra diferentes formas de captura colocadas em funcionamento por modelos padronizados de ser e estar no mundo. Numa via contrária a de pesquisas que buscam culpados pelos acontecimentos, queríamos jogar luz nas estratégias construídas pelos trabalhadores para dar conta da nocividade do trabalho.

Afirmávamos o trabalhador como protagonista de um saber que lhe é próprio, fruto de sua experiência e que é necessário e urgente o encontro desses saberes com os saberes acadêmicos, é:

[...] abrir a perspectiva para um processo de redescobertas e investigações sobre o ´si mesmo´ industrioso e sobre o si mesmo simplesmente: sobre valores e saberes que operam em surdina ou na penumbra e que nos levam a acreditar que são importantes fatores explicativos das situações existentes (SCHWARTZ, 2004a, p.145)

Ir ao encontro da atividade: esse é o convite para quem quer apreender os sentidos e efeitos do trabalho. Não com vistas a apontar os erros, ou a buscar uma forma original/ideal de funcionamento dos ambientes de trabalho, em particular a escola. Não cabe aqui, ao analisar o trabalho, posturas de ressentimento ou de queixa. Trata-se sim de interrogar e dar visibilidade a essa luta, muitas vezes, surda que os trabalhadores travam nos cotidianos dos processos de trabalho. A análise das situações

de trabalho vem como instrumento de investigação dos processos que estão em curso, com vistas a construir, coletivamente, outras/novas formas de organização do trabalho.

Uma tarefa que requer cautela, principalmente na escolha e prescrição de etapas metodológicas. O curso da atividade não pode ser antecipável e por isso, a análise do processo de trabalho vai ganhando contornos e direções somente a partir de sua efetivação. Prática de tateio! Estávamos, e não podia ser diferente, dispostos a colar no cotidiano escolar, já que tínhamos como objetivo apreender a atividade de trabalho dos professores, os saberes construídos na experiência. Queríamos interrogar as práticas formativas a partir da atividade de trabalho, e para isso era preciso estar lá, colados nessa experiência.

Nessa direção, buscamos na análise documental uma via metodológica inicial de nossa caminhada investigativa. Os documentos produzidos pela Secretaria Municipal de Educação, no que se refere ao desenho das políticas de formação continuada, bem como as cartilhas e produções sobre a Escola Plural foram importantes vias de análise. Não tínhamos a intenção de resumi-los, nem sequer validá-los, mas sim utilizá-los para uma análise da realidade que os constituiu e constitui. Acreditamos que também nos documentos é possível mapear os movimentos, sem a pretensão de encontrar algo a ser descoberto.

Após análise e pesquisa desse material, partimos para uma conversa com alguém inserido na formulação e implementação das políticas de formação. Em uma conversa informal com uma funcionária da Gerência de Articulação de Políticas Educacionais da SMED, buscamos delinear quais os contornos atuais dos órgãos/grupos responsáveis pela formação continuada na educação municipal, suas bases político-pedagógica, suas transformações desde a implementação da Proposta Escola Plural. As informações nos serviram para uma primeira familiarização com o terreno, já dando indícios de alguns caminhos a seguir.

A escolha da escola a ser pesquisada foi a etapa seguinte. Na busca pelo que pulsa e pelo que escapa das normatizações, interessava-nos uma escola que valorizasse os saberes da experiência e que brigasse por fazer valer esses saberes na

construção de suas ações políticas e pedagógicas. As referências nos contavam que havia, nessa escola, a construção, pelos professores, de um projeto de formação que indicava autonomia e vontade de transformação.

A Vivência Institucional41 se configurou como um primeiro momento de tateio da realidade a ser investigada. Habitar a escola se constituiu como um primeiro passo já que as práticas eram o nosso foco de investigação. Era preciso formar vínculos, familiarizar-nos com o ambiente. Estabelecer relações de cumplicidade e de confiança era tarefa fundamental diante da proposta de dialogar com a experiência dos trabalhadores.

Sempre colados ao pressuposto de que os caminhos investigativos vão se construindo no curso da experiência, já que a realidade é movente, precisávamos ser parceiros da comunidade escolar para que o trabalho tivesse eco na realidade da escola. Mas o lugar do pesquisador que observa, analisa e avalia, sempre de longe para não “contaminar” os dados, já estava endurecido na escola, quase que natural. Tentávamos mostrar que estávamos juntos deles, num compromisso ético e político de buscar formas para contribuir com a transformação das situações que emperravam o trabalho, numa relação dialógica, de conexão entre os saberes acadêmicos e os construídos pela experiência. Mas a desconfiança atravessava os sorrisos educados ao nos receber e ouvir o que tínhamos a dizer.

Apresentamos então, à direção da escola, nossa proposta de trabalho/pesquisa, fazendo questão de evidenciar seu caráter de abertura à construção e desconstrução permanente dos procedimentos investigativos. Olhares curiosos, ora desacreditados, ora indiferentes, pairavam sobre nós. Olhares que nos diziam coisas que as palavras muitas vezes não conseguiam dizer. Tentamos dizer que não estávamos ali para espionar e apontar erros, explicamos nosso compromisso com um outro olhar sobre a pesquisa, uma outra forma, que participa, que acredita, que aposta na invenção, e que esse era inclusive o critério de escolha da escola a ser pesquisada. O trabalho coletivo

41 A Vivência Institucional, enquanto ferramenta metodológica com raízes na Análise Institucional, propõe a criação de vínculos através da presença direta no espaço de pesquisa/intervenção. Um momento necessário à formação de parcerias e à quebra de especialismos.

e inventivo foi o fator determinante na opção por essa escola. Mesmo com todos esses argumentos, era difícil não sentir o ar de “pouca importância”. Longe de culpar os que nos ouviam, sabíamos que muitos seriam os fatores a produzir essa forma de ser e atuar na educação. A aceleração do tempo, a sobrecarga de trabalho, o lugar construído do pesquisador-espião, eram apenas alguns desses fatores. Mas enfim, percebemos o quão difícil seria nossa tarefa.

Após nossa apresentação, estava, se assim o desejássemos, dado o aval para o início da pesquisa. Mas reafirmamos a importância do grupo de professores “topar” o trabalho, e que só dessa forma faria sentido uma investigação que tinha como pressupostos tudo aquilo que havíamos mencionado. Após alguns dias nos foi então dado o aval definitivo, dizendo que estavam todos de acordo. Partiríamos então ao trabalho.

Os desafios já de início eram grandes. Do lugar de espectadores que esperavam que ocupássemos, queríamos transpor ao de parceiros, cúmplices. Precisávamos, contudo, encontrar formas de isso não parecer “conversa” de pesquisador. Mergulhamos então, na escola, de corpo inteiro, não só de cabeça. E os becos, os interstícios eram nossos lugares prediletos. Ocupar na escola os lugares que, a olho nu, pouco interessariam a um pesquisador tradicional do trabalho docente, é fundamental para a captura das dramáticas que compõem o cotidiano de trabalho. Habitar a escola, mas já de olho naquilo que escapa, buscando movimentos que apontam para aquilo que difere e grita por mudança. No cafezinho, na cozinha, no recreio, enfim, no que foge do prescrito e indica exatamente a potência da atividade.

Bons encontros, casos, histórias... Nos interstícios escutava-se o tom da respiração da escola. Fala-se do menino, da merenda, do marido, do presidente, da pesquisadora. Todos falam. O aluno, o vigia, a professora, a coordenadora, a auxiliar de limpeza. Não nos interessa o dono delas. Nem acreditamos existir algo por trás do que é dito. O que nos atenta é o que elas produzem, o que elas enunciam/denunciam. O lugar da academia, por exemplo, como aquele lugar de quem sabe e corrige era

produzido/reproduzido pelas falas42 :

“Você vem cá pra ver o quê que a gente faz de errado, né? Tô brincando, é pra ajudar a consertar os erros, eu sei”.

“Gente, essa aqui é a Auriseane, ela faz pesquisa aqui na escola, ela observa tudo que está acontecendo nas salas, na coordenação, pra depois dizer pra gente o quê que precisa ser melhorado.”

“Nossa, eu aqui falando isso tudo, esqueci da mocinha da Universidade. Ai meu Deus, era segredo. (risos) Isso é coisa que a gente aprende é no dia-a-dia, na Universidade isso não pode não. E agora, meu Deus do céu? Você não conta pra ninguém não? (risos)”

“Mas eu? Por que você quer me entrevistar? O quê que eu fiz de errado?”

O lugar da pesquisa já estava bem delimitado na escola:

“Acho ótimo a pesquisa, desde que seja dado um retorno. Você não acha? Senão o que a gente ganha em troca?”.

Pesquisador prestador de serviços. Instaurou-se um modo de fazer pesquisa que supõe a idéia de uma observação neutra, para a qual é necessário permissão, e que gere um posterior resultado. Uma lógica de mercado e também linear, já que um acontecimento é posterior/requisito ao outro. Espera-se um produto. A contribuição, após a análise dos dados, deve ser visível aos olhos. Olhe, aponte os erros, mas me diga como resolvê-los. Uma forma de conceber a pesquisa engessada, fechada a outras possibilidades de contribuição de um pesquisador na escola.

É preciso que interroguemos os efeitos produzidos por essas práticas de pesquisa. Não buscamos soluções prontas, não há receitas, mas nossa ética exige que problematizemos inclusive nossas próprias práticas. Pela experimentação vamos

42As frases que serão trazidas no decorrer do trabalho, entre aspas e em itálico, são falas dos diferentes integrantes da escola. Elas não seguirão os padrões de citações literárias/acadêmicas por uma opção nossa de que elas componham o texto, misturando-se às nossas falas.

construindo nossas próprias ferramentas de investigação, nos interrogando a todo o momento se elas estão sendo pertinentes para essa ou aquela “trilha” a seguir.

Nesse sentido a pesquisa inventiva se aliança com a proposta da cartografia. A cartografia, como metodologia, vem sendo apresentada e problematizada contemporaneamente, por autores como Gilles Deleuze e Feliz Guatarri, num movimento de resgate da dimensão subjetiva da produção de conhecimento. Contrapondo-se à topologia quantitativa, que categoriza o terreno de forma estática e extensa, a cartografia remete a um acompanhamento dos movimentos invisíveis e imprevisíveis que vão transformando a paisagem vigente, em seus acidentes e suas mutações. A cartografia faz alusão a um processo dinâmico de captura das intensidades, das sensações, muitas vezes fugidias, nos encontros com o objeto.

Trata-se de um “fazer pesquisa” que supõe intenções de quem a percorre, e por isso o método e a sua invenção são a própria pesquisa. Na pesquisa cartográfica, o tempo pulsa, pois se evidenciam os modos pelos quais os sujeitos percebem, experimentam e narram a passagem do tempo em suas próprias vidas. Interessa aqui a construção de estratégias críticas que não apenas contestem arranjos estruturais endurecidos e injustos, mas que também examinem a nossa cumplicidade nesses arranjos. Como nos propõe Nietzsche (1987) ser mestre pela interrogação sustentada. O que se registra são os encontros e não os objetos, encontros dos movimentos do pesquisador com os movimentos do território de pesquisa. “[...] O cartógrafo possui a vontade do estrangeiro e se implica com a atitude de lutar por manter a dobra flexível [...]” (KIRST et al, 2003: 91).

Adotamos a cartografia como um dispositivo, que desconstrói uma forma de pesquisa onde sujeito e objeto ocupariam posições determinadas, promovendo discussão em torno do fazer pesquisa.

A cartografia participa e desencadeia um processo de desterritorialização no campo da ciência para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo (MAIRESSE, 2003, p. 259).

Um encontro onde objeto e pesquisador já não são mais os mesmos. O que se pode apreender são os fenômenos efeitos desse encontro, no instante em que ocorre, entre uma dobra e outra. Mairesse (2003) nos diz que, desse modo, a pesquisa se realiza como uma viagem por outros universos de significação que convoca um novo olhar sobre as paisagens, estabelecendo uma nova interface com o mundo e com os sujeitos. “Assim é, quando nos deixamos atravessar e redesenhar por outros que nos visitam, muitas vezes se instalando e se tornando parte de nós mesmos” (p. 260).

Não procurávamos verdades. Íamos estendendo na superfície as práticas, tentando ‘desenovelar’ as tramas, em um esforço de captar forças, tanto as que seguiam o fluxo das ‘verdades’ quanto as que insistiam e rompiam seus contornos. Tateio. Queríamos nos conectar com a dispersão de acontecimentos43 em suas

múltiplas direções.

E para acompanhar os movimentos, as forças, íamos atravessando o cotidiano da escola em toda sua intensidade. De posse de nosso caderno e caneta para registro do que marcava, íamos de olho naquilo que trazia à tona todo o patrimônio que fazia aquela escola pulsar tanto.

O incômodo inicial com a nossa presença foi, aos poucos, transformando-se em cumplicidade. Passamos a ser convidados para atividades das mais diversas: elaboração de documentos, planejamentos, viagens. Sair do lugar de polícia, de especialista, e de muitos outros em que fomos colocados, foi fator determinante para a captação dos valores, das experiências, da história que traziam aquelas pessoas. Na medida em que iam percebendo, e acreditando, que queríamos analisar as situações de trabalho para dar visibilidade às lutas travadas nos cotidianos, passamos a ser aliados na construção de outras/novas formas de trabalhar.

De olho nas singularidades das experiências, queríamos cartografar os movimentos que diziam das dramáticas do uso de si, das escolhas feitas e do custo que

43 Deleuze e Guatarri chamam de acontecimento o modo como as forças, que constituem a matéria das coisas, se compõem, se decompõem e criam novos arranjos.

elas possuíam, luta e embate cotidiano entre o que se quer, o que querem de você e o que é possível fazer.

Sem modelos, mas com pressupostos e patrimônios, fomos inventando a pesquisa ao fazê-la.

CAPÍTULO 3

O chão da escola: um destino a se viver