• Nenhum resultado encontrado

1 SOBERANIA COMO VALOR E FUNDAMENTO DO ESTADO

1.4 SOBERANIA COMO FUNDAMENTO DO ESTADO

1.4.2 Soberania como valor

A soberania vem descrita pela Constituição Federal como um dos primeiros fundamentos da República. Aliada à soberania, a Constituição consignou outros fundamentos como o da cidadania, o da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político.

A Soberania é assim definida por Celso Bastos:

Soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação.

Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios.

Nesse sentido, podemos partir do pressuposto de que a soberania só existirá a partir da existência de um Estado. Esse Estado pressupõe a independência de um território, pois é nele que se reconhecem e se definem os direitos de sua gente, isso se considerado o Estado independentemente de sua existência expressa ou tácita98. Como sinônimo de ordem interna, deve ser valorada a partir do modelo pelo qual foi instituída, cujo poder exercido volta-se para traçar diretrizes aos seus súditos99.

98 José Francisco Rezek, ao tratar das Formas do reconhecimento do Estado, diz que: “Não se reconhece, a

tal propósito, forma imperativa: de várias maneiras podem manifestar-se o reconhecimento expresso, bem assim o reconhecimento tácito. Essa variedade possível na forma de reconhecimento de Estado conduz, eventualmente, a que se conjuguem atos que por natureza são unilaterais, qual a hipótese de reconhecimento mútuo – mediante tratado ou comunicação comum – ou naquela mais rara, em que certo tratado bilateral exprime, por parte dos dois Estados pactuantes, o reconhecimento de um terceiro” (Direito Internacional Público. 13. ed., revista, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 228).

99 Jorge Miranda, ao discorrer sobre a Estrutura Constitucional do Estado, destaca: “O Estado aparece como

comunidade de homens concretos, constituído com duração indefinida em certo lugar. Comunidade na qual se exerce um poder em seu nome, dirigido a cada uma das quais pessoas e dos grupos que a integram; e poder de que se encarregam as pessoas investidas na qualidade de titulares de órgãos. Comunidade e poder se vertem em organização – em organização jurídica – como é a que é dada, primeiro que tudo pela Constituição (muito embora a organização não se identifique propriamente com as normas em si, antes com a objetivação ou o resultado dessas normas).

O Estado é comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o Direito permite passar, na comunidade, da simples coexistência à coesão convivencial e, no poder, do facto à instituição. E nenhum

Os valores sociais constroem e definem as sociedades, constituídas de valores primários e complexos. Esses valores da sociedade política refletem as formas de governo, sistemas, regimes e formas de Estado, institucionalizando esses plexos axiológicos.

A soberania é um dos valores do Estado, que confere ao detentor do Poder o comando de um território, de uma sociedade politicamente organizada. Essa mesma soberania era denominada entre os romanos de suprema potestas, imperium100.

Conforme ensinamentos de Raimundo Bezerra Falcão:

Assim, o que é valor para alguém poderá não o ser para outrem. Logo, é também nessa mesma dimensão de homem-indivíduo que o ser humano recebe — e utiliza — o impacto dos valores como fatores de identificação de preferências ou de decisão sobre escolhas. Em consequência, é igualmente nessa dimensão de homem-indivíduo que se faz a decorrente identificação dos bens.101

Portanto, o valor soberania não poderá ser ignorado ou relegado, pois pertence ao Estado, podendo o seu exercício ser submetido à força coercitiva pelo Estado, sendo o responsável por orientar suas relações institucionais.

Classificação que calha aos interesses da soberania é a de valores positivos e negativos. É a partir desses valores que um país terá sucesso ou não na condução de suas políticas, pois são qualificados pela sua maioria social. Conforme dita Raimundo Bezerra Falcão:

[…] o ser humano cria o elenco de bens — estes que irão ajudá-lo a atingir suas metas —, dentro de uma quadratura axiológica individualista, o que, se não acompanhado de boa orientação, pode ser desastroso, ou pelo menos potencialmente perigoso, para os interesses da vida em sociedade, para o bem-estar coletivo ou até para as aspirações da humanidade. O raciocínio é simples: a) enquanto presença no homem-

Estado pode deixar de existir sob o Direito, fonte de segurança e de justiça, e não sob a força ou a violência. No entanto, o Estado não se esgota no Direito – assim como o Direito não se reduz simplesmente a forma de Estado. É, sim, objecto do Direito, e, apenas enquanto estruturalmente diverso do Direito, pode ser a ele submetido, por ele avaliado e por ele tornado legítimo” (Manual de Direito Constitucional. Estrutura Constitucional do Estado. Tomo III, 4. ed. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 24-25).

100 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. Atualizada. São Paulo: Saraiva, 1998,

p. 158.

101

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 26.

indivíduo, o valor é algo dele, plantado na solidão do seu eu, e, portanto, obviamente individual; b) sendo assim, os bens que sua escala de valores produz não é algo que decorre desse sentir axiológico — logo, também individual; c) tendo em vista que os bens são tudo aquilo que o ser humano entende apto a conduzi-lo à realização dos seus objetivos de vida, emerge nítida a ilação de que a identificação dos bens por parte de alguém pode resultar em algo benéfico ou prejudicial aos intentos sociais, ou coletivos, na proporção em que os valores de quem os identificou compatibilizem-se ou não com tais intentos sociais, ou coletivos. Por esse motivo, é muito importante cuidar-se adequadamente do aspecto dos valores atinente à sua legitimidade, inclusive atentando para uma classificação que expresse de forma correta aquilo que cada valor — e, por via de consequência, cada bem significa à luz da aceitação coletiva e da ablução social. Assim é que, em termos de legitimidade, classificamos os valores — e, é claro, os bens — em positivos e negativos.

Valores positivos são todos os que a sociedade majoritariamente considera merecedores do seu aplauso e do seu beneplácito, dado encerrarem elementos em que ela veja estampados seus interesses, aspirações e conveniências, não importando que estes últimos tenham caráter material ou imaterial. São valores a que: a sociedade concede o aval de sua aceitação predominante, embora haja em termos isolados, quem, aqui e ali, disso possa discordar, não vendo neles um valor, ou seja, algo a que se atribua qualquer força capaz de gerar um bem, que possa atuar como estímulo à conduta. Essa divergência é explicável pelo fato de que, sendo o valor sentido individualmente, é evidente que a racionalidade humana vai levar, entre os seres humanos, a diferentes escalas estimativas individuais. Por isso que, neste aspecto classificatório, a maior parte da sociedade é que pesa, ao atribuir assentimento ao valor. É, portanto, uma questão de legitimidade, manifestada num processo de legitimação que pode até ser lento, mas só estará fadado a dar a qualificação positiva ao valor no passo em que ele chegue a granjear a concordância social majoritária, a despeito de que, para uns, tal continue — ou sempre tenha sido — inaceito como valor, hipótese na qual, para estes, prosseguirá sendo visto negativamente. Isso, contudo, não importa, já que é a sociedade, quer dizer, a pluralidade, que dá o tom da legitimidade. Não o indivíduo, enquanto ser singular. Este apenas agrega frações, mas não compõe, sozinho, o todo da legitimidade. Não tem esse poder isolado de legitimação.102

Assim, pode-se afirmar que os valores informam o poder político de determinada sociedade. Sendo a soberania atribuída ao Poder Estatal, o qual deve cingir seus limites dentro dos ditames constitucionais, então o poder político não é absoluto se não coincidente com os valores circunscritos na Constituição.

102

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 26-27.

Os valores são determinantes da conduta humana.

A nossa vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores. Viver é tomar posição perante valores e integrá-los em nosso “mundo”, aperfeiçoando nossa personalidade na medida em que damos valor às coisas, aos outros homens e a nós mesmos. Só o homem é capaz de valores, e somente em razão do homem a realidade axiológica é possível.103

Eles representam o mundo do dever-ser, realizando bens culturais resultantes do comportamento, das realizações e da cultura humana.104 Aliás, o valor social “bem” é equivalente a “justo”, e este se constitui no valor fundante do Direito. A justiça é valor próprio do Direito, que objetiva, em última análise, o bem comum da sociedade, integra os valores de convivência através de todo o ordenamento jurídico. Na tese de Miguel Reale sobre os Fundamentos do Direito, ele sustenta que: “1) - toda a Axiologia tem como fonte o valor da pessoa humana: e 2) - toda a Axiologia jurídica tem como fonte o valor do justo, e, em última análise, significa a coexistência harmônica e livre das pessoas segundo proporção e igualdade”.105

Portanto, o valor (elemento axiológico) assenta-se, ao lado dos elementos: o fático e o técnico formal, como um dos componentes do Direito ou, segundo define Miguel Reale: Direito é “realidade histórico-cultural ordenada de forma bilateral atributiva segundo valores de convivência”106.

O Direito é um bem cultural condicionado a exigências axiológicas e atualizado ao longo da história. Nesse contexto ele está diretamente ligado a cada sociedade e suas opções, que sempre existem, quando ela tem que exercer uma ou algumas delas, ou seja, quando tem que decidir quais valores serão implementados. Entra aí o elemento do Poder

103

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 186.

104 Como exemplo de valores inerentes à soberania e ao dever de dar cumprimento aos comandos estatais,

apontamos o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal: “A imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de corresponder a uma exigência que decorre de razões vinculadas à própria soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma inscrita no art. 13, caput, da Carta Federal, que proclama ser a língua portuguesa ‘o idioma oficial da República Federativa do Brasil’” (HC 72.391-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 8-3-1995, Plenário, DJE de 17-3-1995).

105 REALE, Miguel, op. cit., p. 267. 106 Ibid., p. 665.

para garantir a realização do Direito, por todos os meios, inclusive pela força, de forma a se chegar a uma realidade ordenada. “Temos assim, de maneira geral, a sociedade como condição do Direito, a Justiça como fim último, a bilateralidade atributiva como forma ordenatória específica e o Poder como garantia de sua atualização”.107

Encaramos, portanto, a soberania como valor108, aquele valor que dá fundamento a um Estado constitucional, segundo o qual, dentro dele, a força maior, o verdadeiro poder supremo lhe é dado pela Constituição e exercido pelos poderes juridicamente constituídos. Internamente, a soberania gera a subordinação de todos, dentro do Estado, ao ordenamento jurídico, comandado pelo Texto Maior e, externamente, encara os demais Estados como iguais em poder, sem prejuízo de, eventualmente, se amoldar às recomendações do direito internacional ou aos pactos bilaterais ou multilaterais que celebre com outros Estados, segundo as suas conveniências.109

Daí se deduz que soberania é fator de conduta e, como já mencionado anteriormente, valor é fator de conduta e conduta é axiológica. Além disso, se analisarmos as características dos valores, já apresentadas em itens anteriores deste trabalho, verificaremos que muitas delas se encaixam, perfeitamente, à conceituação de soberania, conforme se pode comprovar no quadro comparativo.

Características de valores Características de Soberania a) Bipolaridade Soberania é um valor positivo. A sua falta é negativo.

b) Implicação Sem dúvida que soberania implica em muitos outros valores, como justiça, liberdade etc. c) Referibilidade É referência para outros valores, em especial para a paz.

d) Preferibilidade Pode-se chegar ao caso extremo de optar-se pela guerra para mantê-la. e) Incomensurabilidade Não existe uma forma absoluta de medi-la.

f) Graduação hierárquica Está no topo da pirâmide de poder do Estado.

107 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 668. 108 Os niilistas negam a existência de valores.

109 Em observância ao contido no artigo 4º da Constituição Federal já citado.

g) Objetividade O Estado e seu suporte e sua verificação é através do sistema jurídico. h) Historicidade Evoluiu ao longo dos tempos juntamente com a história da humanidade. i) Inexauribilidade Jamais se esgota.

j) Realizabilidade É uma realidade a sua existência: as imposições jurídicas existem assim como o direito internacional. k) Atributividade Qualquer sujeito não lhe é indiferente, sempre lhe atribuindo qualidade positiva. l) Indefinibilidade Soberania é difícil definir com precisão.

m) Vocação para expressar-se

em termos normativos A Constituição Brasileira atribui à soberania o status de um dos seus fundamentos.

Em termos das classificações apresentadas, a soberania se situa dentro do valor do bem, onde se encontra o Direito; dentro dos valores nacionais, na classificação quanto à amplitude; nos permanentes, quanto ao tempo de duração; e nos positivos, quanto à legitimidade.

De todo o exposto, soberania é, a nosso ver, um valor.