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adestramento dos indivíduos.

1.2. Vigilância e Sociedade Disciplinar: faces de um mecanismo de

controle

As análises apontadas por Michel Foucault (2008a) sobre as instituições sociais perpassam - como abordamos anteriormente - por âmbitos escolares, hospitalares, prisionais, dentre outros, e possui um papel fundamental no que tange a conceituação daquela que ele denomina como Sociedade Disciplinar.

Para o autor as instituições se configuraram, enquanto práticas disciplinares, como exercício do poder ou dos micro-poderes, a partir de um modelo que ele denomina como disciplinar. Esse modelo tem como característica básica a vigilância por meio de uma visibilidade, ou seja, a partir de estruturas físicas que permitissem uma observação constante, endossadas pelo registro de tudo aquilo que pudesse ser visto. Tais práticas desenvolvidas na sociedade ampliaram territórios, uma vez que estas produzem resultados eficientes sobre o comportamento dos indivíduos. A partir daí, são criados aparelhos de controle que funcionam como um microscópio do comportamento em redes que existem de forma discreta, integrando-se aos dispositivos disciplinares como efeito expansor desta produção.

A característica da visibilidade é apontada por Machado (2008) como uma “(...) vigilância que precisa ‘ser vista’ pelos indivíduos que a ela estão expostos como contínua e permanente; que não tenha limites: penetre nos lugares mais recônditos e esteja presente em toda a extensão do espaço”. (p. XVIII) Neste contexto, Foucault define a vigilância

ao mesmo tempo indiscreto – dada a sua capacidade de estar presente e sempre alerta – e absolutamente discreto, pois funciona praticamente em silêncio.

A nova concepção de vigilância, assumida no contexto social, possibilita a transformação do ambiente na medida em que inverte a concepção de prisão, até então identificada com a masmorra, na qual o prisioneiro é elevado ao topo de uma torre e lá fica isolado na escuridão. Ao contrário, a vigilância analisada por Foucault trata de um controle pela luz, ou seja, da construção de uma estrutura arquitetural, que permitia por meio de uma visibilidade, o controle global e individualizante dos agentes humanos, como podemos verificar pelas palavras do autor:

(...) assegurar uma vigilância que fosse ao mesmo tempo global e individualizante, separando cuidadosamente os indivíduos que deveriam ser vigiados. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia capta melhor que o escuro, que no fundo, protegia.” (FOUCAULT, 2008b, p.210).

É pela dinâmica do olhar sem ser visto que as características de uma sociedade disciplinar transparente e visível emergem em diversos âmbitos das sociedades modernas. Estes foram, por sua vez, o início de uma articulação de poderes que penetrou num pequeno espaço de tempo em praticamente todas as instituições, gerando nessa perspectiva, uma nova forma de administrar as relações de poder entre instituições e indivíduos por objetivos e interesses próprios daqueles que exercem o poder.

Deleuze identifica a sociedade disciplinar, a partir das concepções de Foucault, como uma “tecnologia que atravessa todas as espécies de aparelhos e de instituições para reuni-los, prolongá-los, fazê-los convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo.” (DELEUZE, 2006, p.35). Desta forma, tal tecnologia foi apropriada por diversas instituições, principalmente por objetivos econômicos, em se tratando de uma técnica simples e pouco custosa. As sociedades modernas e contemporâneas adotaram essas práticas com vistas a atender às demandas capitalistas:

Toda economia, a oficina, por exemplo, ou a fábrica, pressupõe esses mecanismos de poder agindo, de dentro sobre os corpos e as almas, agindo no interior do campo econômico sobre as forças produtivas e as relações de produção. (...) No caso das sociedades disciplinares dir-se-á: repartir, colocar em série, compor, normalizar. (DELEUZE, 2006, p.36- 38).

Ao adotar os princípios da vigilância como tecnologia de ação no corpo social, Deleuze (2006) descreve o percurso que essas práticas realizaram ao longo da história contemporânea e aponta para o aprimoramento dos modelos abordados em nossos pressupostos teóricos. Segundo o autor, a sociedade disciplinar teve como principal característica os moldes produtores de subjetividade, ao passo que o aprimoramento dessas técnicas levou à Sociedade do Controle que está pautada sob a moldagem de transformação continua, de modo a produzir uma subjetividade flexível.

O panorama acerca das temáticas do poder, da disciplina e da vigilância nos permitiu obter fundamentos que pudessem nos conduzir a abordagem que pretendemos realizar acerca da sociedade contemporânea, no que tange à temática relacionada aos mecanismos de controle e de disciplina nas instituições de ensino superior e da produtividade acadêmica, por meio de um dispositivo tecnológico, a saber, o formulário do Currículo Lattes.

É relevante destacar que o percurso realizado até o momento nos ofereceu concepções, que ao longo da história, puderam ser aperfeiçoadas e utilizadas em grande escala nas sociedades contemporâneas. Tais relações contaram com o avanço tecnológico para ampliar suas capacidades de penetração e ação em todos os âmbitos da sociedade, de modo que a expansão e a democratização das fronteiras informacionais – a internet e o surgimento de mecanismos de controle avançados – configuraram um novo modelo de controle social: a sociedade do controle ou da vigilância. Essa sociedade ganhou novos aparatos tecnológicos – e como veremos a seguir – mantém, ainda, como principais características os modelos clássicos apontados por Foucault em sua obra.

Com base nestas novas características, um novo sujeito deverá ser produzido com vistas a substituir o sujeito disciplinado, facilitando o seu controle e sua governabilidade. Isto deverá responder às demandas flexíveis de um mercado em constante transformação, tornando-se cada vez mais a referência de conduta e comportamento dos sujeitos humanos ao investir em atitudes que sejam capazes de produzir o chamado capital humano, exigido pelo próprio tempo em que vivemos.

Segundo André Gorz, o trabalho humano é considerado desde Adam Smith como mercadoria, sendo que esta não é mais mensurável em função do tempo de sua realização. Trata-se pois, de novos fatores que compõem um ambiente em que as empresas entendem o "capital humano" como: "os empregados tem de se tornar empresas, mesmo no interior

Desta forma, Gorz destaca que na contemporaneidade o capital humano passa por diversas transformações que caracterizam o conhecimento como capital imaterial:

O capitalismo moderno, centrado sobre a valorização de grandes massas de capital fixo material, é cada vez mais rapidamente substituído por um capitalismo pós-moderno centrado na valorização de um capital dito imaterial, qualificado também de "capital humano", "capital conhecimento" ou "capital inteligência". (...) O conhecimento é considerado como a "força produtiva principal". (GORZ, 2005, p. 15).

Tais aspectos, típicos da sociedade contemporânea permeiam o contexto social, principalmente no que tange à temática relacionada ao conhecimento como capital. Este, entendido enquanto força produtiva traz consigo características do capitalismo comercial à baila acadêmica, em que os quesitos relacionados à produtividade e competitividade tornam os agentes humanos suscetíveis a instrumentalizações advindas de pressões externas quanto a uma autentica produção de conhecimento. O autor destaca que:

"A economia do conhecimento" contém em seu fundo uma negação da economia capitalista comercial. Ao tratá-la como "az nova forma do capitalismo", mascara-se seu potencial de negatividade. O conhecimento inseparável da capacidade de conhecer, é produzido concomitantemente ao sujeito cognoscente. Ele é um valor verdade antes de ser um meio de produção. (GORZ, 2005, p. 55).

Desta forma, podemos identificar características desta nova forma de pensar o conhecimento dentre as relações existentes nos ambientes acadêmicos e a produção de conhecimento exigida junto a pesquisadores, pautadas em valores de produtividade e pressões quanto ao tipo de atividade a ser desenvolvida. Estamos diante de uma comunidade científica que se apresenta de forma competitiva, sujeita à pressões institucionais que reconfiguram as relações do saber acadêmico pautadas em políticas que buscam atender a quesitos econômicos.

Gorz critica esta prática, considerando-a prejudicial às relações de produção de conhecimento autêntico:

Tratar o conhecimento como um capital e um meio de produção é finalmente rebaixar toda a atividade humana - todas as capacidades cognitivas, estéticas, relacionais, corporais, etc. - a atividades instrumentais de produção, ou seja, ao produtivismo capitalista e à sua indiferença aos conteúdos. O paradigma da produção pela produção, da acumulação pela acumulação, é simplesmente estendido do domínio das mercadorias e dos capitais ao da inovação e dos conhecimento-

produtivos-de-conhecimentos-produtivos considerados como fins em si, sem se preocupar com a orientação e o sentido dessa acumulação. É sob essa luz que o capitalismo cognitivo prolonga o capitalismo - pervertendo a especificidade das relações sociais de conhecimento. (GORZ, 2005, p. 56).

Sob essa perspectiva, debruçamo-nos para investigar as relações de poder que podem modificar a conduta de pesquisadores por meio do dispositivo tecnológico Currículo Lattes, em especial, aos pesquisadores da área de Arte, que se apresenta de forma a não se ajustar a mecanismos de controle, uma vez que sua natureza diversa procura "escapar" de ser instrumentalizada para o cumprimento de quesitos de produtividade.

Nesse sentido, destacamos um trecho de Foucault (2002) em que ao tratar da temática de linguagem, exemplifica a autonomia dessa área Arte, que caminha por meio das linguagens, o que dificulta seu enquadramento em modelos pré-estabelecidos. Podemos substituir a palavra linguagem na obra foucaultiana pela palavra Arte:

(...) a experiência da linguagem (....) existe primeiramente, em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escrita, de u m estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada pelo mundo e que faz parte de suas mais indeléveis figuras. Num sentido, essa camada de linguagens é única e absoluta. (FOUCAULT, 2002, p. 58).

É neste contexto contemporâneo em que o capital humano é tomado como mercadoria e sua valoração é feita em função de quesitos de produtividade, que área de Arte pode ser analisada como um exemplo das relações de poder contidas no dispositivo Currículo Lattes. Agregados a esses conceitos, estão ainda elementos que permeiam este processo de transformação da sociedade contemporânea e que estão pautados na figura arquitetural denominada Panóptico por Jeremy Bentham e adotado nas teorias foucaultianas, por tratar-se da grande descoberta de um dispositivo disciplinar que permite a vigilância permanente e contínua e que detalharemos a seguir.

1.3. O Panopticon e a Sociedade Contemporânea: tecnologia do poder