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CAPÍTULO II FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LEXICULTURA : IDENTIDADE DOS

A Terceira Margem do Rio

3.8. O texto: O travesti está na terceira margem do rio

3.8.1 Situando a Lapa

A Lapa, segundo Joaquina (2013) passou por três momentos históricos: O primeiro refere- se ao período da Belle Époque, em que a região foi chamada de Montmartre Carioca, até por volta da década de 50. Essa região atraía um público diferenciado em função das atrações noturnas, vida boêmia: bares, botequins, gafieira, partido alto: turistas, intelectuais, sambistas. Surge a figura do malandro carioca.

Fonte:http://www.localnomad.com/pt/blog/2013/02/01/a-boemia-no-bairro-da-lapa-no-rio-de- janeiro. Acesso em 11/12/2014.

Com o passar do tempo, segundo o mesmo autor (p. 49) o espaço que era frequentado pela malandragem aos poucos cedeu espaço à prostituição aos travestis, aos michês. Silva (op.cit: pp. 44-45) que a Lapa é constituída a partir de ruas movimentadas. Essas ruas são constituídas de casarões e foi testemunha de um fenômeno histórico ocorrido nas décadas de 60-70, que foi a expulsão das prostitutas femininas pelos travestis, que acabaram por ocupar o bairro. Houve uma briga pela ocupação do território.

Os travestis eram e são conhecidos pelos shows artísticos e vida ligada à prostituição. Dentre os atores que ocupavam esta região, além das prostitutas, michês, homossexuais, encontramos um personagem importante, que é Madame Satã, que foi um símbolo emblemático, símbolo dessa região, marcado pelos shows e pela violência e pela truculência.

Por fim, a decadência do bairro, segundo Silva (op.cit: p. 51) houve a demolição dos imóveis construídos na Lapa pelo Prefeito Pereira Passos e pelo Governador Chagas Freitas sem necessidade. Essa decadência é apontada pelo cronista, pela qualificação do espaço que mantém construções antigas, velhas casas, fachadas barrocas/neoclássicas. Este local passou a ser ambiente ligado à prostituição de travestis, presença dos michês, entre outros.

A Lapa mudou, evoluiu e também os seus personagens. Houve a saída de cena do malandro e a entrada de um outro: o travesti. Essa mudança relativa ao malandro, podemos verificar nos trechos da música “Homenagem ao malandro”, de Chico Buarque, que seguem transcritos:

“Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem

Que conheço de outros carnavais Eu fui à Lapa e perdi a viagem Que aquela tal malandragem Não existe mais

(....)

Mas o malandro pra valer - Não espalha

Aposentou a navalha

Tem mulher e filho e tralha e tal

Dizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha

Num trem da Central’.

(HOLANDA, Chico Buarque de. Ópera do Malandro. In.: Homenagem ao Malandro. Polygram. 1979. Disponível em http://bit.ly/1zngwxV. Acesso em 21/12/2014

Segundo o mesmo autor nos diz (2007: p 47)

“Muitos desses personagens têm a Lapa como um elemento simbólico significativo da articulação de suas identidades. Em seus redutos minúsculos demarcados a tabique, apalpam ruínas de uma cidade sagrada. Estão sepultados entre tais ruínas. O fracasso deles, a deterioração progressiva de suas vidas confundem-se assim com o fracasso da Lapa, com a própria deterioração da Lapa. Nesse contágio simbólico, parecem nobilitar a própria decadência, confundindo-a com a decadência de um bairro – tema de inúmeras músicas populares, filmes, programas de televisão, livros. Sobretudo quando o personagem viveu tal época, conheceu certas personalidades míticas, está, enfim, aureolado pela condição de testemunha”.

Atualmente, a Lapa encontra-se dominada pelos traficantes que rondam fortemente armados; para uns protegendo a comunidade, para outros, trazendo à luz o ilícito, o crime organizado. Segundo reportagem do dia 28/08/2012, junto ao G1, segue transcrita:

O comércio e o consumo de drogas é praticado de forma liberal em um dos lugares mais procurados por turistas no Rio de Janeiro, a Lapa, na região central da cidade. A compra e a venda acontecem na rua onde funciona a sede da Polícia Civil e a poucos metros da Polícia Militar. A região tem oferecido aos visitantes mais do que as atrações habituais das casas noturnas, conforme mostrou o Jornal Nacional nesta segunda-feira (27). (sic)

Fonte:http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/imagem-mostra- trafico-de-drogas-na-lapa-proximo-sede-da-policia-no-rio.html. Acesso em 08/01/2015

Além de ser o local em que possui muitas diversões noturnas, shows, também é o local em que os jovens se drogam livremente, fazem comércio livre de drogas. Estes pontos de comércio estão próximos ao Departamento de Polícia, Tribunal Regional do Trabalho e à patrulha diária dos policiais. Os comerciantes e os consumidores não se intimidam com a presença dos policiais. A seguir, o enunciador apresenta o motivo que o levou a construir o presente texto. Ele juntamente com dois amigos Miguel Faria Jr50 e Ruy Solberg51foram à Lapa, que é um bairro do Rio de Janeiro.

O enunciador, isto é, aquele que produz o texto; enquanto o leitor é o enunciatário, para quem o enunciador está escrevendo o texto. Temos um leitor virtual. O enunciador estabelece um diálogo com o enunciatário pelo estabelecimento da relação de um “EU” que se dirige a um “TU”.

O enunciador procura o primeiro contato com o leitor. Ele nos apresenta alguns fatos, que a princípio parecem desconexos, que obriga o leitor a utilizar a memória enciclopédica e buscar os referenciais para entender o texto

Assim, ele não trabalhará a destruição, à tragédia, conflitos humanos e religiosos num sentido amplo.

O enunciador utiliza-se da forma imperativa e da função fática para estabelecer esse diálogo. Observemos o exemplo:

“Não vou falar de guerra- danem-se os religiosos que destroem o mundo em nome de Alá e Jesus.” (p. 169)

Essa forma de iniciar o texto, desperta no enunciatário o interesse e suscita uma pergunta: “sobre o que falará?” Deixando em suspenso essa ideia, ele procura já lançar o primeiro gancho para fisgar o leitor.

50 Miguel Faria Júnior é cineasta e roteirista carioca. Dentre os filmes que dirigiu podemos citar: A república dos assassinos (1979) e O Xangô de Bakerstreet, entre outros. Ele ganhou prêmios de melhor filme e

melhor diretor no Festival de Gramado (1990), com a produção Stelinha. Fonte:

http://site.videobrasil.org.br/acervo/artistas/artista/394382. Acesso em 20/10/2014.

51 Ruy Solbergé cineasta e ator carioca. Atuou nos filmes Ganga Zumba (1963), de Cacá Diegues e Onde a terra acaba (2002), documentário de Sérgio Machado. Ele dirigiu o filme O homem morcego (1980),

documentário sobre o cineasta brasileiro Mário Peixoto.

O enunciador parte de aspectos religiosos representados pelo Cristianismo e pelo Islamismo. Estas religiões têm como ponto de ancoragem o Estado de Israel. O autor parte de um sentido amplo do cenário, no entanto, como já foi dito acima, sobre o qual não falará.

Saindo da esfera ampla, o enunciador começa a situar especificamente o cenário. Logo, começa pela Lapa. Assim, utiliza-se do recurso do gênero descritivo para começar a apresentar este bairro do Rio de Janeiro..

Segundo ele, o bairro é:

a) Vivo museu de velhas casas deslumbrantes; b) Botequins;

c) Bordéis;

d) Casas de pastos;

e) Fachadas barrocas/ neoclássicas.

Por meio da descrição, o enunciador apresenta o espaço. O primeiro espaço aparece com a inversão de adjetivos: “vivo” museu/ “velhas” antepostos ao substantivo masculino museu e ao substantivo feminino casas e vem intensificado pelo adjetivo “deslumbrantes”. Temos aqui de um lado: algo que tem vida; de outro, um espaço em que são mantidos objetos, antigos; aquilo que não é novo; e do outro: aquilo que causa fascínio. Denota uma antítese, isto é, oposição entre os termos, bem ao estilo Barroco.

Logo a seguir, temos o vocábulo “botequins”, que se trata de um estabelecimento comercial que serve comida, café e bebidas. Atrelado aos “botequins” temos os “bordéis” que são estabelecimentos comerciais que são utilizados para a prostituição, libertinagem, tendo como fonte o dinheiro de um lado; e a satisfação do cliente do outro.

Casas de pastos referem-se aos estabelecimentos muito comuns no Brasil e em Portugal, fim do século XIX, que serviam almoços e jantares. Temos neste local uma mistura de taberna, restaurante de petiscos. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa (2001: p. 719), que segue transcrito: “(...) restaurante modesto que serve refeições a preços módicos”.

O autor ao mencionar “as fachadas meio barrocas, meio neoclássicas”, retoma a ideia da antítese, já que os estilos se opõem. Estas construções “tinham de ser preservadas”, no entanto, deixa implícito “não foram”.

O autor deixa evidente o que gostaria e deixa subentendido o que refuta. Logo, esse bairro deveria ter seus casarões preservados, visto que constituem a história de uma época. Ele deixa subentendido que isso não ocorre. É tão somente uma esquina do Lavradio com Mem de Sá. Suscita o autor que o bairro que era o auge antigamente, hoje é a decadência em função do descaso das autoridades para preservá-lo. Já desde o início, o autor busca apresentar a sua linha de raciocínio: trabalhar com a oposição, tal como acontece ente o Barroco e o Neoclassicismo, sendo que o primeiro é uma releitura e, a partir dessa, diferencia-se.

Este descaso pode verificar pela utilização do vocábulo “sórdida, cujos sinônimos são “vil”, “baixo”, “torpe”. Temos a utilização da locução “em vez disso”; que tem a função de contrapor o que deveria ser feito (preservar os casarões da Lapa” e o que realmente se quis fazer criar uma filial do museu Guggenheim.

Trata-se de um projeto idealizado pelo Prefeito César Maia (2001-2002) que visava revitalizar esta região portuária do Rio de Janeiro sob a coordenação do arquiteto francês Jean Nouvel. Este museu se juntaria às filiais localizadas em Veneza, Bilbao, Berlim e Las Vegas e a matriz é em Nova Iorque.

Figura 1 – Maquete eletrônica do projeto Guggenheim no Pier Mauá de autoria de Jean Nouvel (2006-2007)

A polêmica do projeto está no valor orçado de R$ 500 milhões e já foram gastos por volta de R$ 2 milhões. Houve manifestações no píer, carta ao até então, Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, para intervir e impedir a construção deste museu. Este projeto está parado em função das inúmeras ações impetradas para impedir o prosseguimento da obra. Segue a imagem do projeto:

O projeto Guggenheim vem qualificado de “oportunista” cujo sentido diz respeito àquele que tira proveito das situações de um dado momento para utilizá-las em próprio proveito. Observando a imagem supracitada nos remete a figura descrita por parecer com um submarino.

Uma curiosidade deste peixe é que quando se sente ameaçado, ele infla, tornando-se muito maior. Poder-se-ia pensar sobre as manifestações da população, de artistas, de políticos que se colocaram contra a esta construção. O vocábulo “baiacu” refere-se a um tipo de peixe que vive na região de estuário.

O autor desloca esta ideia se referir à região e aos moradores da região da Praça Mauá. Dentre os moradores da Praça Mauá e arredores estão os travestis. Como vimos, o enunciador parte de um cenário amplo e cheio de conflitos e destruição e vai especificando o cenário sobre o qual ele construirá o seu texto. Ele falará sobre os travestis.

O motivo que o leva a falar sobre os travestis foi ter encontrado no Bairro da Lapa um travesti específico, cujo n fará o seu texto. Este é construído também de conflitos, desde a construção do museu e principalmente faz uma referência ao morador: o travesti.nome social52 é Luana Muniz53. Ele é um líder comunitário e havia utilizado o texto do autor

numa assembleia de “sexo mutantes”. Esse texto teve uma grande repercussão dentro da comunidade de travestis. Segundo o enunciador, ele havia escrito esse texto há dez anos e o intuito era tematizar a vida dos travestis. Depreende-se que ele foi uma pessoa que valorizou os travestis, razão pela qual ela “abraçou, dizendo que era meu fã”. (p. 169) O

52Nome social: Nome fictício criado pelo travesti ou pelo transexual para não ser identificado pelo seu nome próprio ou oficial. (Vide Glossário, p. ).

53 Pedro Stephan: travesti muito conhecido no bairro da Lapa e na Rua Mem de Sá, no Rio de Janeiro; ele é autor do projeto social chamado Damas, cuja finalidade é capacitar os travestis, transexuais, lésbicas e homossexuais.

Fonte: Mundo T-Girl. Travestis & transexuais. http://mundot-girl.blogspot.com.br/2013/11/luana-muniz- sucessora-da-madame-sata-na.html. Acesso em 15/11/2014.

autor se refere ao travesti pela redução “traveca”. Esse termo aparece na linguagem coloquial.

Logo, o enunciador deixa claro ao enunciatário, que na construção da presente crônica, em análise, serão usados trechos do primeiro artigo que escreveu. Aqui podemos evidenciar a noção de intertextualidade, que segundo Charaudeau (2004: p. 288):

“Esse termo designa ao mesmo tempo propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou grupo de textos determinado mantém com outros textos. Na primeira acepção, é uma variante da interdiscursividade.”

No documento MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO (páginas 116-122)