• Nenhum resultado encontrado

2.1 AS MUDANÇAS NOS QUADROS DE FANTASIA

2.1.1 Ta-hí: o elemento da homogeneidade no corpo de baile

As referências corporais dos bailados no Teatro de Revista, a partir de um cruzamento entre as fotografias, charges, além dos textos revisteiros e das notícias de jornais, auxiliam no desvelar dos elementos significativos das danças, presentes nos quadros de fantasia. É importante ressaltar que as fotografias e as críticas de jornais podem ser pensadas como vestígios do espetáculo, uma leitura histórica que busca acessar aspectos da encenação da revista, neste caso em específico, interessa os aspectos relativos aos bailados. Apesar de constituírem suportes diferentes de leituras, podem auxiliar no desejo de desvendar estes vestígios históricos. E parto do princípio, embasada nos princípios da História Cultural, que a fotografia é um documento, e que fornece um testemunho de sua época, do momento em que foi realizada e sobre o que ela retrata ou deixa de retratar; e não esquecer que a imagem está fundada numa determinada visão de mundo. Assim, entendo que:

A imagem fotográfica compreendida como documento revela aspectos da vida material de um determinado tempo do passado de que a mais detalhada descrição verbal não daria conta. Neste sentido, a imagem fotográfica seria tomada como índice de uma época, revelando, com riqueza de detalhes, aspectos da arquitetura, indumentária, formas de trabalho, locais de produção,

90

elementos de infra-estrutura urbana tais como tipos de iluminação, fornecimento de água [...] (Cardoso e Vainfas, 1999:406).

As notícias de jornais consultadas demonstraram que a qualidade da revista também era medida pela homogeneidade dos bailados, e este critério era uma busca das companhias revisteiras, mesmo que às vezes não alcançada por algumas delas. No entanto, foi uma palavra recorrente no discurso para qualificar, e no caso da falta desta, para desprestigiar o espetáculo.

Observa-se que a homogeneidade nos bailados referia-se às marcações dos movimentos em consonância com o tempo da música, de modo que as movimentações do conjunto ficassem uniformes, precisas, como também dos corpos das coristas, a partir da referência de um corpo esbelto em sua compleição física. Estas mudanças iniciam na década de 1920, mas no decênio seguinte aparecem de forma mais elaborada.

O olhar interno, dos críticos na forma de chargistas, também foi um importante agente transformador do rústico bailado inicial para o refinamento que vai adquirindo este corpo, no Teatro de Revista brasileiro, no final da década de 1920. A linguagem da charge se fez presente na escritura do Teatro de Revista e no seu discurso, já que segundo Sette (2005) a linguagem do Teatro de Revistas recebeu influências tanto da caricatura quanto do conteúdo literário das charges escritas em jornais e revistas. Lembrando também que muitos dos revistógrafos atuavam na imprensa carioca como caricaturistas e humoristas, tal como Bastos Tigre, Raul Pederneiras, Emílio de Menezes, José do Patrocínio Filho e outros. E Saliba (2002:88) observa que estes humoristas começaram a atuar “como revistógrafos no momento em que a revista começava a se modificar e a atingir um público mais variado”. A contribuição destes artistas se fez numa nova proposição cênica:

A Nova geração de humoristas vai escrever para um gênero de teatro revista um tanto modificado, que não tratava apenas do humor político [...], adaptando-se, principalmente com a utilização da música de Carnaval, às exigências do espetáculo mais ligeiro e de entretenimento [...]. A própria estrutura da revista exigia, cada

91

vez mais, concisão nos versos, incorporação das músicas e rapidez na resolução cênica [...]. (Saliba, 2002:89 e 91)

Para Bevilaqua:

Havia uma afinidade de universo, sobretudo entre os caricaturistas e o teatro de revistas, cuja temática e as linguagens (visual e cênica) se assemelhavam muito, dramatizando os impactos da vida moderna no cotidiano carioca, através da divisão em quadros, cenas curtas, personagens alegóricos e da valorização da visualidade e da corporalidade (2001:49).

Raul Pederneiras atuou intensamente no Teatro de Revista e com seus textos, caricaturas, charges, suas influências passaram a incidir indiretamente sobre os movimentos dos bailados, através dos elementos da caricatura e da charge, visíveis a partir da condensação das formas no desenho corporal. Pode-se perceber, analisando as imagens do Teatro de Revista e as charges que envolvem este teatro que:

A caricatura, como o teatro de revista, calcava sua expressão num caráter absolutamente corporal, só que no caso da caricatura, é o corpo desenhado que fala e não o corpo “ao vivo”. Além disso, ele trabalha com a condensação de formas de maneira muito semelhante aos personagens da revista, enfatizando determinado aspecto de cada tipo e fazendo-o “saltar” aos olhos; o movimento também é preponderante, refletindo o próprio ritmo frenético da modernidade. (Bevilaqua, 2001:49)

No álbum Cenas da Vida Carioca, de 1925, Raul Pederneiras faz uma

charge sobre os procedimentos revisteiros, com o título de Como se faz uma

revista theatral. Aqui, por razões temáticas nos atemos às charges sobre o corpo

de baile. Nestas charges podemos observar que o humorista enfatizou determinados aspectos deste corpo de baile. Na charge abaixo se percebe que o autor desejava provocar o riso através do retrato desarmônico dos corpos das

girls, apontando uns muito magros, outros gordos, alguns com e outro sem

92

contudo conseguir, através das posturas de mãos e pernas, gestos que dão dinâmica ao bailado das girls.

Imagem no 18 - Charge de Raul Pederneiras54, do álbum Cena da Vida Carioca. Retratando as coristas. Trabalho de 1925.

A charge se completa pela palavra escrita onde a crítica ao espetáculo é ainda mais ferina. Neste discurso o autor chama a atenção para as várias denominações para o corpo de baile – coristas, girls, ensemblistas – e que as mesmas não sabem cantar, elas “enrolam – engrolam” a música. Percebe-se ainda que Raul Pederneiras ironiza os adereços das coristas/girls/ensemblistas, ressaltando o cabelo e o penteado de suas cabeças. E o corpo das mesmas não possui uma definição de vestuário, mas deixa entrever um corpo mais desnudo.

Imagem no19 - Charge de Raul Pederneiras55, do álbum Cena da Vida Carioca. Retratando as coristas. Trabalho de 1925.

54 Charge de Raul Pederneiras, do álbum Cena da Vida Carioca. Oficina Gráfica do Jornal do Brasil. RJ. 1925. In: Delson Antunes. Fora do Sério: Um Panorama do Teatro de Revista no Brasil. RJ: FUNARTE, 2002:278.

93

Num contraste entre as duas imagens da charge sobre a revista, Raul nos chama a atenção para novos adereços usados pelo conjunto do corpo de baile: bengalas, sapato de salto e cartolas. Sendo acompanhadas agora pela “estrela” e pelo “estrello” (sic). Apontando para as mesmas falhas da imagem anterior onde retrata a desarmonia do conjunto, e ressalta a busca de uma homogeneidade quase impossível. Eis que o ritmo que coordena o movimento deste grupo tem influência norte-americana, do charleston e do sapateado.

Imagem no 20 - Comidas Meu Santo56

A imagem acima, da revista Comidas Meu Santo, apresenta um corpo de baile que tem uma afinada aproximação com as críticas colocadas em suas charges por Raul Pederneiras. Corpos gordinhos, um conjunto não homogêneo nos seus gestos, embora estivesse em busca desta homogeneidade na plasticidade e visualidade do grupo. A imagem situa o caráter corporal, de condensação de formas, no desenho do corpo e em seu movimento, constituindo algumas características das charges que influenciaram os bailados na medida em que o movimento também se apropria destes aspectos, sua síntese e sua aproximação com a caricatura estão presentes.

55Antunes, 2002:278.

94 Imagem no - 21 Charge de Raul Pederneiras57, do álbum Cena da Vida Carioca. Retratando as

coristas. Trabalho de 1925.

A condensação das formas corporais na imagem acima procura dar destaque ao movimento, ao ritmo da modernidade, do qual o Teatro de Revista se fazia porta-voz. Nesta charge Raul Pederneiras, destaca os corpos femininos desnudos, e os apresenta um pouco mais homogêneos que nas imagens anteriores, mas em compensação o expõe mais despido.

É possível também perceber a presença deste corpo numa outra caricatura de Raul Pederneiras sobre o Teatro de Revista, de 1935, intitulada: Theatro de

Revista Classico, Indigena...

57Antunes, 2002:278.

95 Imagem no 22 – As coristas – recorte da charge de Raul Pederneiras, do álbum Cenas da

Vida Carioca, retratando: Revista de Theatro Cássico, Indígena...58

As coristas estão representadas como heterogêneas no biotipo e na expressão facial, o que será superado gradativamente a partir da metade desta década. Cada uma usa um tipo de sapato, com a posição de cabeça diferente uma da outra. Estes elementos tenderão a uma homogeneização, no final década de 1920, considerando os aspectos da movimentação do corpo e gradativamente sua transformação, tornando-se mais esbeltos em sua plasticidade. Entretanto, na década de 1920, principalmente no início, convivia-se com os padrões até então vigentes, onde a homogeneização, a disciplina, a beleza feminina não eram ainda requisitos básicos para se fazer parte do corpo de girls. Até este período se retratava um outro paradigma cultural em relação à compleição física dos corpos, que não se construía a partir de corpos enxutos e perfeitos, paradigma que muda radicalmente com a chegada de companhias como a Ba-ta-clan.

O curioso é que o debate contemporâneo na dança revisa o paradigma cultural que se construiu a partir de um físico ideal, e retorna a este lugar da charge, onde o corpo em sua singularidade dançava: gordos, magros, mestiços.

96

Albright (1997) tece algumas reflexões teóricas na contemporaneidade, acerca do processo coreográfico que se pauta no pressuposto da singularidade e da valorização da diferença dos corpos, desvinculando-os da projeção da imagem ideal do padrão físico atrelado à dançarinas brancas, femininas, magras, esguias, alongadas, flexíveis, de corpos hábeis, revisando e desconstruindo estes postulados, a partir de danças e coreografias contemporâneas, que desglorificam este ideal, através do elenco de bailarinos, com corpos diferentes, que se movimentam, em torno da alteridade.

No entanto, Raul Pederneiras, em sua charge acerca do Teatro de Revista, aponta um elemento a ser destacado na década de 1920, a busca pela superação da heterogeneidade através da homogeneização do corpo de baile. A homogeneidade foi o primeiro elemento considerado divisor de águas que se estabeleceria e que passaria a ser visto pela crítica teatral com apuro. A questão da homogeneidade era um aspecto que caracterizava as inovações da modernidade em relação aos bailados. O Correio da Manhã, Rio de Janeiro, de 9 de junho de 1925 , destaca na crítica teatral de Comidas Meu Santo, que “o público aplaude calorosamente a “divette” Margarida Max, e o seu homogêneo conjunto, que conta com artistas de reconhecido mérito”. O elemento da homogeneidade aparece como destaque, para a qualidade da peça Comidas Meu

Santos, através da crítica teatral:

Numerosos bisados, seguidamente gargalhadas retumbantes e aplausos frenéticos no final de cada quadro e o que se vê e o que se ouve todas as noites no popular teatro da Rua do Espírito Santo, onde palpitam a graça e o “ donaire” da “divette” Margarida Max e do seu homogêneo conjunto, sem dúvida, um dos melhores, no gênero, actualmente nesta capital. (Correio da Manhã, 11 jun. 1925)

A imprensa escrita destacava também o “luxo do guarda-roupa verdadeiramente asiático, com uma homogeneidade de desempenho pouco comum [...] os cômicos da companhia fazem rir bastante a platéia”.59 O elemento

97

do figurino oriental, seguido da citação acerca da homogeneidade, são destacados nestas críticas de jornais.

2.1.2 Corpo que baila e cintila: bailados revisteiros e modernidade