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UM HISTÓRICO DO CONCEITO DE GROUNDING 46.

2 GROUNDING 45.

2.2 UM HISTÓRICO DO CONCEITO DE GROUNDING 46.

Anotam Correia e Schnieder (2012) que um dos primeiros textos que

abordaram o conceito já na Antiguidade é o Eutífron, diálogo de Platão no qual Sócrates indaga seu interlocutor Eutífron sobre a noção do que é um ato piedoso, sua relação com aquilo que amam os deuses, a Justiça, e, sobretudo, qual o seu fundamento. Como em outros tantos dos diálogos, uma resposta que se serve de exemplos de atos piedosos (instâncias do Pio) é recusada pelo Sócrates platônico, cioso de obter do interlocutor uma definição do conceito, ou mais exatamente, o traço fundamental que faz com que algo piedoso assim o seja.

A partir de uma primeira definição de Eutífron que identifica algo pio como algo amado pelos deuses, uma série de outras premissas são introduzidas sempre seguindo o caminho normal dos diálogos (sequência de perguntas formuladas por Sócrates que recebem a aquiescência ou a recusa do outro personagem do diálogo) até que aquela primeira definição produz uma contradição e deve por isso ser rejeitada, iniciando-se uma nova procura pelo fundamento do conceito.

Mais importante que a reprodução do argumento é ressaltar que no diálogo o termo ‘porque’ se comporta assimetricamente (se algo é amado pelos deuses, assim o é por ser piedoso, sendo falso afirmar o reverso, que algo é piedoso pelo fato de ser amado pelos deuses: no diálogo ressalta-se como alguns atos apreciados pelas divindades na Mitologia jamais serviriam como exemplos de Piedade). Outra propriedade do ‘porque’ que ali se apreenderia, ao menos implicitamente, é a

transitividade26. Finalmente, o postulado de que propriedades relacionais são

fundadas em relações e não o contrário. A antissimetria e a transitividade são até hoje considerados quando se fala de grounding.

O conceito seria também apreensível dentre as quatro causas aristotélicas, especificamente as causas material e formal, o que se refletiria nas distinções de prova que demonstram que algo ocorre ou é o caso e provas outras que demonstram o porquê de algo ocorrer ou ser o caso. A apreensão do conceito no corpus aristotélico permanece, até onde se sabe, como um trabalho a ser empreendido.

Grounding seria igualmente observável no Princípio de Razão Suficiente (em termos grosseiros o princípio afirma que tudo possui uma razão para ser e que soa bastante intuitivo), inicialmente elaborado por Leibniz e daí seguido pela tradição racionalista. A base do princípio é a negativa de que do nada possa algo se seguir ou fundar, levando à conclusão de que tudo (objetos ou fatos, não importa) possui fundamento em algo. A defesa de tal conclusão partia da admissão como premissa de que algo que não possuísse razão alguma para ser / existir e logo chegava à unanimemente refutada conclusão de que o nada poderia ser o fundamento desse algo, uma reductio ad absurdum que em verdade violava a gramática da lógica ao considerar um quantificador (não existe algo que seja a razão do objeto introduzido na premissa) como um termo singular, o “nada” indicado como causa do objeto aventado.

26 O cerne da discussão entre Sócrates e seu interlocutor Eutífron se inicia quando aquele lhe indaga sobre qual seria o aspecto fundamental que permite com que este identifique toda uma série de exemplos de atos como piedosos. A primeira resposta de Eutífron dá-se no sentido que é pio o ato amado pelos deuses. Segue-se a isso uma primeira conclusão de que em verdade um ato é amado pelos deuses por ser pio, e não de que é pio por ser amado pelos deuses. O traço da piedade (não explicitado a essa altura do texto) é fundamental em relação ao fato de que o ato seja amado pelas divindades, sendo certo que isso não se dá no sentido inverso. Dessa forma, uma primeira propriedade dessa relação explicativa é a da antissimetria, já que não se poderia crivar com fundamentalidade o fato de que um ato é amado pelos deuses como fundante em relação a sua piedade. Por outro lado, e no que diz respeito à transitividade propriamente dita, ela emerge do encadeamento de outras sentenças do diálogo, onde inicialmente a antissimetria novamente se evidencia: se algo é amado pelos deuses, assim o é porque os deuses o amam; se os deuses amam algo isso não se deve ao fato de ser amado pelos deuses, devendo-se aqui atentar novamente para o fato de que propriedade emerge de uma relação e não o contrário. Sócrates então assinala que a primeira resposta de Eutífron compromete-se com a conclusão de que algo é pio por ser amado pelos deuses quando deveria ter seu fundamento no fato de que os deuses o amam. A conclusão se baseia no encadeamento de sentenças que se servem da transitividade da relação explicativa entre elas (algo é amado pelos deuses porque os deuses o amam; deuses o amam porque esse algo é pio; algo é amado pelos deuses por ser pio). Finalmente, ela colide com assertiva anterior (como seja, a de que um ato é em verdade amado pelos deuses por ser pio, e não a de que é pio por ser amado pelos deuses como visto acima) e por isso a resposta de Eutífron mostra-se falha.

O próprio Leibniz jamais se preocupou em formalizar ou demonstrar a coesão do princípio, sempre considerando sua intuitiva obviedade como suficiente para a larga aceitação. Contemporaneamente ele é ainda discutido, inclusive no bojo das investigações mais recentes sobre grounding, como indicam Yitzhak Melamed e Lin Martin (2020):

The notion of grounding has been increasingly a topic of discussion in contemporary metaphysics. Grounding is said to be a kind of explanation distinct from causal explanation. It is a metaphysical or constitutive explanation. It is generally taken to be asymmetric, irreflexive, and transitive. Alleged examples of grounding relations are: dispositions (e.g., fragility) are grounded in categorical features (e.g., molecular structure); semantic facts (e.g., Jones means addition by “+”) are grounded by non-semantic facts (e.g., Jones is disposed to draw certain inferences); mental properties (e.g., pain) are grounded by physical properties (e.g., c-fibers firing; see Rosen 2010 and Fine 2012). It has recently been proposed by Dasgupta that a version of the PSR could be formulated in terms of grounds. The proposal is formulated as follows: PSR: For every substantive fact there are some facts, the s, such that (i) the s ground and (ii) each one of the s is autonomous. (DASGUPTA, 2016,

pg. 12)

Em verdade o conceito de grounding sofreu seu maior desenvolvimento muitos anos após, com as investigações empreendidas por Bernard Bolzano no século XIX (1810, 1810/1812, 1837, 1838). A “matéria prima” de suas considerações eram proposições, concebidas como objetos abstratos, compostos estruturados de conceitos e conteúdos de julgamentos e asserções. Proposições verdadeiras poderiam ser ordenadas de modo a tornar evidente que algumas eram fundamentos de outras, assim indicando quais eram causas e quais eram suas consequências. Uma investigação filosófica não poderia se limitar a uma mera coleção de proposições verdadeiras acerca de algo: importa mais apontar onde estão as proposições que fundam a verdade daquelas outras delas consequentes. Esse era seu traço genuíno e que poderia ser observado em qualquer investigação científica, não importa quão variado seja seu objeto. Mais importante que saber que P é verdadeiro (desinfluente se P significa que o céu é azul ou que a raiz quadrada de 49 é 7), é saber o porquê de P ser verdadeiro.

Segundo a elaboração de Bolzano, grounding era um conceito primitivo, impossível de ser explicado em termos mais básicos.

Essa fundamentalidade, a indicar a impossibilidade de sua análise, não impede, entretanto, que sejam apontadas outras de suas propriedades e assim assinalar suas diferenças em relação a outros tantos conceitos.

Nesse sentido, grounding diferiria da implicação que pode relacionar duas ou mais proposições (como já mencionado, a verdade da implicação apenas se dá a partir dos valores de verdade dos termos por ela jungidos, nada expressando em termos de fundamentalidade ou prioridade explanatória). A dupla implicação, por exemplo, não leva à conclusão de que há um mútuo grounding (que a propósito é reconhecidamente assimétrico, como veremos adiante). Bolzano também apontava que o ground de algo (um conceito com assento na Metafísica) distingue-se da razão para saber algo (aspecto atinente a Epistemologia). Por outro lado, afirmou que

grounding possui pontos em comum com a relação de dependência.

Distintiva de sua presença em uma sentença da linguagem natural, ainda segundo Bolzano, é a conjunção “porque”. Uma sentença do tipo ‘p porque q’ é verdadeira sse a proposição expressa por ‘q’ é um ground para a proposição expressa por ‘p’. Importante para a detecção era a forma lógica das sentenças, ainda que esta se mostrasse aparentemente oculta pela utilização de conectivos / conjunções outras distintas de “porque”. Bolzano considerava grounding como uma relação e assim sempre tinha a forma lógica de asserções de grounding como relacionais, ainda que de modo distinto de sua forma aparente que não ostentasse um predicado com essa característica.

No que diz respeito às suas propriedades, grounding poderia ser considerado total ou parcial. Um ground total para uma proposição qualquer pode consistir em várias outras proposições, cada uma delas apresentando-se como ground parcial. Esse aspecto de um grounding composto não poderia ser substituído pela errônea consideração de que essa conjunção de grounds mostrava-se como o único fundamento de tal proposição. Uma conjunção sempre está fundada em cada dos termos conjuntos que a compõem: de outra forma uma conjunção seria autofundada (self grounded) o que emergiria como absurdo, dada a irreflexividade que se atribui à relação.

Ainda em termos de propriedades, Correia e Schnieder apontam que Bolzano (1837, §§ 203, 204 e 213) atribuiu ao grounding a factividade27 (a significar que

conecta apenas proposições verdadeiras28), embora em seus primeiros textos tenha

admitido entre seus relata qualquer categoria ontológica (substâncias, seus modos, propriedades, etc.); assimetria29 (se p é ground de q, então q não é ground de p);

irreflexividade30 (nenhuma é ground de si mesma) - corolário da assimetria; e

finalmente a transitividade31 (se p funda q e q funda r, então p funda r ). A

27 Fine aventou a possibilidade de relações de grounding não factivo, o que se mostrará de grande importância das soluções para contrapossíveis que serão propostas em seções seguintes. Outros autores como Jon Litland e Henrik Rydéhn exploraram essa não factividade em textos que serão abordados nas mesmas seções, propondo relações de grounding que se estabeleçam sejam entre fatos possíveis, mas que não ocorrem no mundo atual, sejam entre fatos simplesmente falsos.

28 A seção que trata dessa propriedade assim se inicia: “§203: Das es nur Wahrheiten find, die sich wie

Grund und Folge verhalten.” (em tradução livre, “que apenas verdades são relacionadas como

fundamento e fundado), concluindo Bolzano após longas considerações com apoio em Leibiniz que “So lehrte auch Leibniz in der schon angeführten Stelle: ‘la cause dans les choses répond à la raison

dans les vérités.’. Wie es, scheint er hier sagen zu wollen, Ursachen und Wirtungen nur in Reiche der Wirklichkeit gibt: so gibt we Gründe und Folgen nur im Reiche der Wahrrheiten.”, o que traduzimos por

“assim ensinou Leibniz no trecho citado que “a causa nas coisas corresponde à razão nas verdades”, o que nos parece que ele tenha aqui desejado dizer que somente há causas e efeitos no Reino das Verdades.” (BOLZANO, 1837, §203)

29 A questão quanto à possibilidade de ground reflexivo (“Ob etwas Grund und Folge von sich selbst

seyn könne”, em nossa tradução, “se algo pode ser fundamento e fundado de si próprio, ou causa e

efeito de si mesmo” obtém de Bolzano a seguinte conclusão: “Einige mögen auch wohl erwarten, das

wir den Ausdruck, der Grund dieses Satzes liegt in ihm selbst, so deuten werden: Dieser Grund liegt in der Beschaffenheit der Begriffe, aus welchen der Satz bestehet. Und das dürfte denn auch, wenn wir uns jene Beschaffenheit ausgedrückt denken, nicht unrrichtig seyn; nur liegt dann der Grund von der Wahrheit des Saches eingtlich nicht mehr im ihm, sondern in jenen Wahrheiten”, o que aqui traduzimos

por: “Alguns podem esperar que interpretemos a proposição (acima) como segue: que o fundamento reside na propriedade dos conceitos em que consiste a sentença. E isso não é incorreto se pensarmos nessa propriedade no modo como foi expressa; ocorre apenas que o fundamento da verdade da sentença não reside mais nela própria, mas nessas verdades.” (BOLZANO, 1837, §204).

30 Correia e Schnieder anotam a oposição de Carrie Jenkins (1994) à irreflexividade comumente atribuída ao conceito de grounding.

31 No que diz respeito à transitividade, (“Ob die Folge der Folge auch eine Folge des Grundes betrachtet

werden könne?”, aqui livremente traduzido “a consequência de uma consequência também pode ser

considerada como considerada como consequência de um fundamento?”) responde o autor que: “Da nun bei dem letzteren allerdings der Schlußsatz eines Schlußsatzes sich auch als Schlußsatz aus den Bordersätzen desselben ansehen lätzt: so konnten sie um so weniger darauf verfallen, bei dem Berhältnisse der Abfolge ein Anderes vorauszusetzen.”, no vernáculo “Com os últimos, no entanto, a cláusula final de uma cláusula final de uma sentença pode ser encarada como a cláusula final dos termos iniciais daquela mesma sentença; e ao menos prever outra consequência para as mesmas codições.” (BOLZANO, 1837, §214).

transitividade32 seria observada nos grounds mediatos mas não nos imediatos33.

Bolzano discordava ainda do princípio de razão suficiente por considerar que existiriam fatos em nada mais fundados.

Suas elaborações sobre o conceito evoluíram bastante ao longo dos anos não apenas no que diz respeito aos tipos de relata que estariam por ele ligados. Inicialmente outras relações como causa e efeito, dependência ontológica e o fazer algo “assim” ou verdadeiro eram consideradas como espécies de grounding. O refinamento conceitual levou-o à redução dos tipos de termos da relação (factividade), reservando ao grounding uma natureza explicativa relacionada e próxima, mas distinta das mesmas dessas outras relações. Nesse último aspecto, por ser mais primitivo, grounding poderia ser utilizado como modo de analisar o que elas significam. Como veremos a seguir, passados já quase dois séculos o debate sobre o tema ainda se beneficia enormemente dos trabalhos de Bolzano. A influência antimetafísica do Círculo de Viena contribuiu muito para que esse debate tenha caído no esquecimento durante alguns anos ou se deslocado do campo da Metafísica para aquele da Filosofia da Ciência. As investigações sobre Lógica Modal depois de algum tempo suscitaram a necessidade de um novo enfoque sobre a noção de explicação que está no núcleo conceitual do grounding, já que a utilização de termos modais como primitivos para denotá-la se mostrava insuficiente (FINE, 1994). A exploração de uma possível contribuição do grounding para essa questão é uma das motivações da presente dissertação.

32 Jonathan Schaffer (2012) discorda da transitividade atribuída ao grounding em texto no qual aponta alguns contraexemplos à propriedade. Tuomas Tahko (2013) também não vê na transitividade uma propriedade fundamental do grounding, desde que considera o conceito unívoco e desprovido de ambiguidade e não pode identificar essa mesma transitividade na relação de truth-grounding, um subtipo da relação. Truth-grounding é formulado como a relação que se estabelece entre o fato de que um dado q existe e a verdade da proposição q.

33 O fato de ostentar as propriedades da irreflexividade, antissimetria e transitividade fazem do

grounding aquilo que se denomina uma ordem estrita. Gonzalo Rodriguez-Pereyra (2015) discorda

disso baseando-se nas diversas objeções que diversos filósofos que se debruçaram sobre o tema fazem às alegações de que ele se caracteriza por cada uma dessas propriedades.