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Anarquismo à moda europeia ou à moda paraguaia?

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 184-188)

O pós-guerra foi um período traumático para o Paraguai em vários aspectos.

Dependente política, administrativa e economicamente de países como Inglaterra, Estados Unidos, Brasil e Argentina, sua conjuntura refletiu também na educação. Da Argentina, sob forte influência inglesa, provinham as orientações educacionais. Desse modo, a “educação paraguaia se transformou na réplica da argentina, caracterizada pelo enciclopedismo. Os centros educativos paraguaios eram instituições de repressão a toda manifestação de cultura nacional e o idioma guarani” (ROESLER, 2017, p. 143). Percebe-se uma valorização excessiva daquilo que vinha de fora e a completa desvalorização da cultura paraguaia.

No que concerne às estratégias utilizadas pelos liberais na propagação de seus ideais, o uso de periódicos foi de suma importância e alguns deles foram fundados ao longo das décadas de 1880 e 1890, grande parte com duração muito curta: El Paraguay, El Pueblo, La Opinión, El Derecho, La Situación, La Ley, La república, El Progreso, El Fênix, El Amigo del Pueblo, La Nación Paraguaya, La Patria, Los Debates, El Comercio, El Imparcial, El Porvenir. De todos os títulos que estiveram em circulação, o mais importante da primeira década constitucional foi o La Reforma. Mais tarde ainda foram fundados o La Democracia e o El Pueblo (SOUZA, 2006). Os liberais também defendiam o sufrágio universal, bem como incentivavam a população a lutar por essa bandeira que também era levantada por outros movimentos, como o feminismo.

A entrada dos liberais não representou a tão desejada estabilidade que o país almejava há anos, muito pelo contrário. Nos anos que se seguiram ao golpe, o país atravessou um período conturbado, o que refletiu em sua gestão. Presidentes entravam e saíam do poder, entre os anos 1904 e 1912 o Paraguai teve dez presidentes. Embora tenha oscilado, em linhas gerais pautou-se em privilegiar as categorias sociais economicamente privilegiadas, enquanto a população pobre sofria com baixos salários, ausência de direitos trabalhistas e trabalhando

“sob um regime de semi-escravidão” (SOUZA, 2006, p. 246). Em 1936, com o fim da Guerra do Chaco, ocorreu também o desmantelamento da democracia liberal no Paraguai. O presidente Rafael Franco foi deposto e ascenderam ao poder os militares, que permaneceram nas décadas seguintes. O país seguiu, portanto, um caminho semelhante à boa parte da América Latina entre as décadas de 1930 e 1940.

século XX (VITALE, 1998). O objetivo dos anarquistas, em suma, era derrubar o regime capitalista instituído no continente, através de uma greve geral internacional. Para tanto, “los llamados a paros generales en cada país latinoamericano estaban inscritos en una estrategia mundial, expresada en la liquidación del Estado opresor y la instauración del Comunismo Anárquico, en una sociedad sin clases” (VITALE, 1993, p. 07).

Milda Rivarola (1993), ao escrever sobre a formação da classe operária no Paraguai, destaca a participação do movimento anarquista nesse processo. Segundo ela, os primeiros documentos anarquistas datam do final do século XIX, por volta da década de 1890. É muito provável que tenham sido levados ou copiados da Argentina, país no qual o movimento havia alcançado força expressiva, com forte influência europeia. A introdução do anarquismo de forma mais organizada deu-se através de algumas figuras europeias, tais como Hérib Campos Cervera (pai), proprietário da revista La Paraguaya Lantern, periódico de pensamento livre, como define a autora, além do O Despertar. Tal anarquismo tinha um caráter mais acadêmico, com adesão maior de intelectuais migrantes no Paraguai (ABC, s/a, 09 de mayo de 2011).

Desde o final do século XIX o movimento anarquista exerceu influência significativa entre os trabalhadores paraguaios. Sua atuação não se restringiu, assim como em outros países, entre os trabalhadores urbanos, mas também esteve à frente das reinvindicações do proletariado rural, em especial aqueles empregados em empresas madeireiras. Também se solidarizaram com os camponeses ao organizarem sociedades de resistência armada, com o intuito de enfrentar os grandes proprietários de terras.

A atuação dos anarquistas alcançou um grau significativo de organização. Já no ano de 1906 foi fundada a Federação Regional dos Trabalhadores do Paraguai, que ofereceu forte oposição aos partidos políticos mais conservadores da época e declarou apoio à Federação dos Associados Livres e dos Produtores, outra instituição criada em defesa dos trabalhadores (VITALE, 1998). Em 1912 surgiu o Centro de Estudos Rafael Barrett e posteriormente o Centro Regional de Trabalhadores do Paraguai, cuja fundação demarca a fase do anarquismo formado por intelectuais paraguaios. Neles transitaram figuras como Manuel Ortiz Guerrero e Leopoldo Ramón Giménez.

Entre os anos de 1912 e 1914, a imprensa anarquista denunciou, em vários momentos, as péssimas condições de vida e de trabalho, além da exploração a que a população menos favorecida economicamente estava submetida. O trabalho era exaustivo e, em muitos casos, dava-se em situações de risco e com baixa remuneração (ABC, s/a, 09 de mayo de 2011).

A atuação dos anarquistas frente aos camponeses manteve-se consistente, e em 1928 foi criada a Aliança Nacionalista Revolucionária. Entre uma de suas estratégias encontrava-se

a implementação da República da Comuna e da União Federalista dos Povos da América Latina. Para Vitale (1998, p. 13), “la culminación de esta experiencia se produjo en 1931 con la conversión de Villa Encarnación en comuna revolucionaria, dirigida por asambleas populares”.

Um dos pensadores anarquistas de maior influência no Paraguai e, para alguns, na América Latina, foi o escritor e engenheiro espanhol Rafael Barrett (1776-1910), que migrou para o país em 1904. Antes disso, residiu na Argentina, no período em que o anarquismo estava em efervescência. Foi aí que Barrett iniciou a fase mais significativa de seus escritos (HERRIG, 2016). Vitimado pela tuberculose aos 34 anos em 1910, o escritor deixou uma produção diminuta, que é, no entanto, muito significativa.

Em seus escritos, Barrett denunciou os conflitos sociais e desigualdades da época e foi enfático ao denunciar as “mazelas de uma população abandonada e submissa às condições impostas às suas vidas” (HERRIG, 2016, p. 238). Sua produção e inquietações acerca do povo paraguaio sofreram forte influência das ideias anticlericais e revolucionárias trazidas da Europa. Quando se estabeleceu no Paraguai, passou a contribuir com o periódico El Diario, e o primeiro artigo de Barrett que se tornou conhecido foi o La Verdadera Política, publicado em 26 de janeiro de 1905 (HERRIG, 2016). A partir daí, o escritor tornou-se mais crítico e sensível às questões sociais. De acordo com Herrig (2016), é possível identificar a gênese do anarquismo em Barrett no ano de 1906. Sua obra em solo paraguaio de maior expressão foi El dolor paraguayo (1909). Tecia ácidas críticas ao sistema de governo que presenciou e destacou-se como um defensor da igualdade social. Foi também muito crítico à presença do capitalismo argentino e inglês no Paraguai. Para ele, o capital internacional havia se apropriado das melhores terras e plantações, o que permitia que interferissem no território nacional. Foi Barrett um dos primeiros a discutir a questão social ao expressar aos demais intelectuais e estudantes a necessidade de se projetaram para a comunidade.

Barrett passou anos a fio agitando, questionando e incomodando as autoridades paraguaias, a Igreja e os setores capitalistas da sociedade, até que foi preso e expulso do país.

Residiu um período no atual estado de Mato Grosso do Sul, no Brasil, e em seguida mudou-se para Montevidéu, no Uruguai. Ao analisar alguns de seus escritos, é possível perceber as críticas que o levaram a ser expulso do país. Além daquelas citadas anteriormente, Barrett também criticou a noção de progresso tão em voga naquele momento, não apenas no Paraguai. Para ele, o progresso era meramente técnico e não se referia a melhorias nas condições de vidas dos trabalhadores. Uma das questões mais polêmicas defendidas pelo escritor refere-se à defesa do abandono da lei e à adoção da educação como guia para

implantação do anarquismo e de uma sociedade mais igualitária. As leis, para ele, limitavam a liberdade e, por consequência, o futuro, sendo ainda artifícios de uma “minoria que se acerca do poder e da violência em prol da satisfação de suas ambições e de suas crueldades”

(BARRETT apud HERREG, 2016, p. 245).

Para o escritor, apenas a educação seria capaz de guiar a sociedade para um futuro feliz. Foi Barrett quem embasou intelectualmente um dos acontecimentos que balançaram os alicerces do governo liberal instituído no Paraguai. Um dos momentos mais emblemáticos do movimento anarcossocialista deu-se em fevereiro de 1931, quando ocorreu a comuna da Encarnação. O evento, em suma, marcou a tomada da cidade de Encarnación pelos anarcocomunistas e foi considerado como a “Primeira Comuna Libertária da América”, cujo objetivo era dar início a um movimento muito maior, que seria responsável por “construir un continente donde la libertad, la equidad y la democracia directa fueran los pilares de la existencia de todo ser humano” (PONTE, 2012, s/p). Seus idealizadores embasaram-se na Comuna de Paris e nos escritos de Barrett. Na manhã de 20 de fevereiro de 1931, Encarnación amanheceu convertida em uma república socialista, sonho deveras efêmero. Esperava-se que outras cidades, como Villa Rica e Assunción, também fossem tomadas, contudo, isso não ocorreu.

A elaboração do manifesto New National Ideario foi uma das ações do movimento revolucionário. No desenrolar do evento não houve derramamento de sangue por parte dos revolucionários, isso, segundo Ponte (2012), justifica-se pelo fato de o movimento referir-se ao “culminar de um processo que foi vivido, sentido pelo povo, experimentado por ele, por organizações de trabalhadores e estudantes " (PONTE, 2012, s/p). Na liderança dessa ação encontravam-se Oscar Creyd, Ciriaco Duarte, Obdulio Barthe e Cantalicio Aracuyú, entre outros. A operação foi de curta duração, pois os revolucionários foram frustrados pelas forças paraguaias. Todavia, as dezesseis horas de ação foram o bastante para aterrorizar uma parcela da população e pôr em alerta as autoridades, cuja grande parte deixou a cidade logo que o levante iniciou. Dessa forma, em decorrência da falta de apoio do resto do país, o movimento foi reprimido pelas forças do governo antes mesmo de sua chegada, e suas principais lideranças foram obrigadas a fugir “em um barco a vapor em direção ao Alto Paraná, em direção a Foz de Iguaçu, Brasil, onde eles foram se refugiar” (PONTE, 2012, s/p). Ainda assim, houve quem ficasse gravemente ferido nos confrontos, como Cantalicio Aracuyú, que foi baleado na cabeça, mas sobreviveu e foi preso. Embora o projeto tenha fracassado, foi o suficiente para despertar nas autoridades certo medo em relação aos anarquistas e para que o Estado ficasse mais atento às suas atividades.

Os integrantes do movimento anarquista não atuaram somente em reinvindicações trabalhistas, também levantaram outras bandeiras e suas pautas tenderam ao respeito às diversidades e à igualdade entre homens e mulheres, expresso em manifesto escrito e divulgado aos trabalhadores paraguaios: “Queremos que el amor sea libre y no como sucede en la actualidad que se unen para toda la vida seres que jamás se han amado (...) también queremos, puesto que no nacemos por la voluntad de nuestros padres, que los hijos sean de la gran familia humana” (GAONA apud VITALE, 1998, p. 14). Ao declarar apoio à emancipação feminina, questionar a servidão patriarcal no casamento ou ainda suscitar a ideia da relação igual entre os sexos, não somente no casamento, mas em todos os aspectos, o anarquismo angariou antipatias dos setores mais conservadores da sociedade, inclusive da Igreja. É sabido que o discurso de grande parte das religiões, inclusive a católica, defendia nesse período, de forma mais acentuada, que as mulheres se ocupassem tão somente da vida doméstica, assim como restassem submissas ao patriarcado.

Outro aspecto muito criticado pelos anarquistas refere-se ao fato de que a partir da segunda metade do século XIX, essencialmente, estabeleceu-se uma espécie de acordos entre a burguesia em ascensão e a Igreja Católica. Esse processo, como dito em outro momento, recebeu o apoio dos liberais. Os anarquistas opuseram-se e teceram críticas ácidas àquilo que denominaram de mistificação religiosa (VITALE, 1998).

Há algumas lacunas no que concerne à atuação dos anarquistas no Paraguai. De que forma influenciaram na educação, por exemplo? Teriam fundado escolas, como no Brasil e na Argentina? É provável que sim, assim como é possível que tenham influenciado em outras questões.

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 184-188)