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A evolução do direito europeu dos contratos públicos in a nutshell

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 64-71)

Logo após o arranque do projeto comunitário e europeu, e não obstante o silêncio dos Tratados, as autoridades comunitárias e europeias reconheceram que: i) a integração dos contratos públicos no então mercado comum, agora mercado interno, decorre da igualdade e das liberdades de circulação reconhecidas aos operadores económicos dos Estados-Membros; ii) as transações económicas subjacentes aos contratos públicos têm um forte impacto no mercado comum e interno1; iii) dada a insuficiência da mera consagração dos princípios e regras fundamentais do mercado, torna-se necessária a implementação de uma disciplina específica, que estabeleça medidas de coordenação dos procedimentos pré-contratuais realizados pelas entidades adjudicantes dos diversos Estados-Membros; iv) e, por último, importa garantir a efetividade dessa regulação específica, através de medidas, também elas próprias e específicas, de garantia e tutela dos direitos dos operadores económicos eventualmente lesados.

Tal como anunciado nos Programas Gerais de 1961 e na declaração anexa do Conselho2 – que revela a “ligação umbilical” entre os contratos públicos e o mercado – , o legislador comunitário e europeu foi concretizando, step by step, e em feed-back com o Tribunal de Justiça (TJ), todo um quadro normativo orientado para a integração dos contratos públicos num mercado que visa promover e garantir o acesso e a competição, com base no mérito, entre os operadores económicos, neles se incluindo os interessados na celebração de um contrato público.

Atualmente3, a disciplina jurídica específica integra: a Diretiva 2014/23/UE, do

1 Atualmente, cerca de 18% do PIB da União Europeia.

2 Declaração aprovada na 563.º sessão do Conselho da CEE, Bruxelas, dias 23 a 25 de outubro de 1961.

3 Numa breve sinopse histórica do direito derivado comunitário e europeu dos contratos públicos, podemos destacar várias fases normativas, a saber: i) as diretivas de “liberalização” e de “coordenação

– ou, dito de outro modo, diretivas de integração negativa e de integração positiva; ii) as diretivas de

consolidação”, incluindo a aprovação das “diretivas-recursos”; iii) as diretivas de “codificação” de 2004; e, por último, volvidos dez anos, iv) a aprovação das diretivas de 2014, habitualmente designadas “diretivas de quarta geração”.

Até à Reforma de 2014, as diretivas substantivas regulavam, de forma muito detalhada, aspetos diversos, ainda que quase exclusivamente relativos à fase de formação do contrato, privilegiando a efetiva abertura

Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão; a Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos; e a Diretiva 2014/25/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, energia, transportes e serviços postais, todas publicadas no JO L, n.º 94, de 28 de março de 2014.

Na medida em que, e contrariamente ao que sucede no contexto empresarial, a motivação das decisões do Estado e das restantes entidades públicas raramente assenta na estrita racionalidade económica, visa-se garantir que os contratos que estes pretendem celebrar com os operadores económicos, enquanto transações económicas com impacto no mercado interno, respeitem as regras em que este

dos contratos públicos ao mercado, incluindo em especial: i) a proibição de discriminações diretas e indiretas, abrangendo as que decorrem de especificações, requisitos e cláusulas insertas nos documentos do procedimento; ii) a garantia de condições de igualdade de oportunidades e de tratamento entre todos os concorrentes, em condições de transparência, designadamente através da publicidade e da prévia fixação (autovinculação) e estabilização (“congelamento”) das “regras do jogo”; e, iii) a objetividade da decisão de adjudicação, vinculada a critérios previamente definidos e divulgados. Destacam-se, entre outros: a definição do âmbito subjetivo e objetivo de aplicação; a proibição de fracionamentos indevidos;

a definição técnica do objeto do contrato, através das denominadas especificações técnicas; os tipos de procedimentos pré-contratuais; critérios de seleção qualitativa -“situação pessoal” e capacidades técnica e financeira - dos concorrentes ou candidatos; critérios de adjudicação e regras de publicidade.

Há, de todo o modo, que sublinhar que a “diretiva-setores especiais” admitia uma maior flexibilidade das regras relativas aos procedimentos pré-contratuais, comparativamente com o regime traçado nas

“diretivas-setores gerais”, o que se mantém, enquanto caraterística (originariamente) diferenciadora dos dois regimes.

Por último, impõe-se uma, ainda que sucinta, referência às “diretivas-recursos” - Diretivas 89/665 e 92/13, alteradas pela Diretiva 2007/66 - que contemplam os meios de tutela a utilizar pelos agentes económicos que se considerem lesados por decisões ilegais das entidades adjudicantes, como sejam o processo urgente de impugnação de decisões; adoção de medidas cautelares e de medidas urgentes;

concessão de indemnização, incluindo ainda regras relativas à invalidade dos contratos.

A finalizar, registe-se ainda a aprovação da primeira diretiva sobre os contratos públicos celebrados no setor da defesa - a Diretiva 2009/81/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, relativa à “coordenação dos processos de adjudicação de determinados contratos de empreitada de obras públicas, de fornecimento de bens móveis e de aquisição de serviços, celebrados por entidades adjudicantes nos domínios da defesa e da segurança” - que, não obstante as suas especificidades, representa mais um “passo” na evolução expansiva do direito europeu dos contratos públicos, incidindo numa área especialmente “sensível”, com inevitáveis e relevantes consequências nos regimes jurídicos nacionais.

assenta, assegurando-se, assim, uma competição em condições de igualdade, não discriminação em razão da nacionalidade e sem obstáculos ou entraves, diretos ou indiretos, às liberdades de circulação.

E, por isso, esta disciplina jurídica dirige-se aos Estados, bem como às entidades públicas (e, para esse efeito, equiparadas4) que, não atuando em ambiente concorrencial, têm de recorrer ao mercado seja para a prossecução das suas atividades seja para a satisfação das suas necessidades de funcionamento, celebrando, para esse efeito, contratos com agentes económicos, a quem também se garante a tutela dos seus direitos e interesses5.

E se é certo que a evolução do direito europeu dos contratos públicos foi sendo concretizada através de diversas diretivas, sucessivamente aperfeiçoadas, aplicáveis quer aos procedimentos pré-contratuais quer aos direitos e garantias dos operadores económicos interessados na obtenção de um contrato público, há que sublinhar que esta construção jurídica foi ainda, ao longo destas décadas, objeto de uma interpretação teleológica e funcional do TJ, que contribuiu inequivocamente para a sua consolidação, reforço e mesmo expansão, em ordem a garantir a efetividade do direito dos contratos públicos enquanto instrumento de concretização do mercado único e de prossecução do projeto europeu, posteriomente “alinhado”, como veremos, com a promoção de políticas sociais (e ambientais) através dos contratos públicos.

Trata-se, por isso, hoje, de um corpus iuris constituído por direito originário – Tratados e Jurisprudência – e direito derivado, integrado num contexto jurídico global, em especial o resultante da Organização Mundial de Comércio (OMC), na sequência dos compromissos internacionais assumidos pela União Europeia no

4 Reportamo-nos aos “organismos de direito público” (artigo 2.º, n.º1, 4) da Diretiva 2014/24). Há ainda que ter em conta as entidades privadas submetidas ao regime de contratação pública, em virtude da natureza do financiamento obtido (artigo 13.º da Diretiva 2014/24). Apenas por razões de simplificação do texto, doravante apenas indicaremos os artigos da Diretiva 2014/24, sem prejuízo das disposições pertinentes contidas nas Diretivas 2014/23 e 2014/25.

5 Por via da imposição de uma disciplina processual específica, concretizada nas vulgarmente designadas

diretivas-recursos”, mencionadas na nota 3.

âmbito do Acordo sobre os Contratos Públicos (ACP)6. É ainda de notar que o direito europeu dos contratos públicos integra princípios e normas jurídicas substantivos, procedimentais e processuais, comummente reconhecidos por organizações internacionais, como os vertidos na “Lei-Modelo” das Nações Unidas7, entre outras.

2. A Reforma de 2014: uma contratação pública socialmente comprometida A Reforma de 2014, concretizada nas já referidas Diretivas 23, 24 e 25, visa alcançar dois objetivos principais: por um lado, e numa linha de continuidade, pretende-se garantir que a celebração dos contratos públicos respeita os princípios fundamentais dos Tratados, de modo a prosseguir a efetiva abertura do mercado à concorrência; e, por outro lado, de forma inovadora, pretende-se utilizar os contratos públicos como ferramentas ou “alavancas8 de promoção de políticas públicas sociais, ambientais e de inovação, de molde a contribuir para o crescimento inteligente, sustentável e inclusivo do mercado, tal como assumido na Estratégia Europa 2020.

Ainda que de modo necessariamente sucinto, afigura-se-nos importante realçar que a Reforma de 2014 privilegia: i) o incremento do acesso aos contratos públicos, designadamente por via da obrigatoriedade9 do e-procurement integral10 e da simplificação das formalidades, de que se destaca a utilização do

6 Cfr. ACP (2012) publicado no JO L 68, de 07.03.2014.

7 A “Lei-Modelo” (1994) da UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law tem contribuído significativamente para a harmonização internacional dos regimes nacionais de contratação pública, através da adoção de um padrão normativo flexível e abrangente, estimando-se que já tenha sido acolhida em mais de 30 países, sobretudo países em vias de desenvolvimento. Com a revisão de 2011, pretende refletir as melhores práticas internacionais e representar a interseção do carrefour jurídico mundial em matéria de contratação pública, alargando e reforçando a sua influência num maior número de ordenamentos jurídicos nacionais.

8 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Acto para o Mercado Único – doze alavancas para estimular o crescimento e reforçar a confiança mútua -

“Juntos para um novo crescimento”, COM (2011) 206 final, Bruxelas.

9 Sem prejuízo da fixação de um prazo longo para a transposição - cfr. artigo 90.º, n.º 2 da Diretiva 2014/24.

10 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Acto para o Mercado Único II - “Juntos para um novo crescimento”, COM (2012) 573 final, Bruxelas.

“Documento Europeu Único da Contratação Pública”11; ii) a flexibilização de procedimentos e a explicitação das condições da sua utilização; iii) a utilização de técnicas promotoras de maior racionalização e eficiência nas despesas públicas subjacentes aos contratos públicos, como a agregação ou a centralização ou ainda a adjudicação conjunta, sem prejuízo de se reafirmar e explicitar a opção por outras formas de colaboração interadministrativa, decorrentes do princípio da liberdade de auto-organização administrativa12; iv) a promoção da participação das PME, através de um elenco de medidas específicas – como a simplificação dos encargos administrativos, através da utilização do “Documento Europeu Único da Contratação Pública” e a participação em procedimentos pré- contratuais, com apresentação de proposta relativa a apenas um ou vários lotes do objeto do contrato – e/ou tendencialmente favorecedoras do seu acesso aos contratos públicos; v) a promoção da inovação, através da previsão de um novo procedimento designado “parceria para a inovação”, bem como do incentivo à utilização de propostas variantes, potenciando a investigação aplicada e o Know- how do mercado; vi) a utilização dos contratos públicos como instrumentos de concretização de outras políticas públicas, designadamente no âmbito ambiental e social; e, vii) o reforço da integridade nos contratos públicos.

Na Reforma de 2014, destaca-se ainda a aprovação da Diretiva 2014/23, relativa aos contratos de concessão, que representa um marco relevante da evolução do direito europeu dos contratos públicos, ao estabelecer, pela primeira vez, um regime jurídico único e específico para todos os contratos de concessão, quer de obras quer de serviços públicos – que, como se sabe, representam cerca de 60% das parcerias

Cfr. ainda a Diretiva 2014/55, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa à faturação eletrónica nos contratos públicos.

11 Aprovado pelo Regulamento de Execução (UE) da Comissão, de 5 de janeiro de 2016, que estabelece o formulário-tipo do “Documento Europeu Único de Contratação Pública”, na sequência do estabelecido no art. 59.º, n.º 2 da Diretiva 2014/24 e no art. 80.º, n.º 3 da Diretiva 2014/25.

12 Cfr. artigo 12.º da Diretiva 2014/24, que, também aqui, procede à positivação da jurisprudência do TJ.

Vale a pena recordar que no que respeita à vulgarmente designada contratação in house essa positivação já tinha sido equacionada no âmbito do processo legislativo relativo às Diretivas de 2004, mas, lamentavelmente, não se conretizou. Para mais desenvolvimentos, ver o nosso Os princípios comunitários e contratação pública (Coimbra Editora, 2007), 474 e ss.

ou colaborações público-privadas –, positivando uma jurisprudência consistente e reiterada do TJ, iniciada com o acórdão Telaustria, de dezembro de 200013.

Mas a grande novidade da Reforma de 2014 consiste, em nosso entender, na adoção de uma visão estratégica e sustentável ou, como preferimos, socialmente comprometida da contratação pública, agora perspetivada como instrumento de políticas públicas diversas e setoriais, em detrimento da exclusividade da racionalidade económico-financeira que sempre dominou a evolução do direito europeu dos contratos públicos, ainda que (já) ligeiramente mitigada nas Diretivas de 2004.

Dito de outro modo, não obstante a mutabilidade dos concretos objetivos que se associam, como acima referimos, a cada uma das “gerações” de diretivas, certo é que todos eles representam (apenas) momentos de um percurso (sempre) orientado para a abertura dos contratos públicos à concorrência e competição dos operadores económicos no espaço europeu, decorrente de uma conceção (quase) exclusivamente económico-financeira, quer na perspetiva do setor privado quer na perspetiva do setor público.

Sem prejuízo, também nos últimos anos, e como adiante veremos, foram sendo visíveis preocupações de outra índole, designadamente a possibilidade de integração de políticas de natureza social e ambiental, bem como a promoção do acesso das PME aos contratos públicos, que justificaram algumas referências nas Diretivas de 2004, bem como nas diversas iniciativas de soft law, revelando também aqui, mais uma vez, um “fenómeno de feed-back, [em que] jurisprudência e norma se retroalimentam14.

Agora expressamente enquadrada na Estratégia Europa 2020, visa-se um reforço do caráter instrumental dos contratos públicos, que, por isso, está – ou deve estar – ao serviço dos diversos interesses e fins de interesse público que justificam e norteiam a construção do projeto europeu, sem prejuízo da manutenção, reiterada, da prossecução

13 Coloca-se, assim, um ponto final numa longa controvérsia assente em construções jurídicas (que se vieram a revelar) incompatíveis com a conceção europeia dos contratos públicos enquanto transações económicas com impacto no mercado, e que consubstancia (mais) um relevante alargamento do âmbito objetivo do direito dos contratos públicos.

14 Assim se refere Melán Gil, no “Prólogo”, com que nos honrou aquando da publicação da nossa tese de doutoramento Os princípios comunitários e contratação pública (Coimbra: Coimbra Editora, 2007), 7 e ss.

dos objetivos de uma economia de mercado e da racionalidade da gestão dos dinheiros públicos, também eles de reconhecido interesse público – europeu, e não meramente nacional –, tal como decorre do nosso compromisso com a União Europeia15.

Importa, assim, reenquadrar a contratação pública e reforçar a sua utilização em ordem à promoção de políticas públicas, que não apenas de índole económica e financeira, no novo contexto em que vivemos. Um novo contexto, porque o mercado mudou e porque a União Europeia e o mundo também mudaram, o que obriga e exige a adaptabilidade dos objetivos associados aos contratos públicos, enquanto ferramentas orientadas num e para um compromisso com a sociedade, que reclama, (já) não um qualquer crescimento, mas um crescimento sustentável, inteligente e inclusivo numa Europa que, apesar da crise, et pour cause, se pretende concretizar e salvaguardar.

Assim, entendemos que a concretização da Reforma de 2014 depende, em grande medida – e para além de um acervo relevante de fatores exógenos, que aqui não cumpre explicitar –, de uma atuação dos poderes públicos que (já) não se basta com o apelo tout court ao mercado, mas exige responsabilidade e compromisso com as exigências e os desafios que a sociedade enfrenta.

Ora, é nesta perspetiva que, a nosso ver, se deve reenquadrar e compreender a promoção de políticas sociais através dos contratos públicos, enquanto pressuposto indispensável à concretização de uma contratação pública responsável e comprometida com a sociedade.

Nas próximas linhas, procurar-se-á dar conta da relevância deste novo paradigma da contratação pública, focando as novidades relativas à promoção de políticas sociais insertas na Reforma de 2014.

15 Como salienta a Comissão Europeia, “as entidades públicas gastam cerca de 18% do PIB da UE em bens, serviços e obras. As legislações europeias e nacionais abriram os contratos públicos à concorrência leal, o que teve por consequência facultar aos cidadãos uma melhor qualidade ao melhor preço. Mas, [...] os contratos públicos oferecem oportunidades de aumentar a procura de bens, serviços e obras respeitadores do ambiente, socialmente responsáveis e inovadores. Por outras palavras, os contratos públicos podem servir de ferramenta para fomentar o desenvolvimento de um mercado interno mais ecológico, social e inovador”. Acresce que [...] o acesso ao mercado deve tornar-se ainda mais fácil, em particular para as PME in Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Acto para o Mercado Único – doze alavancas para estimular o crescimento e reforçar a confiança mútua..., cit., p.20.

3. Em especial: a promoção de políticas sociais através dos contratos

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 64-71)