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Instituições privadas atuando na prestação de serviços públicos e a atuação dos Tribunais de Contas

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 125-128)

Passados mais de 20 anos da instituição das reformas gerenciais no Brasil, OS e OSCIPS (além de muitas outras organizações não governamentais-ONGs) atuam nas mais diversas frentes de prestação de serviços públicos no país. De início, na reforma idealizada pelo então Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare), Luiz Carlos Bresser Pereira, no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o modelo das organizações sociais foi esboçado no projeto “Organização Social e Publicização” integrante do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado3. Em 1997, o Presidente da República promulgou o primeiro marco legislativo do modelo gerencial, a Medida Provisória n.º 1.591, convertida em maio de 1998, na Lei n.º 9.637, a alcunhada “Lei das OS”. Tal regramento estipulou os requisitos para a qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos como organizações sociais e lançou o Programa Nacional de Publicização que previu o alargamento do modelo das OS por todo o país.

As OSCIPs, instituídas em âmbito federal pela Lei n.º 9.790/1999, assim como as OS, nasceram sob a narrativa de modernização do Estado própria das reformas gerenciais de 1995. Fontoura (2010) descreve que a constituição das OSCIPs remota ao Programa Comunidade Solidária, criado pela antropóloga e então primeira-dama Ruth Cardoso, sob o arcabouço conceitual da Nova Gestão Pública. Tais entidades, à semelhança das OS4, não têm finalidade lucrativa e são instituídas com o objetivo de promover serviços de interesse coletivo, sendo a qualificação também uma condição para a celebração do ajuste de fomento (termo de parceria) vinculado ao alcance de resultados, ou seja, “por ter o seu caráter público

3 “Informações pormenorizadas acerca da Reforma Gerencial de 1995”, acessadas em Fevereiro 12, 2017, http://www.bresserpereira.org.br/RGP.asp.

4 As OS, em geral comportam estruturas administrativas maiores e se envolvem em operações que carecem de prazos e planejamentos mais longos. Já as OSCIPs tendem a ter estrutura física e de pessoal mais enxuta e se comprometem com metas e projetos pontuais da administração pública a que se vinculam.

reconhecido, uma Oscip tem acesso mais fácil e menos burocrático a recursos públicos para a realização de projetos5.

Com efeito, a delimitação entre esfera pública e privada, para Gabardo6, é decorrência típica da modernidade pós-absolutista (esta excluindo a competência política formal e jurídica da sociedade civil), delimitação que seguiu rumo ao século XX, período este no qual a expressão “sociedade civil” foi utilizada para designar algo oposto ao Estado. Nessa linha, a expressão “sociedade civil”, no Brasil da década de 70, passou a ser disseminada em um contexto de contraposição à ditadura militar, de forma que o Estado passou a representar tudo aquilo que era negativo (imagem do mal) e a sociedade civil lembrava à população tudo o que era positivo (imagem do bem)7. Dado esse contexto, na década seguinte a ideologia neoliberal se apropria da mentalidade de que o Estado é fonte de mazelas (ainda que se esteja a falar de um Estado Democrático de Direito), tendo a mídia favorecido a disseminação de uma apologia à sociedade civil despolitizada, configurada em um terceiro setor falsamente situado além de Estado e mercado.

Ocorre que ainda em 1998 a agenda de disseminação do modelo das organizações sociais foi alvo de oposição por uma minoria governista à época, que propôs uma ADIn em face da Lei n.º 9.637 e do inciso XXIV, do artigo 24, da Lei n.º 8.666/1993 (Lei de Licitações), com redação dada pela Lei n.º 9.648/98, sob a justificativa de que a vigência desses dispositivos traria prejuízos ao erário e danos irreparáveis à população e aos servidores públicos. Houve o pedido de medida cautelar, a qual foi indeferida integralmente, por decisão majoritária, em agosto de 2007, sendo o julgamento de mérito concluso apenas em 2015.

Registra-se que desde a sua instituição, o programa de publicização foi alvo de inúmeras controvérsias ideológicas, jurídicas e mesmo técnicas – destacando-se

5 Leandro Heitich Fontoura, “A influência de atores não estatais na formulação da lei das OSCIPS no Rio Grande do Sul: um estudo a partir da teoria das redes de políticas públicas” (Master’s diss., Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2010), 55.

6 Emerson Gabardo, “O Jardim e a Praça para além do Bem e do Mal – uma antítese ao critério de subsidiariedade como determinante dos fins do Estado social”, (PhD diss., Programa de Pós-Graduação em Direito do Estado Universidade Federal do Paraná, 2009), 49.

7 Gabardo, “O Jardim e a Praça para além do Bem e do Mal, 53.

as polêmicas em torno da natureza jurídica do contrato de gestão e dos termos de parceria (contrato versus convênio), a eventual terceirização de atividade finalística, a discricionariedade na qualificação e seleção das entidades, além das interpretações divergentes acerca da necessidade de concurso público para o provimento de pessoal e de certame licitatório para a captação das entidades e também para as aquisições de bens e serviços ao longo da execução contratual junto a terceiros.

Quanto ao controle sobre tais parcerias, registra-se que os discursos que fundamentam a atuação fiscalizatória dos Tribunais de Contas sobre as organizações não estatais decorrem da própria Constituição Federal, já que o parágrafo único do artigo 70 dispõe que: “Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária8. Dessa forma, a competência dos Tribunais de Contas para fiscalizar esses ajustes se fundamenta no fato de tais entidades privadas gerenciarem e alocarem recursos públicos, recursos esses sem os quais, muitas vezes, tais entidades sequer subsistiriam.

Por força do julgamento da ADIn 1923, que afastou qualquer restrição ao controle exercido pelas Cortes de Contas sobre ajustes com OS, a fiscalização exercida pelos Tribunais de Contas nesses casos, em regra, não questiona a constitucionalidade do modelo disseminado pela Lei n.º 9.637/1998. Dessa forma, os órgãos de controle centram-se, normalmente, em um controle finalístico (de resultados) e de meios (legalidade), atuando com vistas a resguardar a minimização de fraudes e desvios de recursos.

Assim, em face do precário ambiente de controle da administração pública sobre tais vínculos – controle este que não se pode prescindir, ressalta-se, já que os ganhos de flexibilidade, economia e eficiência a partir do modelo proposto não são presumíveis, como sustentava a retórica modernizante –, qualquer tentativa de minimizar a atuação dos Tribunais de Contas nesse cenário parece ser temerária. A isso se alia a histórica cultura de abusos no trato do erário no Brasil e, notadamente, a ampliação de possibilidades de uma atuação arbitraria que a agenda de descentralização administrativa revelou.

8 Constituição da República Federativa do Brasil. (Brasília: DF: Senado Federal, 1988).

No documento UNIO E-book Workshop CEDU/UNISC 2016 (páginas 125-128)