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A boa administração, a transparência e a democracia versus o manto de secretismo do Eurogrupo

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 42-46)

Todo o processo de tomada de decisões que moldem a União Europeia deve ser orientado à luz dos princípios da boa administração e da transparência, em nome de uma efetiva “democracia supranacional europeia”6. Estão em causa traves mestras que impõem a maior clareza e publicidade em relação ao processo decisório e à decisão propriamente dita, sobretudo, num contexto em que, por força da crise financeira generalizada, as ideias de accoutability e de good governance ganharam um especial relevo.

Sucede que a opacidade a que nos temos vindo a reportar surge em negação ao direito à boa administração e em contracorrente perante os princípios da transparência e da democracia. Senão vejamos.

A boa administração constitui um elemento essencial da boa governação e implica, sinteticamente, que a Administração (aqui entendida enquanto instituições, organismos e órgãos da União) respeite os direitos dos cidadãos e que, simultaneamente, providencie serviços públicos eficientes, recorrendo a adequados métodos de gestão.

Em concreto, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) concede à ideia de boa administração um especial tratamento, elevando-a a direito fundamental: no art. 41.º, da CDFUE, consagra-se o “Direito à boa administração”.

Trata-se, mais do que uma epígrafe chamativa7, de um verdadeiro avanço no que respeita às garantias dos administrados. Através do art. 41.º, evidencia-se que a União é uma comunidade de Direito e reforça-se a própria cidadania europeia. Neste sentido, considera-se que a CDFUE eleva os direitos por si reconhecidos aos administrados, no plano jurídico europeu, ao estatuto de direitos fundamentais, integrados na categoria de direitos humanos administrativos8. Ora, os deveres de transparência e

6 Cfr.Alessandra Silveira, Tratado de Lisboa (Lisboa: Quid Juris, 2010), 12.

7 Jacob Söderman – antigo Provedor de Justiça Europeu – assinalou, no discurso proferido a 01 de março de 2001 – “The Struggle for Openness in the European Union”, Provedor de Justiça Europeu, acesso em abril 24, 2017, https://www.ombudsman.europa.eu/speeches/en/2001-03-21.htm –, que a aludida epígrafe constitui uma novidade em todo o mundo.

8 Cfr. Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares (Coimbra: Almedina,

de publicidade surgem, precisamente, como deveres inerentes ao princípio da boa administração, que deve estar subjacente a toda a atuação administrativa. Aliás, a boa administração pressupõe a existência de uma atuação transparente.

Em concretização da ideia de que “a Europa é antes de mais a âncora da nossa democracia”9, determina o art. 10.º, do Tratado da União Europeia, que o funcionamento da União se baseia na democracia representativa, tendo todos os cidadãos o direito de participar na vida democrática da União. As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível, visto que os cidadãos europeus devem saber o que é que as instituições europeias fazem e porquê. O art. 11.º impõe às instituições que criem os meios adequados para que os cidadãos e as associações representativas possam expressar e partilhar publicamente os seus pontos de vista sobre todos os domínios de ação da União e que estabeleçam um diálogo aberto, transparente e regular com as associações representativas e com a sociedade civil.

Ainda com relevância, surge o art. 15.º, do TFUE, nos termos do qual “a fim de promover a boa governação e assegurar a participação da sociedade civil, a atuação das instituições, órgãos e organismos da União pauta-se pelo maior respeito possível do princípio da abertura”.

No mesmo sentido, reza o art. 298.º, do mesmo diploma, que no desempenho das suas atribuições, as instituições, órgãos e organismos da União apoiam-se numa administração europeia aberta, eficaz e independente.

Dito isto, importa, agora, trazer para o plano do Eurogrupo os efeitos que dos aludidos princípios decorrem. Em concreto, cumpre aferir se o Eurogrupo se encontra sujeito ao cumprimento dos princípios da boa administração e da transparência. Isto porque, em conformidade com o que se constatou, o Eurogrupo não detém personalidade jurídica e não se integra no elenco dos órgãos, organismos e instituições da União, ainda que se encontre dotado de uma determinada estrutura institucional, na medida em que dispõe de um Presidente eleito por um determinado período, e ainda que integre o elenco das instituições da União Monetária Europeia,

2012), 53 - 54.

9 Cfr. Ana Gomes, “Europa: crise ou oportunidade?”, in 50 anos do Tratado de Roma, Coord. Alessandra Silveira (Lisboa: Quid Juris, 2007), 29.

entre elas se contabilizando ainda o BCE, o SEBC, o Comité Económico e Financeiro e o ECOFIN10. Considerando que todos os preceitos supra invocados delimitam o seu âmbito de aplicação aos órgãos, organismos ou instituição da União, em que termos é que os princípios da boa administração e da transparência podem ser aplicados ao Eurogrupo?

Pois bem, na eventualidade de o Protocolo n.º 14 não vir a sofrer nenhuma alteração, que expressamente imponha ao Eurogrupo uma atuação em conformidade com a boa administração e com a transparência, parece-nos que, salvo melhor opinião, o manto de secretismo terá que ser, ao abrigo dessas mesmas dimensões, levantado.

A vinculação aos aludidos princípios surge não por decorrência expressa e direta dos preceitos que os consagram, mas sim pela amplitude com os que mesmos devem ser aplicados. É difícil de conceber que uma entidade da União Europeia (no sentido amplo do termo) não fique adstrita a que a sua concretização seja feita à luz das aludidas traves mestras. Se assim não se entender, este será mais um exemplo em que a Política substitui o Direito, quando, na verdade, a primeira deve estar submetida ao segundo.

As “decisões” do Eurogrupo surtem um impacto realmente significativo para União, não podendo, por esse motivo, ficar de fora do âmbito de sujeição dos princípios invocados.

10 “O Eurogrupo não pode ser equiparado a uma formação do Conselho nem qualificado de órgão ou organismo da União na aceção do art. 263.° TFUE” e “o facto de a Comissão e o BCE participarem nas reuniões do Eurogrupo não altera a natureza das declarações deste último” – cfr. acórdão Mallis e Mali… considerandos 57 e 61. A este respeito, de acordo com o despacho do Tribunal Geral (Primeira Secção) de 16 de outubro de 2014, Konstantinos Mallis e Elli Konstantinou Malli, contra Comissão Europeia e BCE, Processo T327/13, considerandos 42, 43 e 44, embora no art. 1.º, do Protocolo do Eurogrupo, esteja prevista a participação da Comissão e do BCE nas reuniões do Eurogrupo, podendo a Comissão também contribuir para a preparação das referidas reuniões, não é possível considerar que o Eurogrupo é controlado pela Comissão ou pelo BCE, nem que age na qualidade de mandatário dessas instituições, pelo que as declarações adotadas pelo Eurogrupo não poderiam ser imputadas à Comissão nem ao BCE. Seguindo a mesma linha de argumentação, no referenciado acórdão Mallis e Mali… considerando 51, o TJUE veio reconhecer que as declarações do Eurogrupo não podem ser objeto de recurso de anulação. A declaração em causa tinha sido destinada a informar o público em geral sobre a existência de um acordo político entre o Eurogrupo e as autoridades cipriotas, tendo entendido o TJUE que a aludida declaração não refletia uma decisão da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, no sentido de criar uma obrigação legal para o Estado-Membro em causa – o Chipre. Sobre o assunto, vide Engaging EU liability within the European Stability Mechanism framework, Sophie Perez Fernandes, acesso em abril 24, 2017, https://officialblogofunio.com/2016/09/30/editorial-of-october-2016/#more-1454.

Por outro lado, atendendo, precisamente, à ideia de informalidade, nos termos da qual os procedimentos a adotar no âmbito do Eurogrupo dependem da vontade do próprio, deveria o mesmo, por sua iniciativa, fazer pautar as suas atuações por uma total transparência, salvaguardando, dessa forma, o direito à boa administração.

O facto de o Eurogrupo não servir de objeto de Tratados europeus e de resultar do Protocolo n.º 14 que funciona como um grupo informal, não sendo necessário, por esse motivo, quaisquer regulamentos ou estatutos, não nos parece que sirva para justificar a patente opacidade. Se a liberdade procedimental existe, então que seja aplicada em prol dos princípios que devem enformar todos os procedimentos decisórios ao nível da União.

Ocorreu-nos a hipótese de que a opacidade subjacente ao funcionamento do Eurogrupo se poderá dever, pelo menos em parte, aos termos em que as reuniões têm lugar, ao serem iniciadas e, consequentemente, afetadas ab initio, pelos representantes da Troika (quando participa nas reuniões) ou pelas intervenções dos Ministros representativos dos Estados-Membros com maior influência decisória (desde logo, a Alemanha11). Estas intervenções influenciam as dos Ministros presentes. Talvez com o receio de revelar aos cidadãos (ou ao eleitorado) representados pelos respetivos Ministros (e também pela Comissão) a frágil e influenciável posição com que contam no Eurogrupo, opta-se por, simplesmente, nada ou muito pouco trazer a público.

Os resultados definidos acabam por ser fruto da vontade dominante da Troika ou da Alemanha e talvez não seja essa a imagem (ainda que correspondente à realidade) que o Eurogrupo pretende transmitir.

Um outro motivo que nos parece poder estar subjacente ao secretismo assentará na circunstância de que no Eurogrupo se encontram essencialmente em discussão questões estritamente técnicas, não compreendidas nem compreensíveis pelos cidadãos europeus. No entanto, quais é que são os assuntos que servem de

11 Em referência à votação realizada em finais de fevereiro de 2012 na Alemanha, relativa ao segundo pacote de ajuda, associado a imposições de austeridade à Grécia, Ulrich Beck relembra o que, nesse dia, ouviu na rádio e que resumiria o estado de espírito e da política da atualidade: “a Alemanha decide, hoje, sobre o Ser ou Não-ser da Europa” – cfr. Ulrich Beck, A Europa Alemã – De Maquiavel a “Merkiavel”:

Estratégias de poder na crise do Euro (Lisboa: Edições 70, 2013), 15 - 16.

objeto de decisão às instâncias europeias que não se reconduzem a matérias jurídicas, financeiras, económicas ou outras dotadas de patente tecnicidade, que só uma parte mais reduzida dos cidadãos europeus são dotados dos conhecimentos necessários para as compreender? Pouquíssimas, ou nenhumas. E ainda que se parta do pressuposto que a maioria dos cidadãos europeus é leiga perante os assuntos em debate na União, devem, mesmo assim, e se assim quiserem, ter a oportunidade de a elas ter acesso, formando a sua própria opinião.

Destarte, nenhum dos motivos apontados justificará a ausência de transparência em torno do Eurogrupo, por ausência de relevo jurídico bastante.

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 42-46)