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5. O conceito de competência e a relação trabalho versus ensino superior

5.6. O trabalho como projeto de vida

Ao se falar em orientação profissional, a questão do trabalho é colocada em destaque. Não se trata, contudo, de um trabalho qualquer, imposto para ou pela sociedade, e sim aquele que o sujeito há de escolher e exercer no decorrer de sua vida, mediante suas preferências e condições sociais.

Marx (1818-1883), nos estudos sobre o capitalismo, identificou e descreveu as condições do trabalho e seus resultados para a saúde social, alertando sobre a submissão do trabalhador à ordem da necessidade, algo que se tornou um grande trunfo para o fortalecimento do sistema. Segundo ele, se inicialmente a necessidade foi responsável por tirar o homem da inércia, da mesmice, fazendo com que ele pensasse em novas e melhores condições de vida, ela inverteu toda e qualquer lógica, passando a determinar o que, quando, como e por quanto tempo tudo deveria ser feito, tornando o trabalhador apenas um executor do processo.

A necessidade de sobreviver e de buscar recursos na natureza para esse fim fizeram com que o homem tomasse consciência de si e do mundo, obrigando-o a estabelecer uma relação dialética com o ambiente.

Gradativamente, as relações sociais foram ficando mais complexas e as relações de trabalho ganharam consistência e valores públicos. A capacidade de produzir coisas, fossem objetos, máquinas, roupas, tecidos e tudo o que fosse passível de consumo, nunca mais parou. Ao perceber a razão do trabalho e sua relação com a necessidade, o sistema iniciou um processo de inversão, permitindo ao mercado a produção de bens e serviços, antes mesmo que os sujeitos tivessem se dado conta de sua real necessidade.

Segundo Furtado (2010, p. 86), a sociedade capitalista contemporânea transformou dialeticamente as necessidades, tornando-as imprescindíveis e não apenas fundamentais para a sobrevivência: “O que comemos, nossa moradia, as formas de relacionamento estão definidas não somente pela materialidade que cerca cada uma dessas condições de vida, mas pelo valor simbólico agregado pela cultura.”

Houve uma inversão na condição do que é realmente necessário, e relações simbólicas profundas foram construídas com a condição de se possuir coisas. As roupas, os carros, as casas, os sapatos apresentam à sociedade a

conquista de um determinado poder econômico. Ostentar passou a ser a necessidade suprema, condição que, para os temas aqui discutidos, tornaram-se fundamentais ao sujeito que pretende escolhas para o futuro profissional.

[...] Toda produção de valores e crenças, de referências simbólicas que fazem parte da realidade e, no caso do capitalismo, justificam a forma aparente do consumo (e também nos convence dessa inversão) é o que chamamos de dimensão subjetiva da realidade. (FURTADO, 2010, p. 87).

A condição de consumir determina a escala social do sujeito, o que pode gerar a inclusão ou a exclusão a/de um determinado grupo social.

[...] Essa referência é objetiva na medida em que é definida pela minha condição de classe e é subjetiva porque a ela é atribuído valor. O valor e maior ou menos capacidade de inserção social. (FURTADO, 2010; p. 87).

Marx critica o sistema e sua forma de submeter às pessoas a essas falsas necessidades e ainda alerta para os resultados desse processo de acúmulo de riqueza, desigualdade social, alienação e estranhamento com o trabalho. O acúmulo ocorre devido ao conceito da mais-valia: trabalhadores recebem pouco para que produtos sejam vendidos por valores superiores ao pago pela mão de obra. Institui- se, então, a desigualdade, pois o lucro fica sob o poder do proprietário, e para o trabalhador resta apenas algum dinheiro, na maioria dos casos, insuficiente para sobreviver. Ele sucumbe a cada dia e deixa de viver sua plenitude para se doar à tarefa. A alienação fica por conta da falta de consciência do consumidor, que, manipulado pelo sistema, torna-se escravo do ato de comprar indiscriminadamente, e do trabalhador, que executa seu trabalho sem conhecer todo o processo produtivo, ainda que tenha uma consciência mais clara sobre o que está sendo produzido, sua utilidade e seus reflexos na natureza e na sociedade.

O trabalho é, e será sempre, um elemento cujo papel mediador é ineliminável da sociedade e, portanto, da sociedade humana. Mas o trabalho sob os auspícios da produção capitalista traz em si a impossibilidade de suplantação do estranhamento humano, uma vez que o seu controle é determinado pela necessidade da reprodução privada da apropriação do trabalho alheio, e não por aquilo que se poderia considerar necessidade humana ancorada na reprodução social liberta da posse privatizada. (MARX, 2012; p. 15)

A partir desses conceitos, Vygotsky (1896-1934) inicia vários estudos sobre a relação do homem com a natureza e do homem com o trabalho. Os

conceitos de sentido e significado são fundamentais para o desenvolvimento de seus estudos, já que permitem analisar e identificar de que modo e por que os sujeitos de uma sociedade traçam projetos de futuro permeados por sentidos e significados subjetivos.

Para esse Vigotski, o trabalho está além do que se conhece no capitalismo, que reduz as relações estabelecidas sob a promessa de algum dinheiro. O trabalho é entendido como toda ação do homem direcionada ao meio em que vive, e toda ação, por conseguinte, tem sentidos teleológicos, que, logo, de alguma forma, vão afetar o meio em que se vive, voltando a transformá-lo, como círculos infinitos. Essa dialética se torna responsável pela dinâmica das transformações sociais.

Segundo Bock (2010), compreender a relação do sujeito com uma sociedade dividida em classes sociais é fundamental para entender suas escolhas. A classe social em que este sujeito está inserido é um indicativo que pode ajudar a perceber em que nível de submissão ele está. O sujeito é capaz de fazer escolhas, mas também é influenciado e submetido aos eventos e às pessoas que compõem o meio social em que vive. Escolher significa ocupar um lugar na escala social; discutir, compreender e relacionar essa escala pode propor reflexões e contradições de uma escolha que é social e individual ao mesmo tempo.

Tal contradição é capaz de indicar que a escolha profissional ocorre com base em elementos determinados socialmente, mas que, quando o sujeito interage com o meio, ele é passível de transformar e de ser transformado. Toda a sua história se compõe, na verdade, de repertórios que servirão de alguma forma para a tomada de decisões. Decidir e também acatar ordens altera, afeta, interfere e constrói sua história – uma condição exclusiva da natureza humana, cuja unidade é dialética, e não formal. (GRAMSCI, 1978)

Ao se projetar para uma escolha profissional, o sujeito está tomando decisões subjetivas que de alguma forma buscam incluí-lo em um determinado grupo social, não em outro, o que remete a uma identificação maior com uma – e não outra – categoria profissional.

Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida-que-nem- sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade, assim, deve ser vista não como apenas questão cientifica, nem meramente acadêmica: é, sobretudo, uma questão social, uma questão política. (CIAMPA, 2005)

Sendo assim, de acordo com Ciampa (2005), as condições em que vive o sujeito poderão dar espaço para a construção de projetos. Ideologias e políticas que permitirão o alinhamento desse percurso, acentuando a questão e a responsabilidade do meio social em que vive; e o estabelecimento da relação com o exercício da escolha profissional poderá construir um processo de identificação profissional que interferirá no momento da escolha.

Ao fazer a opção por um curso superior, o sujeito estabelece um projeto para o futuro profissional, e isso inclui a esperança da conquista por trabalho, por melhores condições de vida. Considerando o contexto econômico, cultural e capitalista da sociedade brasileira, o trabalho se torna o responsável por determinar ao sujeito uma identidade, um lugar no status social, meio para estabelecer condições financeiras e atender às necessidades de sobrevivência, mas também as pressões culturalmente impostas pelo sistema com relação ao consumo.

Segundo Bock (2010), a população mais pobre no Brasil não tinha o direito de escolher sua profissão. A pobreza do brasileiro permitia viver apenas o hoje, pois o futuro não poderia oferecer o privilégio de planos. No atual momento, o acesso ao ensino de nível superior já pode fazer parte dos planos de futuro de algumas famílias de trabalhadores brasileiros.

A partir de 2003, alguns artigos foram publicados com relação ao tema, numa coletânea organizada em nome da Associação Brasileira de Orientadores Profissionais (ABOP). Vários tinham enfoque racial, outros, enfoque regional, com relação às escolas públicas e particulares. E o número de estudos vem aumentando significativamente, porém ainda são raros os títulos com foco na orientação profissional para trabalhadores.

No levantamento de teses e dissertações realizado no Banco de Teses da Capes, localizamos, sob a chave “Orientação Profissional”, 111 títulos entre teses e dissertações, sob a chave “Orientação Vocacional”, 35, e sob “Escolha Profissional”, encontramos 185. Esses números expressam, também, como no caso de livros e revistas, um fortalecimento da área, embora os números encontrados possam se sobrepor em mais de uma

chave. No caso da chave “Orientação Profissional”, aparecem títulos que nada têm a ver com o que procuramos, tratando de teses específicas que fazem indicações para o trabalho de uma dada profissão. Apesar desses números promissores, encontramos pouquíssimos títulos que investigavam a escolha profissional de pessoas de baixa renda. (BOCK, 2010, p. 62)

Segundo Bock (2010), dois trabalhos que tratam de modo específico desse assunto e merecem destaque são os de Fabiano Fonseca da Silva (2003), que pesquisou, para sua dissertação de mestrado, as escolhas a partir da perspectiva de alunos de escola pública e particular. Ele obteve como resultados que alunos de escolas particulares idealizam a entrada na universidade e alunos de escolas públicas têm o acesso ao mercado de trabalho como prioridade. O segundo trabalho destacado foi o de Raquel Alfredo (2006), que estudou os sentidos e significados da orientação profissional. Em sua conclusão, ela destaca a ausência de propostas que permitem à escola ser um espaço para o processo de construção de escolhas, e ainda ressalta que o trabalho é visto pela óptica de múltiplos determinantes socioeconômicos, levando à descontextualização histórica de todo o processo de escolha.

Bock apresenta a seguinte ideia:

Defendemos a oferta de programas de Orientação Profissional para todos. Programa entendido como uma oportunidade de sínteses de processo educacional, em que cada pessoa possa pensar em si, nas profissões, no mundo em que vive e sobre isso fazer projetos. Defendemos, ainda, que a oferta de serviços como esse não deve se restringir ao sistema educacional, reconhecendo como espaço privilegiado para esta ação, mas também em outros locais, como nos postos de intermediação de mão de obra públicos, assim como nas instâncias regionais do Ministério do Trabalho ou das Secretarias de Trabalho estaduais ou municipais, que lidam com a questão emprego/desemprego para o público que já deixou os bancos escolares. (BOCK, 2010, p. 550).

Sendo assim, a orientação profissional não deverá ficar apenas a cargo dos equipamentos educacionais, mas também dos órgãos que têm relações e interesses diretos com o desenvolvimento da escolha, isto é, de todos aqueles que de algum modo estão envolvidos com as questões de trabalho, emprego, empregabilidade, como a sociedade, a economia, a política e a família. Todos, desde o nascimento, interferem e devem assumir seus papéis na escolha profissional.

A partir da década de 1990, o número de vagas ocupadas por trabalhadores sem estudo vem sendo reduzido rapidamente. Na década de 2000, quase 85% do total das vagas abertas se destinava aos trabalhadores de salário- base com escolaridade equivalente ao Ensino Médio, ao passo que as vagas ocupadas por quem havia concluído o Ensino Superior formavam uma parcela bem menor do total dos postos de trabalho. Nos anos 1990, as vagas abertas aos trabalhadores de salário-base com Ensino Médio representavam 68,3% do total; com Ensino Superior, menos de 5%. Ainda há, em média, 160 mil jovens qualificados que migram para outros países, para o exercício de atividade operacional. (POCHMANN, 2012)

Segundo o IBGE (2013), 53% dos brasileiros formados trabalham em outras áreas, deixando de lado a profissão que desejavam ter quando se tornaram acadêmicos. A cada ano, milhares de pessoas deixam as instituições de ensino superior com um diploma nas mãos; no entanto, muitos provavelmente trabalharão em uma área que não tem muito – ou não tem nada – a ver com o curso escolhido.

A orientação profissional para os trabalhadores se torna importante a partir do momento em que o mercado de trabalho passa a remunerar de modo diferenciado profissionais com diploma. Essa condição fez com que a categoria passasse a inserir, nos próprios projetos de vida, o Ensino Superior, e foi somada ao aumento do número de vagas nas universidades particulares. Um fenômeno que tenta continuar a crescer nos próximos anos.