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1. GESTÃO DE MARCAS

1.5 Marcas criativas

1.5.1 Storytelling e narrativa transmídia

Para compreendermos como uma história pode ser expandida através de diferentes mídias, precisamos antes entender como a mesma é transmitida. Parente (2016) descreve que uma história pode ser contada de várias maneiras, seja através da palavra, da escrita, de imagens ou de uma combinação do todo, desde que siga certas estruturas que cativam o interesse. Esse processo é chamado de storytelling.

Segundo Parente (2016), a estrutura mais comum aplicada a narrativas envolventes costuma responder às seguintes perguntas: “o quê?”, a ação que será narrada; “quando?”, em que tempo acontece o fato; “onde?”, local onde se passa a história; “quem?”, os personagens participantes; “por quê?”, causa ou razão pela qual ocorre o fato; e “como?”, o modo no qual o enredo se desenrola.

Enredo é o termo que descreve a sequência de eventos narrados, que geralmente se divide em quatro momentos: apresentação, onde são introduzidas informações básicas como personagens, tempo e cenário, enquadrando o público ao seu ambiente; desenvolvimento, onde os personagens são colocados em frente a um conflito que precisa ser solucionado; clímax, o expoente máximo do conflito, onde a trama atingirá o seu ponto mais dramático; e desfecho, a parte final que revela o resultado do conflito, se houve solução ou não, e as suas consequências, sejam elas boas ou ruins. Além da estrutura, existem também diferentes gêneros que podem ser utilizados e mesclados para dar o tom certo à narrativa e chamar a atenção do público desejado, como drama, aventura, romance, terror e comédia, entre outros.

Nesse universo multiconectado que vivemos, o storytelling é uma das ferramentas mais poderosas para a conquista de atenção e empatia na gestão de marcas. Quando bem aplicado, ele adiciona valores humanos às marcas, sem a necessidade de superexposição, anúncios ou mesmo exibir o produto (PARENTE, 2016, p. 4).

O uso de storytelling por marcas criativas vem levando muitos consumidores a desenvolverem um forte apego aos produtos e ao que eles representam; esses consumidores passam a ser identificados como fãs. Jenkins (2009) observa que, em resposta, as corporações vêm buscando novos meios e artifícios que envolvam ainda mais a participação do público, dentre eles: a extensão, uma forma de expandir mercados potenciais movimentando conteúdos por diferentes sistemas de distribuição; a sinergia, que representa a oportunidade econômica em se possuir e controlar todas essas manifestações; e a franquia, o empenho coordenado em inserir a marca em conteúdos ficcionais seguindo as mesmas condições.

Esses esforços corporativos resultaram no surgimento da narrativa transmídia, que faz uso de extensão, sinergia e franquia além de trazer novas exigências aos consumidores. Para Jenkins (2009), a narrativa transmídia é a arte da criação de um universo, onde a história se desenrola por meio de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de forma distinta para o todo. Em outras palavras, ela é como um quebra-cabeça em que cada peça representa uma mídia diferente e todas são igualmente importantes para se obter uma imagem completa. Para se aproveitar ao máximo a experiência do universo transmidiático, os consumidores assumem o papel de caçadores de informações, explorando os diferentes canais em busca de partes da história que se encaixem. Essa dedicação pode levar os fãs a se reunirem em grupos de discussão, a fim de ajudar uns aos outros a ter uma experiência mais rica.

Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo (JENKINS, 2009, p. 139-140).

A redundância pode acabar com o interesse dos fãs e provocar o fracasso da franquia; por essa razão, oferecer novas experiências pode renovar o interesse e sustentar a fidelidade. Cada mídia atrai nichos de mercado diferentes, sendo que

filmes e televisão tendem a possuir públicos mais diversificados, enquanto jogos e quadrinhos são mais restritos. Entretanto, é possível que haja material suficiente para sustentar todos os nichos e expandir ainda mais o potencial da franquia. “Uma boa franquia transmídia trabalha para atrair múltiplas clientelas, alterando um pouco o tom do conteúdo de acordo com a mídia” (JENKINS, 2009, p. 140).

Franquias não são exatamente uma novidade, e podem se originar a partir de um filme popular, uma revista em quadrinhos ou uma série de televisão, entre outros. Mas existe uma diferença entre a franquia tradicional baseada em licenciamento e os esforços modernos da narrativa transmídia. O licenciamento é um acordo onde a empresa detentora da marca vende os direitos para uma terceira, permitindo que ela fabrique produtos baseados em personagens e elementos originais da marca, mas com certas limitações a fim de proteger a propriedade original. Jenkins (2009) usa como exemplo os bonequinhos disponíveis no “McLanche Feliz” do McDonald’s6

, que, apesar de serem produtos oficiais, são facilmente esquecidos. Na narrativa transmídia, por outro lado, o licenciamento com limitações de franquias abre espaço à cocriação, processo no qual todas as empresas envolvidas trabalham juntas desde o início para desenvolver conteúdos adequados aos diferentes setores, permitindo que cada meio ofereça o seu melhor e aumentando os pontos de acesso à franquia. O que não mudou são as motivações econômicas da integração entre marketing e entretenimento, que criam fortes ligações emocionais ao mesmo tempo que as utilizam para aumentar as vendas.

Cada vez mais, as narrativas estão se tornando a arte da construção de universos, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra, ou mesmo em uma única mídia. O universo é maior do que o filme, maior, até, do que a franquia – já que as especulações e elaborações dos fãs também expandem o universo em várias direções (JENKINS, 2009, p. 155).

Em sua reflexão sobre a lógica de mercado por trás da construção de universos, Jenkins (2009) menciona o cineasta americano George Lucas como um dos pioneiros da narrativa transmídia. Lucas é conhecido por ter dirigido o filme Star

Wars (Guerra nas Estrelas, 1977), no qual apresentou uma galáxia inteira recheada

de personagens interessantes e planetas a serem explorados. O filme se tornou um

6 McDonald’s é uma franquia de restaurantes norte-americana fundada em 1940, famosa por vender

sucesso instantâneo, que até hoje possui um dos maiores fandoms7 do mundo e, mesmo quarenta anos depois, continua recebendo continuações em forma de novos filmes, séries de televisão, jogos e histórias em quadrinhos.

Mas não foi apenas na indústria cinematográfica que Lucas causou uma revolução com sua pequena aventura espacial repleta de efeitos especiais e técnicas inovadoras; Lucas sempre acreditou no potencial de seu filme em se tornar uma franquia multimídia e, por essa razão, licenciou sua marca para a fabricante de brinquedos Kenner8. Mesmo com um atraso de sete meses entre o lançamento do filme e das pequenas figuras de plástico baseadas em seus personagens, os brinquedos se tornaram um sucesso de vendas tão grande quanto o próprio filme. Jenkins (2009) ainda recorda o caso do personagem Boba Fett, que surgiu como uma misteriosa figura na linha de brinquedos muito antes de aparecer no filme The

Empire Strikes Back (O Império Contra-Ataca, 1980), a primeira sequência de Star Wars.

Outro responsável pelo crescente envolvimento do público em modelos narrativos transmidiáticos, segundo Jenkins (2009), é o Japão. O país oriental vêm influenciando a cultura do ocidente, em especial a partir da importação de franquias como Pokémon (1996) e Yu-Gi-Oh! (1996) na virada do milênio, devido à forte presença multimídia agregada a suas criações. As franquias mencionadas, por exemplo, são compostas por histórias em quadrinhos, séries animadas de televisão, jogos eletrônicos, cartas colecionáveis, linhas de brinquedos e toneladas inimagináveis de todo tipo de merchandising. Essa forte relação entre diferentes mídias de um mesmo texto tem levado os fãs a se tornarem caçadores de informações, tendo prazer em rastrear as conexões existentes entre cada formato da franquia. “Muitas crianças ocidentais, hoje, estão mais familiarizadas com os personagens da série japonesa Pokémon do que com personagens de contos de fadas europeus” (KAPUR, 2002 apud JENKINS, 2009, p. 177).

Segundo Jenkins (2009), o fluxo de bens asiáticos no ocidente foi moldado pela união da convergência corporativa, promovida pela indústria, com a convergência alternativa, criada por fãs e imigrantes. A mescla de culturas pode resultar em hibridismo, que ocorre quando a indústria midiática de um país absorve e

7

Fandom é a denominação de um grupo de fãs que reúnem-se e interagem entre si.

8

Kenner foi uma empresa norte-americana fundada em 1947. Em 1987, foi comprada pela também fabricante de brinquedos, Tonka, fundada em 1945.

transforma elementos vindos da indústria de outro, resultando em uma estratégia corporativa que procura remodelar o material estrangeiro em seu próprio material. Essa expansão multinacional é vista pelas corporações como um valioso potencial de ampliar o alcance de seus produtos e de distinguir-se do que já existe no mercado.

Apesar de todas as qualidades experimentais e inovadoras da narrativa transmídia, ela não é inteiramente nova; seus modelos remetem à Grécia Antiga, época em que os gregos contavam histórias sobre deuses e heróis, como a Odisseia de Homero, que mesclava informações preexistentes transmitidas por meio oral entre as populações. O mesmo pode ser observado nos dias de hoje, aponta Jenkins (2009), quando personagens já conhecidos são retrabalhados através de diferentes meios, como quando uma história em quadrinhos é adaptada para o cinema.

Muitas vezes, personagens de narrativas transmídia não precisam ser apresentados ou reapresentados, pois já são conhecidos a partir de outras fontes. Assim como o público de Homero se identificava com os diferentes personagens, [...] as crianças de hoje entram no filme com identificações preexistentes, pois já brincaram com bonequinhos articulados ou os avatares dos games (JENKINS, 2009, p. 160).

Podemos dizer, de forma figurada, que a narrativa transmídia anda de mãos dadas com outro conceito descrito por Jenkins (2009): a cultura da convergência. Enquanto a narrativa transmídia surgiu devido ao interesse das corporações em ampliar o alcance de suas marcas, estampando-as em todos os tipos de mídias e produtos possíveis, de forma a levar o público a se sentir no dever de consumir todas as variações em ordem de ter uma experiência completa, a cultura da convergência é o reflexo desse mesmo interesse do ponto de vista dos consumidores. Mas para entendermos como esse fenômeno conquistou tanto espaço, precisamos antes analisar as interações entre marca e consumidor que resultaram em seu surgimento.