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O tratamento histórico-tradicional do fenômeno da corrupção

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 95-99)

É histórica a preocupação acadêmica e normativa voltada a priorizar a responsabilização da pessoa física quando da prática de atos corruptivos. Também tradicional é a preocupação criminológica acerca do tema sob o viés individualista, sem atentar para os reflexos sociais ou transindividuais do problema. Tal cultura decorre ainda das influências do Estado Liberal, marcante para o fomento da expressão individualista, que tem seu marco histórico na Revolução Francesa. Desde então, sob este modelo, buscou-se inverter as posições anteriormente vigentes na relação de primazia Estado-indivíduo para uma performação indivíduo-Estado.

Daí poder-se falar em um perfil social e estatal liberal-individualista-normativista.

Nesse período até recentemente, o tema das condutas sociais que caracterizassem práticas corruptivas, com lesão ao erário ou mesmo de consequências coletivas, não mereceu preocupação acadêmica ou mesmo legislativa adequada. O tratamento de questões desse jaez era restrito aos denominados “crimes do colarinho branco”, “cifra oculta da criminalidade” ou mesmo macrocriminalidade, com performace “romântica”

ou “artesanal”. Não se via preocupação do Estado em prevenir e reprimir as infrações penais e/ou administrativas de alta lesividade social como fenômeno acentuadamente lesivo e multifacetado, com intensos reflexos sociais, polícitos, econômicos e jurídicos.

Até meados do século passado, a criminologia foi precursora em desenvolver atenção científica sobre o tema dos desvios nas relações privadas-estatais, entre pessoas físicas ou jurídicas. Elegeu a obra de Cesare Lombroso, O Homem Delinqüente, de 1876, como o marco de seu surgimento. Lola Aniyar de Castro assevera que o segundo momento mais importante para a criminologia constitui-se no discurso pronunciado por Sutherland perante a Sociedade Americana de Criminologia, em 1949, no qual definiu o conceito de crime do colarinho branco (white-collar crime)3, que foi mais tarde desenvolvido pelo autor4 em razão de uma série de violações da Lei Antitrust, nos Estados Unidos, por diversas corporações minerais e comerciais privadas, além de corporações de serviço público de energia e luz elétrica daquele país. Sutherland destacou que as companhias produtoras de aparelhos elétricos mais importantes dos Estados Unidos haviam dividido o território em quatro partes, cada uma sob o domínio individual. Com isso, arbitrariamente, sem relação com os custos de produção ou com a oferta e procura, em detrimento dos consumidores, tais companhias fixavam preços exorbitantes, explorando o mercado. Os conchavos entre elas eram realizados em hotéis, clandestinamente, com a utilização de uma espécie de jargão característico, para dissimular o conteúdo dos acordos. “Em vez de falar em suas cartas, de listas de preços ou lista de pessoas que compareciam às reuniões, falavam em lista de cartões de natal. Telefonavam-se geralmente de telefones públicos e, ao se registrarem nos hotéis, não nomeavam as companhias representadas e assim por diante”. Estas características foram utilizadas por Sutherland para definir os delitos do colarinho branco, em um primeiro momento, não apenas como aquelas condutas sancionadas no Código

3 Sobre a origem do conceito de colarinho branco, Alberto Zacharias Toron, “Crimes de colarinho branco.

Os novos perseguidos?” Revista Brasileira de Ciências Criminais 7: 28(1999): 75. esclarece que “Antes da contribuição de Sutherland, a sociologia já utilizava a expressão white collar (colarinho branco) para designar os trabalhadores não braçais em contraste com as vestimentas blue collar, os macacões, dos obreiros”. Ressalta que Sutherland, “ao fixar o conceito de crimes do colarinho branco como aqueles cometidos por pessoas de elevada condição socioeconômica, o fez, como expressamente advertiu, por comodidade. Pois, o conceito não pretendia ser definitivo, mas visava a apenas chamar a atenção sobre os delitos que normalmente não adentravam o âmbito da criminologia”. Odone Sanguiné assevera que a literatura sociológica empregou a expressão “colarinho branco (Wright Mills)” pela primeira vez para descrever a classe média norte-americana, apresentada como formadora da “elite do poder. Odone Sanguiné, “Função simbólica da pena.” Fascículos de Ciências Penais 4: 2(1991):18.

4 Edwin H Sutherland, “Il crimine dei coletti bianchi.” (Milão: Giuffré, 1987).

Penal, mas também o que é sancionável pelo Código Penal, isto é, o que causa um dano importante aos interesses da comunidade, ainda que não previsto no aludido Código, bastando que se encontre em leis penais especiais5.

É nesse contexto histórico e dogmático que se insere o fenômeno das práticas corruptivas como fator de hodierna preocupação mundial. Se até meados do século passado verificava-se atenção acadêmica e até jurídica muito tênue sobre o problema no âmbito do Direito, que também utilizava denominações como crimes do colarinho branco, cifra dourada da criminalidade ou macrocriminalidade, passou-se a observar no plano dogmático e jurídico acentuada ênfase sob o prisma do combate daquilo que se passou a chamar de corrupção. Suas proporções e lesividade ao patrimônio público, à economía, política e reflexos sociais, bem como sua disseminação em todos os setores e níveis, a despeito da repercussão midiática, motivaram movimentos legislativos nos quais os Estados e Organismos Internacionais6 passaram a procurar uma resposta adequada ao problema. A despeito dos aspetos positivos desta progressiva amplitude da transparência material e formal (publicidade ampliada, mais leis, tratados, convenções, pactos, sentenças judiciais, pesquisas acadêmicas e procedimentos administrativos que se ocupam do tema) que surge em torno da corrupção, gerando até reflexos sobre a opinião pública de massa, resgatando a capacidade de indignação quanto ao problema, o que se afigura importante, isto tampouco dá conta da complexidade deste fenômeno7.

Leal, sobre o tema, assevera com absoluta propriedade: “Por outro lado, o debate sobre corrupção tem se centrado nos seus aspectos econômicos e jurídicos no Ocidente, todavia o problema é quando estes âmbitos de enquadramento restringem outras abordagens que dizem com causas e consequências para além deles, deixando de se reconhecer que, em verdade, que a corruption destroys the fundamental values of human dignity and political equality, making it impossible to guarantee the rights to life, personal dignity and equality, and many other rights. É fácil entender

5 Lola Aniyar de Castro, “Criminologia: Da reação social.” (Rio de Janeiro: Forense, 1983) 73.

6 Veja-se pesquisa da Transparência Internacional, que é reveladora sobre os alarmantes índices de práticas corruptivas em diversos países, incluindo alguns de destaque por seu desenvolvimento econômico e social. https://www.transparency.org.

7 Leal, “Patologias corruptivas”, 9.

que tais restrições de compreensão do fenômeno sob comento também são decorrência do foco e da intensidade das violações econômicas e jurídicas que a ele provoca, pois ocorre mesmo o que Klitgaard chama de capture of the state by elites and private interests. É possível diferenciar entre corrupção provocada para ganhos públicos e ganhos privados? Ou mesmo entre corrupção provocada pelo setor público e pelo setor privado?”

Em especial a partir de movimentos internacionais gestados em organismos multinacionais, verifica-se uma virada hermenêutica no sentido de despertar para o fenômeno da corrupção no setor privado em suas relações mercadológicas e na esfera de suas relações com a Administração Pública como fenômeno de alta lesividade social, política e econômica, conforme já ressaltado, que precisa ser combatido.

Perceptível a existência de movimentos transnacionais e internos na direção do estabelecimento de mecanismos normativos e axiológicos destinados ao combate à prática corruptiva, em todos os seus níveis, mas sempre com a preocupação da defesa do erário que, em última análise, se reflete na implementação dos direitos sociais fundamentais ainda deficitários na maior parte dos países.

A partir de uma mobilização internacional (notadamente 6.ª Covenção Interamericana contra a Corrupção de 1996, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – Convenção de Mérida de 2003, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, de 23 de maio de 1997), culmina-se, no Brasil, com o surgimento da Lei Anticorrupção n.º 12.846/2013, absolutamente precursora no sentido da prevenção e combate ao fenômeno da corrupção oriunda das empresas em sua relação com o poder público.

Este diploma legal fez emergir uma gama de ferramentas que ainda deverão ser implementadas, mas certamente muito valiosas aos fins da prevenção-combate à corrupção. Trata-se de instrumentos modernos e alguns deles pouco utilizados em muitos países. A Lei Anticorrupção n.º 12.846/2013 introduziu um modelo no qual se busca estancar o mal da corrupção em uma de suas vertentes orgânicas que é o setor privado, notadamente as empresas quando de suas relações mercadológicas com o poder público.

Nos limites deste extrato, é possível informar que a nova Lei Anticorrupção apresenta três instrumentos absolutamente inovadores e úteis sob a perspetiva da prevenção e combate às práticas corruptivas oriundas das pessoas jurídicas. São os institutos da responsabilidade civil e administrativa objetiva, os procedimentos de compliance e os acordos de leniência. A responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por atos corruptivos na relação com o poder público é instituto inédito sob este viés, e poderá representar um grande avanço para os fins da aludida Lei. Quanto ao instituto do compliance, no Brasil, é absolutamente inédito, e certamente também será eficaz em termos preventivos à corrupção. Também os acordos de leniência, que já existiam, agora foram estendidos para as relações corruptivas específicas das empresas com o poder público, em paralelo a outros instrumentos como a colaboração premiada de extrema valia. São ferramentas inovadoras e eficazes para os fins propostos e, sobremaneira, em virtude dos reflexos que tais procedimentos podem representar no combate à corrupção e na efetivação das políticas públicas destinadas à implantação dos Direitos Sociais Fundamentais, tão necessários em favor dos cidadãos brasileiros.

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 95-99)