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Buscamos aliança em uma perspectiva que entende que pesquisar é uma atividade que não pode realizar-se a partir de uma “impossível exterritorialidade” (Schwartz, 2004a). E por isso conceitos e valores não podem ser tomados em separado. É preciso que se interroguem a todo o momento, desestabilizando formas já cristalizadas. E para isso é preciso que o pesquisador “se transporte ao local da atividade para compreender a unidade operante das atividades - e dos valores mais ou menos ‘marginalizados’” (ibidem).

O trabalho é um campo composto por normas instituídas e instituintes, algo em constante movimento. É o conceito de atividade que nos leva a essa dinâmica. A atividade humana nos remete à forma pela qual o sujeito escapa sempre, a seu modo. O trabalho é corporificado por sujeitos reais, em face de situações reais, marcadas pela imprevisibilidade. Movimentação, invenção, engajamento.

Atrelada a essa perspectiva, está a noção de ser humano enquanto ser potencialmente ativo, dinâmico, que traz o médico George Canguilhem (2002). Entender o humano como processualidade é compreendê-lo como um ser industrioso, em atividade. Um ser que se caracteriza pela capacidade de ser normativo, ou seja, essa possibilidade que a vida encontra de instituir normas em condições diferentes do meio. E à medida que cria suas normas, cria seu próprio meio e a si mesmo. Quando temos essa concepção como premissa, entendemos que a produção de saberes deve estar, nesse sentido, vinculada também a essa dinâmica.

Cada vez mais, profissionais da análise do trabalho têm recorrido ao conceito de atividade em suas produções. A ergonomia de origem francófona é uma das percussoras de um tipo de proposta que traz para a análise das situações de trabalho esse caráter singular da atividade humana. A perspectiva ergonômica, ao apontar a defasagem existente entre trabalho prescrito e trabalho real, evoca o sujeito da atividade e a inteligência (forças e valores) que ele mobiliza para conseguir realizar o

trabalho. As condições determinadas e os resultados antecipados descritos no trabalho prescrito não são, de fato, o que se obtém com o trabalho real, aquele efetivamente realizado pelo trabalhador. Há, nessa distância, um elemento fundamental: a atividade humana.

E o que é a atividade humana, na qual se inclui o trabalho? Schwartz (2004b) abre debate sobre a definição de atividade como ‘oposição à inércia’, problematizando a discussão ao interrogar se essa não seria uma definição simplista: “a atividade de trabalho poderia não se sentir comprometida profundamente por essa definição?” (p. 38). O autor provoca dizendo ainda que Canguilhem, em 1966, receava pelo risco que corria ao definir a vida como oposição à inércia e à indiferença. Schwartz lembra que o próprio Canguilhem extrapola essa definição quando faz referência à atividade como resistência a toda situação de heterodeterminação das normas industriosas.

Schwartz problematiza novamente quando questiona a defesa dos ergonomistas37 de que o trabalho seria uma atividade socialmente finalizada, ‘atividade imposta’. O autor argumenta de “[...] definir o trabalho pela imposição não é anular em grande parte a inclusão do trabalho na atividade vital concebida como oposição à inércia e à indiferença [...]?” (p. 39). Para o autor, incluir o trabalho na atividade vital, sem desconsiderar as exigências específicas de todo trabalho social, é ater-se à sempre tentativa de renormalização do meio de trabalho, segundo suas condições. O trabalho seria apenas ‘uso de si por outros’, ou haveria, em qualquer atividade, sempre uma convocação ao ‘uso de si por si’?

Com base nesse ponto de vista é que Schwartz (2004b, p. 39) defende que “datar o ‘nascimento’ do trabalho quando da emergência do regime salarial, é cortar suas comensurabilidades – mais ou menos frouxas, mais ou menos estreitas – com as outras formas de atividade humana, por exemplo, com as atividades tradicionalmente assumidas pelas mulheres na família ou no grupo social [...]”. Por isso o autor afirma que tanto uma atividade humana qualquer, quanto um trabalho economicamente caracterizado, são comensuráveis a uma experiência, “a de uma negociação

37 Fazendo referência a um texto coletivo produzido por ergonomistas: “L´activité de travail: une forme d´activité humaine” (GUÉRIN et al., 1991).

problemática entre normas antecedentes e as normas de sujeitos singulares, sempre a serem redefinidas aqui e agora”. Nas duas ações humanas há circulação de valores e de patrimônios.

Esse sentido mais amplo traz para a atividade a convocação de todos os ‘usos de si’. E é isso que aponta para a grandeza do drama presente em toda atividade humana. É nas dobraduras, nos lugares escondidos que estão as heranças, as rupturas, os valores que norteiam escolhas e condutas.

Canguilhem (2002) é quem nos ajuda a compreender que na medida em que a vida exige e impõe novos movimentos, o sujeito, lançando mão de sua capacidade normativa, renormaliza. O trabalho, como manifestação da vida, também escapa à antecipação rígida, e essa capacidade do humano precisa ser evidenciada para compreendermos o trabalho como um lugar de debate de normas e valores, no qual o sujeito é constrangido a renormalizar diante das prescrições e das variabilidades do meio.

Schwartz (2006) nos diz que, como atividade humana, o trabalho é lugar permanente de microescolhas. O que ocorre é uma tentativa do vivo de negociar com o meio, e por isso se opera com a concepção do trabalho como “usos”. É preciso “um sujeito no coração mesmo do trabalho, sem o qual não há trabalho, sem o qual nada se executa” (SCHWARTZ, 2000b). Trabalho, então, não é pura execução, mas uso. Uso de si pelos outros – aquele que buscam fazer de você –, e uso de si por si – aquele que cada um faz de si mesmo.

Se o trabalho é sempre encontro, destino a ser vivido, há uma ‘dramática’ em que sujeitos têm que fazer escolhas, arbitrar entre valores diferentes, muitas vezes contraditórios. Por isso não há situação de trabalho que não convoque ‘dramáticas do uso de si’.

Também quando se diz que o trabalho é uso de si, isto quer então dizer que ele é o lugar de um problema, de uma tensão problemática, de um espaço de possíveis sempre a se negociar: há não uma execução, mas uso, e isto supõe um espectro contínuo de modalidades. É o indivíduo no seu ser que é convocado, são, mesmo no inaparente, recursos e capacidades infinitamente

mais vastos que os que são explicitados, que a tarefa cotidiana requer, mesmo que este apelo possa ser globalmente esterilizante em relação às virtualidade individuais (SCHWARTZ, 2000b, p. 194)

Fazer uso da atividade humana como eixo de análise é, portanto, pressupor que o trabalho nunca é somente execução de normas e prescrições por parte dos humanos. No trabalho, assim como na vida, estão em jogo saberes, valores, construindo história, em processo constante. É isso que permite ao humano encontrar/inventar soluções diversas para os problemas que lhe surgem. O que pode ser em um momento obstáculo, em outro pode ser meio de ação, pois se trata de um homem coletivo que se constrói a partir de suas possibilidades, necessidades e demandas, reinventando-as, à medida que inventa a si e ao mundo, e não sendo dominado por elas.

A Ergologia se configura, nesse sentido, como potente intercessor nas pesquisas sobre atividade humana, uma vez que, ao colocar a atividade como centro de análise. E essa centralidade direciona o foco à toda complexidade que envolve a atividade do trabalhador: intenções, valores, competências, saberes, sentidos, etc.

Adotar o ponto de vista da atividade humana como postura epistemológica é contribuir para superação de dicotomias presentes até hoje em muitas pesquisas, principalmente as que insistem nas fronteiras sujeito-objeto, ação-conhecimento, saber- fazer. Na perspectiva da atividade, o trabalho é apreendido em toda a sua complexidade. É principalmente nos nós de tensão, nas fronteiras, nos interstícios que essa atividade se manifesta como aquilo que escapa, que está para além dessas prévias determinações.

A Ergologia não se configura, nessa direção, como uma disciplina, e sim como um conjunto de diretrizes para a produção de conhecimento sobre a atividade humana. Desenvolvida pelo Departamento de Ergologia da Universidade de Provence38, na França, essa perspectiva metodológica auxilia na compreensão do que o sujeito, em

38 O Departamento de Ergologia foi criado em 1997 e vem promovendo várias intervenções e desenvolvendo pesquisas que adentram pelo mundo do trabalho. O Professor Yves Schwartz, coordenador científico do departamento, foi figura importante para a inserção dessas idéias no Brasil em 1997, e desde então vêm crescendo a cooperação com pesquisadores, grupos de pesquisas de diversas universidades brasileiras em diversas áreas do conhecimento.

atividade, põe em jogo para executar o trabalho prescrito e cumprir suas obrigações. Como dito, o trabalho solicita arbitragens, engajamentos, escolhas, reajustamentos para os imprevistos que a tarefa exige, e são essas convocações que dão ao trabalhador um lugar original no desenvolvimento da atividade, no conhecimento sobre seu trabalho e na sua transformação.

A abordagem ergológica nos oferece um quadro apropriado para integrar aportes das diversas disciplinas que tratam do trabalho e desenvolver uma abordagem efetivamente transdisciplinar39, condição para que se recupere o trabalho em toda sua complexidade no momento mesmo de sua realização in loco.

Ao propor um triângulo de análise que mescla valores-saberes-atividade, a ergologia incorpora e aprofunda as contribuições da ergonomia da atividade, resultando numa reflexão epistemológica sobre a produção de conhecimentos sobre trabalho nas ciências humanas. Nesse sentido vale ressaltar que a ergologia assume as contribuições da ergonomia da atividade francesa como uma propedêutica pertinente a uma epistemologia interessada do trabalho humano (CUNHA, 2006).

O debate entre as normas e valores presentes no trabalho é um pressuposto básico dessa perspectiva, que entende que só em confronto com a experiência do trabalhador é que os limites do conhecimento científico podem ser superados e desenvolvidos, e vice-versa. Trata-se de um convite a, na análise do trabalho, partir das experiências/produção de saberes que os trabalhadores constroem na sua lida cotidiana, incluindo impasses e desafios que se lhe apresentam. Uma proposta de análise que vê na relação entre conhecimento científico e experiência singular no trabalho cotidiano um compromisso ético, uma busca solidária por possibilidades de transformação de situações de trabalho.

39 O Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) define transdisciplinaridade como aquelas situações do conhecimento que conduzem à transmutação ou ao traspassamento das disciplinas, às custas de suas aproximações e frequentações. “Além de sugerir a idéia de movimento, da freqüentação das disciplinas e da quebra de barreiras, a transdisciplinaridade permite pensar o cruzamento de especialidades, o trabalho nas interfaces, a superação das fronteiras, a migração de um conceito de um campo de saber para outro, além da própria unificação do conhecimento”. É importante ressaltar que não se trata do caso da divisão de um mesmo objeto entre (inter) disciplinas diferentes (multi) que o recortariam e trabalhariam seus diferentes aspectos segundo pontos de vista diversos, cada qual resguardando suas fronteiras e ficando, em maior ou menor grau, intocadas. Trata-se, antes, de uma interação dinâmica, contemplando processos de auto-regulação e de retro-alimentação, e não de uma integração ou anexação pura e simples (DOMINGUES, 1999).

A sinergia entre esses dois pólos do saber é condição fundamental, nessa perspectiva, para a produção de conhecimento sobre o trabalho humano. A Ergologia lança, nesse esforço, um Dispositivo Dinâmico a Três Pólos, que propõe exatamente a articulação entre os saberes. O primeiro pólo refere-se aos saberes acadêmicos, produzidos pelas diversas disciplinas, é o pólo dos conceitos; o segundo diz dos saberes produzidos pelos trabalhadores, nas atividades de trabalho, é o pólo das ‘forças de convocação e reconvocação’40. E para que o encontro desses dois pólos seja fecundo, faz-se necessário um terceiro pólo, o da ética, que se articula sobre uma determinada maneira de ver e interpretar o mundo, concebendo o outro como seu semelhante, alguém com quem se aprende coisas e, principalmente, um outro de quem não se presume saber o que faz, porque faz, e como tem convocado e (re) convocado seus saberes e valores. “Entre esses três pólos, não existe começo nem fim, nem anterioridade de um sobre os outros, eles estão em relação dialética. O conceito de atividade nasceu desse dispositivo a três pólos e, ao mesmo tempo, justifica-o e o exige”. (SCHWARTZ, 2000a).

O Dispositivo vem como proposta de construção de um regime de produção de saberes, que, segundo Schwartz “(...) gera, ao mesmo tempo, efeitos sobre a produção de conhecimento e sobre a gestão social das situações de trabalho, pois há efeitos recíprocos entre o campo científico e o campo da gestão do trabalho” (ibidem). Uma proposta que acaba por provocar um certo deslocamento na concepção hegemônica de produção de conhecimento, na medida em que aponta para o aprendizado mútuo entre a academia e os agentes do trabalho, afirmando ainda que é só por meio desse diálogo, considerando toda a imensidão de saberes em ambos os pólos, que se pode conhecer, compreender-transformar o trabalho.

Fazer uso dessa ferramenta de trabalho exige certa humildade e provoca certo “desconforto intelectual”, como diz Schwartz. Quando se tem como “objeto” a atividade

40 As próprias palavras de Yves Schwartz descrevem melhor esses conceitos: “Os protagonistas da atividade de trabalho, portadores desses saberes, têm necessidade destes materiais para valorizar seus saberes específicos e transformar sua situação de trabalho. Descrições econômicas, modelos de gestão, categorizações sociais são encontrados sem cessar em seus meios de trabalho e é preciso tratá-los e, novamente, (re)tratá-los.” (2000a)

humana, ter-se-á sempre um encontro singular, que não pode ser antecipado. É preciso, por isso, ater-se para o fato de que todo procedimento metodológico diz de certo momento histórico, social e político, e que precisa ser, constantemente, reconfigurado, de acordo com o meio. Lançar mão de a prioris, admitindo que generalidades e modelizações devem ser sempre reapreciadas é tarefa complicada e postura que só se incorpora no contato com o outro na sua atividade.

Além de humildade, esse novo olhar, segundo Schwartz (2000b) exige prudência, principalmente na maneira de qualificar as mudanças ocorridas no cenário atual. É preciso prudência, pois se fala sempre de algo pertinente à atividade humana. Nas palavras do filósofo, “se não se faz um esforço de ir ver de perto como cada um não apenas ‘se submete’, mas vive e tenta recriar sua situação de trabalho, se não se faz esse esforço, então se interpreta, julga-se e diagnostica-se no lugar das próprias pessoas e isso não pode produzir resultados positivos” (ibidem).

No seio de uma rede de heterogeneidades é que a vida se forja. Logo, apreender a complexidade da vida é tarefa que se faz direcionando os olhos para a rede e para os processos que ela constitui, e não para os sujeitos. Por isso, as referências conceituais e metodológicas oferecidas pela Ergologia vêm sustentando nossos questionamentos.