• Nenhum resultado encontrado

III. MIGRAÇÃO FEMININA PERSPECTIVAS E CONCEITOS –

3.2 Um modelo migratório dominante

Uma das razões primeiramente apontadas para uma tão prolongada negligência do estudo das mulheres migrantes é o facto de a própria conceptualização das migrações internacionais ter sido ser retirada de um modelo de migração essencialmente laboral e centrado no homem e em que a mulher era vista como inactiva e dependente daquele. “Migrants were assumed to be single men in search of employment, although throughout the labour migration period women both migrated and participated in economy.”147

Nas migrações internacionais, o migrante era o homem aventureiro que partia à procura de novas e melhores oportunidades numa outra região ou país e ao qual se juntava mais tarde a mulher e os filhos ou então que retornava a casa dando mostras de sucesso no seu projecto migratório.

Este modelo de migração é baseado na migração que se deu para os estados europeus, nomeadamente para o Norte da Europa, que permaneceu após a Segunda Grande Guerra Mundial até ao início da década de setenta e que compreendeu três fases. A primeira fase foi a da migração de homens jovens148 e sós; seguiu-se uma segunda fase de um fluxo migratório composto por uma grande proporção de homens mais velhos e casados; finalmente, numa terceira fase, após o fechamento das fronteiras no início dos anos 70, muitos desses homens trazem as suas mulheres e os seus filhos para junto de si, dando-se assim a reunificação familiar.

Este padrão migratório não perdeu a sua importância e, por isso, continuou a determinar o estudo das migrações internacionais. A redução das migrações internacionais a este padrão trouxe consequências para o modo como as mulheres migrantes eram encaradas: por um lado, que as mulheres não participam nos processos migratórios como mão-deobra, por outro, que as mulheres migram apenas no quadro da reunificação familiar,

sendo que apenas seguem os homens no seu percurso migratório, o que reforça a ideia das mulheres como passivas e dependentes daqueles.

147 KOFMAN, Eleanor et al, op. cit., p. 13

148 Os jovens têm uma maior predisposição para migrar do que os mais velhos, dado o seu maior espírito aventureiro e as suas menores responsabilidades, nomeadamente responsabilidades familiares.

90

Naturalmente que durante o período da migração laboral em massa, a mão-de-obra recrutada correspondia às necessidades de sectores-chave da reconstrução europeia e do desenvolvimento económico, como sejam as indústrias transformadoras e da

construção, para os quais a mão-de-obra masculina parecia mais adequada. Não pode, no entanto, também descurar-se a presença das mulheres nesta migração laboral. Com efeito, na Europa do pós-guerra verificou-se a procura de mão-de-obra por parte de determinados sectores tradicionalmente considerados femininos como a enfermagem, o trabalho doméstico, o ensino, etc.

Nos anos 60 e 70, as mulheres assumiam um número bastante expressivo na migração portuguesa, espanhola e jugoslava para França. Verificava-se também um número significativo de mulheres caribenhas que partiam, independentes, à procura de emprego para Inglaterra, bem como de mulheres irlandesas para esse destino e que ultrapassaram mesmo o número de homens emigrantes.

Nestas décadas, as taxas de actividade das mulheres estrangeiras eram mais elevadas que as das nacionais da maioria dos Estados receptores, com excepção da França em que a taxa de actividade das nacionais era já elevada.

E, mesmo na fase anterior à reconstrução económica e ao período da migração laboral em massa, verificaram-se exemplos de uma migração maioritariamente feminina. É o caso da emigração irlandesa, que referimos, que tinha como destino a Grã-Bretanha e que começou a assumir-se logo a partir de meados do século XIX. Outro exemplo diz respeito à presença das mulheres nas migrações transatlânticas e que se tornaram maioritárias nas correntes migratórias para os Estados Unidos a partir de 1930. Em relação à forte presença das mulheres na migração familiar, não pode efectivamente ignorar-se que, quando no início da década de 70, diversos Estados europeus receptores fecharam as suas fronteiras à imigração laboral, a migração de carácter familiar aumentou grandemente e o número das mulheres que entrou na Europa, nesse contexto, foi bastante significativo. Foi por isso que a migração feminina ficou fortemente associada e dependente da migração familiar. Tal como a migração de trabalho foi considerada masculina na sua composição, a reunificação familiar foi considerada como maioritariamente feminina.149

A associação das mulheres migrantes à migração de natureza familiar e a uma situação de dependência em relação ao homem migrante é menos uma escolha das mesmas do

149 Evidências recentes de muitos países revelam uma masculinização da reunificação familiar. O corolário é que as mulheres são agora, em grande medida, agentes da reunião familiar, com os homens como dependentes importados. 91

que a conjugação de diversos factores que continuam a empurrar as mulheres migrantes para determinados espaços e realidades. Esses mesmos factores contribuíram para obscurecer a visibilidade das mulheres migrantes, numa altura em que a migração familiar lhe reconheceu a importância estatística. Foram as condições dos países receptores que contribuíram principalmente para que as mulheres migrantes e as suas experiências fossem parcial ou quase totalmente ignoradas.

Em primeiro lugar, a sua entrada no país receptor era um direito que obtinham, mas como derivando do direito à reunificação familiar, ou seja, por serem esposas ou filhas dos trabalhadores migrantes.

Em segundo lugar, as mulheres migrantes não tinham direito a trabalhar na maioria dos estados europeus nos anos iniciais após a sua entrada. Mesmo que algumas

trabalhassem no seu país de origem e que desejassem trabalhar no país receptor, as alternativas residiam ou na vida doméstica ou no sector informal da economia, com o subsequente défice de direitos e de oportunidades.

Em terceiro lugar, uma das condições que determinava a regularização nos Estados receptores era frequentemente o emprego estável, circunstância baseada num modelo de trabalho masculino. Diferentemente, as mulheres inserem-se, como vimos, em sectores da economia considerados informais, como o trabalho doméstico, limpezas, venda ambulante e que se caracterizam por uma certa precariedade, dificultando-se assim a sua regularização e contribui para a sua relativa invisibilidade.

A visão do migrante apenas como homo economicus levou a que fosse dado um maior enfoque à migração laboral, sendo que o homem migrante era reconhecido por trabalhador migrante.

Finalmente, as condições de reunificação familiar estabelecidas pelos Estados receptores traduziam-se na necessidade de conformidade a um modelo de família tradicional, constituída pelo casamento, em que o homem aparecia como “chefe de família” e a esposa e os filhos como únicos dependentes. Tratava-se de uma noção de família baseada no tipo de família nuclear, o que excluía outros modos de coabitação, como os existentes nos países de origem destas populações.

Françoise Gaspard, refere ainda um outro aspecto que está na base dos poucos estudos relativos à mulher migrante e que é o facto de, em relação aos homens, a sua entrada e permanência na sociedade receptora ser comparativamente pacífica.

“The arrival of foreign women did not cause much concern. The collective fear was of single male workers, who were a threat to “our” wives and “our” daughters. The arrival of a wife 92

was, therefore, a way of “stabilising” them. Moreover, the wives do not disturb public order. They do not appear in crime statistics, or at least, very rarely.”150

Ao contrário dos homens, elas não prejudicam a ordem pública e normalmente não aparecem nas estatísticas de crime, pelo que não chamam a atenção da sociedade e dos governantes e, aparentemente, não apresentam problemas de integração.

A crescente visibilidade e participação das mulheres migrantes no mercado de trabalho, a migração feminina fora do quadro da reunificação familiar e a importância que vem sendo reconhecida à economia informal vêm, por um lado, destronar uma visão da mulher migrante como dependente, por outro dissociar o migrante da sua situação laboral, principalmente do trabalho estável e regular.