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Tensões que perpassam o campo

2 TEORIAS E MÉTODO

2.2 Estudos Sociais da Infância

2.2.3 Tensões que perpassam o campo

A despeito dos avanços e muitos consensos na Sociologia da Infância ou mais amplamente nos Estudos Sociais da Infância, abordaremos, em seguida, algumas tensões que perpassam o campo. Por exemplo, Prout (2010) apresenta, em seu artigo Reconsiderar a nova Sociologia da Infância, algumas delas, ao indicar que dicotomias da Sociologia moderna estão reproduzidas na Sociologia da Infância e devem ser questionadas.

A primeira dicotomia apresentada pelo autor é estrutura x ação, ou seja, uma oscilação entre a Sociologia da Infância (macro) e a Sociologia da Criança (micro). Como vimos, alguns(as) pesquisadores(as) enfocam os estudos da infância como parte da estrutura social, enquanto outros se interessam pelos estudos da criança enquanto ator e pelas culturas infantis. As duas noções não se contradizem, mas o pesquisador deve estar atento quanto à sua posição e coerência teórica.

Natureza x cultura são apresentadas como a segunda dicotomia. Se por um lado a infância entendida como construção social abandona o reducionismo biológico, por outro, até as Ciências Naturais tomarem a criança/infância como objeto, a criança pertenceu à natureza. Segundo Prout (2010), o novo paradigma da infância vai do reducionismo biológico para o reducionismo sociológico, de um extremo a outro.

A terceira dicotomia, ser x devir13, está relacionada com os modelos de socialização e com direitos de participação e direitos de proteção: alguns autores da Sociologia da Infância não consideram as crianças, ao mesmo tempo, como sujeitos de direitos próprios e como seres em formação. Uma resolução para esse impasse indicada por Prout (2010) é reconhecer as duas condições, ser e devir, tanto em

13 Este dualismo também é apresentado por Qvortrup (2010b) no artigo “Infância e Política”, sobre a

ambiguidade nos discursos acadêmicos sobre as crianças onde alguns teóricos falam de proteção enquanto outros falam de participação. Qvortrup (2010b) chama atenção para as limitações dos Direitos da Criança contidos na Convenção da ONU, como no artigo 12, que postula que a criança tem o direito de opinar livremente apenas em assuntos que afetam elas mesmas – como se não tivesse maturidade para opinar sobre questões maiores, ou como se assuntos de políticas públicas, meio ambiente, economia (desemprego, fome, seca, desastres naturais), etc., não pudessem afetar diretamente a vida das crianças.

adultos quanto em crianças: ambos reconhecidos como seres incompletos, em formação e dependentes de outros sujeitos.

Ao final de seu artigo, Prout (2010) sugere algumas alternativas para os dualismos: buscar a coexistência pacífica; procurar intersecções e conexões entre dicotomias e enfoques da Sociologia; buscar novos caminhos como, por exemplo, a interdisciplinaridade ou o hibridismo. Porém, ao se adotarem tais alternativas, parece-nos necessária precaução com o hibridismo sem controle.

Qvortrup (2010a) e Rosemberg (2003) têm apontado para um ponto de tensão relacionado à linguagem: o uso inconsistente dos termos infância e criança. Esses termos são utilizados nos debates, na produção de conhecimento, em artigos e trabalhos acadêmicos como se fossem sinônimos, sem diferenciação, passando do entendimento estrutural para o individual e vice-versa, o que pode causar confusão para o leitor ou interpretações “surrealistas”. Por exemplo, afirmar que a “criança é uma construção social” pode destituir a pessoa criança da própria qualidade que se quer atribuir: sua ação, sua condição de agente.

Ainda com relação à linguagem, Rosemberg (2003) chama atenção para o uso indiscriminado dos substantivos criança e filho como se fossem idênticos, na medida em que alguns idiomas dispõem de uma única palavra para os dois sentidos, enquanto outros dispõem de palavras distintas. Isto remete à contextualização no âmbito da família referida por Qvortrup.

Observo uma clivagem importante, a ser pesquisada com atenção, na produção de conhecimentos e no debate sobre a infância em decorrência de sua língua de produção. Aqui não me refiro ao inevitável tema das línguas hegemônicas ou dominantes, mas de o repertório linguístico dispor de termos diferentes para criança filius e criança puer. Criança fase da vida, criança relação genealógica. De um lado, temos o português, o espanhol e o italiano, entre outras, que demarcam linguisticamente a distinção criança (puer) e filho (filius) – de outro, temos o inglês e o francês, entre outras línguas, em que o mesmo termo remete aos dois sentidos. Não raro, na literatura francófona (e também anglófona) tenho encontrado pistas, que poderiam ser tomadas como hipóteses, de desligamento de sentido e, que por vezes e aparentemente, geram tensões (ROSEMBERG, 2003, p. 1).

Neste contexto de preocupações, devemos estar atentos às traduções de textos estrangeiros, pois encontramos alguns deslizes de sentido: inicia-se o texto com o termo criança (ou filho) e se continua com criança ou vice versa. Essas questões com relação à linguagem são importantes à medida que podem dificultar a

compreensão da teoria e obnubilar o contexto social (família ou sociedade ampla) considerado como lócus privilegiado para situar a infância.

Outra indagação de Rosemberg (2003) diz respeito ao estatuto epistemológico do conceito de infância: trata-se de uma categoria analítica ou descritiva? A infância, enquanto variável de análise social, não pode ser inteiramente separada de outras categorias tais como classe, gênero ou etnia, que são conceitos relacionais que pressupõem um outro. Infância estaria para relações de idade, assim como mulher estaria para relações de gênero? Qual seria o outro termo para a variável infância? Ao concebermos a infância como uma categoria social heterogênea, não seria mais adequado considerar a categoria “etapas da vida” nos estudos de relações de idade?

A faixa etária é mais uma tensão na Sociologia da Infância e nos Estudos Sociais da Infância. Sarmento e Pinto (1997) e Rosemberg (2003) são autores que tocam no ponto do limite etário da infância, tanto a partir de quando se considera o início – desde bebê, ainda no útero –, quanto a partir de que idade se deixa de ser criança. Rosemberg (2003) vem questionando sobre a faixa etária referida na Sociologia da Infância e nos Estudos Sociais da Infância. Qual seria a idade da criança dos Estudos Sociais da Infância? Esta idade incluiria o bebê?

Rosemberg (2003) sugere, a partir de suas análises, que a faixa etária de referência na Sociologia da Infância se situa entre 5 e 16 anos, equivalente à idade escolar e desafia os pesquisadores com a seguinte pergunta: e os bebês, estão incluídos nesses estudos? Também podemos considerar os bebês como atores sociais produtores de culturas que devem ser estudadas em si? Afinal, “qual a idade da criança da Sociologia da Infância e dos Estudos Sociais da Infância?”.

Esses são alguns impasses que perpassam o campo em desenvolvimento aos quais devemos estar atentos.

Quanto ao posicionamento do NEGRI frente aos Estudos Sociais da Infância, embora nos aproximemos do enfoque estrutural, não temos adotado o conceito de geração: concebemos a infância como categoria social no contexto das relações de idade como etapa subordinada à idade adulta. Consideramos que as relações de idade, além das relações de gênero, raça, classe e nação, também sustentam e produzem relações de dominação (ROSEMBERG, 2010a).

Entre os grupos de idade, estamos preocupados com a visibilidade dos bebês: grupo “invisível”, negligenciado e “fadado” à esfera da vida privada. A

reduzida visibilidade dos bebês, inseridos na categoria infância, tem sido nosso ponto focal uma vez que, para o NEGRI, o estudo das relações de idade permite apreender e compreender produção de desigualdade, ao lado e em complemento (mas não complementar) a outras categorias descritivas e analíticas para se compreender a produção de desigualdades sociais.

Temos apontado para as “especificidades na demarcação das etapas da vida como construção social que constrói padrões sociais e culturais – normas, valores, instituições específicas – que acabam orientando práticas sociais e identidades das pessoas” (ROSEMBERG, 2010a, p. 1). Seguindo este argumento, o reconhecimento das especificidades de uma etapa da vida pode orientar o reconhecimento de necessidades próprias de determinado grupo etário, que pode resultar em orientação de políticas públicas, reconhecimento de direitos, criação de instituições, produção acadêmica, entre outros.

Rosemberg e Pinto (1997) têm destacado a heterocronia do plano social, ou seja, as diferentes formas de desigualdade social não atingem as pessoas durante sua trajetória de vida com o mesmo impacto e da mesma forma. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, por exemplo, não são encontrados indicadores que evidenciem que meninas do sexo feminino sejam discriminadas por serem mulheres: suas taxas de frequência à creche, desnutrição, mortalidade, entre outras, é igual ou melhor que a dos bebês do sexo masculino. Já não se pode assegurar o mesmo para crianças brancas, negras ou indígenas. Os indicadores apontam que bebês brancos(as) usufruem de melhores condições de vida que bebês negros(as) .

Com o objetivo de participar do processo de dar visibilidade pública aos bebês, temos desenvolvido pesquisas sobre a construção social dessa etapa da vida. Estamos procurando captar concepções sobre esse grupo de idade em discursos de avós, mães, homens-pais, profissionais, políticos, na mídia, entre outros. Pensamos que o estudo sobre os significados construídos socialmente, noções e ideias sobre o bebê sua educação e cuidado, pode ser um caminho para fortalecer sua visibilidade pública (ROSEMBERG, 2009b).

Nossa compreensão é que estudar significados que são produzidos, circulam e são recebidos em contextos sociais específicos auxilia a compreensão das desigualdades sociais que são criadas e sustentadas tanto por fatores materiais, quanto simbólicos. Daí nosso interesse em analisar discursos sobre infância e/ou criança que são produzidos, circulam e são recebidos em contexto sociais

organizados em torno de relações de poder. Para descrever e interpretar tais discursos escolhemos o método HP proposto por Thompson (1998).