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Espiritismo kardecista

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 99-104)

2.9 Espiritismo kardecista, umbanda e candomblé

2.9.1 Espiritismo kardecista

à irmandade também foi mais um ingrediente para acirrar os ânimos (MORAIS, 2016). É bom frisar que quando se trata de religiosos maçons, a referência não é apenas a católicos, embora fossem em maior número, mas protestantes também passaram a frequentar as reuniões. Muitos missionários batistas, metodistas e presbiterianos eram maçons (CALVANI, 2009). Essa conjuntura persistiu até o início do século XX. Fica claro que, nesse caso, era uma espécie de aliança contra o inimigo comum, no caso, a Igreja Católica.

A Maçonaria passou a defender ideias liberais, como o laicismo do Estado e consequentemente a separação entre a Igreja e o Estado. Como esses princípios ameaçavam a Igreja, os ânimos inflamaram-se contra a irmandade. Os maçons passaram a ser encarados como ameaça para a Igreja, visto que questionavam o poder e o controle que esta exercia na sociedade. Diante das perseguições que passou a enfrentar de forma mais intensa nas últimas décadas do século XIX, especialmente a partir da Questão Religiosa, a Maçonaria começou a fazer uso do Parlamento e da imprensa como mecanismos de luta. A Igreja, por outro lado, passou a divulgar uma visão estereotipada de que “esta sociedade secreta (a Maçonaria) escondia algum mal, ocultava segredos por trás de seus ideais, os quais seriam revelados somente aos homens filiados e escolhidos” (MORAIS, 2016, p. 07). A irmandade, na “visão da Igreja Católica, (era) um instrumento da conspiração contra os bons costumes, a fé verdadeira, sendo que seus rituais eram feitos [para] destruir a verdadeira religião”

(MORAIS, 2016, p. 08). A Igreja fez uso desse argumento com o objetivo de abalar seus fiéis, para que não viessem a aderir à irmandade e, ao mesmo tempo, condená-la. A estratégia não foi bem sucedida, tanto é que muitos católicos continuam participando efetivamente das reuniões da irmandade.

2.9 Espiritismo kardecista, umbanda e candomblé

mediante a codificação da obra Livro dos Espíritos (1857), ou seja, sistematizando a doutrina dada pelos espíritos em um livro. A doutrina seria, portanto, dos espíritos, enquanto Kardec fora somente o codificador. O espiritismo kardecista é uma doutrina científica, filosófica e religiosa. Em se tratando de religião, caracteriza-se por ser uma religião mediúnica. O médium é o canal de “comunicação entre vivos ou encarnados e mortos ou desencarnados”

(LANG, 2008, p. 176). Há muitas formas de expressão da mediunidade.

No que concerne às bases da doutrina contidas na obra, constam: “a imortalidade da alma, a necessária evolução do espírito conduzindo à perfeição, a reencarnação, a possibilidade de comunicação entre vivos e espíritos através dos médiuns” (LANG, 2008, p.

174). Em resumo, as doutrinas espíritas são:

- Deus é o criador de tudo o que existe; além do mundo dos vivos (ou dos encarnados) há o mundo dos espíritos que existem em diferentes graus evolutivos:

os imperfeitos, os bons, e os puros ou espíritos de luz;

– aceita a reencarnação como condição para que o espírito possa progredir, configurando a pluralidade de existências; os espíritos puros são aqueles que já se libertaram das encarnações;

– todos os espíritos evoluem sem cessar, embora possam renascer em condições sociais inferiores;

- as relações dos espíritos com os vivos são constantes e sempre existiram. A mediunidade é a faculdade que permite aos vivos a comunicação com os Espíritos – é um dom que precisa ser desenvolvido (LANG, 2008, p. 175).

A doutrina disseminou-se de forma rápida pela Europa e pelos Estados Unidos.

Também não demorou muito para que se espalhasse para outros países do vasto continente americano. Ressalto que não busco me ater à vasta bibliografia sobre o tema, muito menos às suas diversas linhas interpretativas, procuro analisar a introdução e, sobretudo, as influências da doutrina no Brasil, entre o final do século XIX e início do XX. Atualmente, o país concentra o maior número de espíritas do mundo.

O espiritismo kardecista aportou no Brasil na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro. Em 1860, Casimir Lieutaud, diretor do Colégio Francês, publicou o primeiro livro espírita editado no Brasil: Les Temps Sont Arrivés (LEAL, 2007). A primeira sessão espírita foi realizada no país apenas no dia 17 de setembro de 1865, em Salvador, liderada pelo jornalista Luís Olímpio Teles de Menezes. Nesse mesmo ano foi criado o primeiro centro espírita do país, nome dado ao local de reuniões. Em tempo relativamente curto, a doutrina ganhou a adesão de intelectuais e de representantes das categorias médias e das elites dos grandes centros urbanos, que passaram inclusive a divulgá-la. O que explicaria a boa receptividade do espiritismo entre essas categorias? Estudiosos defendem que o fato de a doutrina ter raízes francesas explica, pelo menos em parte, o fenômeno. É bom lembrar que naquele período a França era a referência nos quesitos modernidade, modernização e

progresso, logo, consumir e/ou participar de algo que provinha de lá era também uma forma de aproximar-se da “civilização”. Atualmente, espíritas kardecistas têm o melhor índice socioeducacional dentre as religiões presentes no país, cerca de 31,5% dos que se declaram espíritas possuem ensino superior completo. O mesmo censo (2010) também aponta um crescimento no número de espíritas, saltando de 1,3% para 2% da população (CORDEIRO, 2018).

Ao longo dos anos, muitas figuras mediúnicas ganharam notoriedade, algumas, inclusive, ficaram conhecidas nacional e internacionalmente. Destas, a mais conhecida, e talvez a mais emblemática, é Chico Xavier (1910-2002), o médium mais famoso e popular do século XX, que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Sua biografia foi contada no filme Chico Xavier (2010), que foi assistido por três milhões de pessoas, público considerável, além de outras obras biográficas e escritos do médium, que inspiraram também outras produções cinematográficas. Outros médiuns conhecidos no Brasil foram o mineiro Eurípedes Barsanulfo (1880-1918) e José Arigó (1921-1971). Muitos médiuns alegam possuir o dom da cura, alguns foram e são processados judicialmente pelo exercício do dom, ou seja, pelo exercício ilegal da medicina (LANG, 2008). No Brasil há uma relação - em alguns momentos estreita - entre o poder público e o espiritismo, especialmente com os médiuns.

Alguns presidentes, como Juscelino Kubitschek, nutriram simpatias e, não raro, reverenciavam lideranças espíritas (LEAL, 2007).

Muito antes de Chico Xavier, ainda no final do século XIX, um dos mais importantes líderes do espiritismo no Brasil foi o jornalista italiano Afonso Angeli Torteroli, que assumiu a liderança dos científicos18 e esteve à frente da organização do 1º Congresso Espírita Brasileiro, no ano de 1881, no Rio de Janeiro. Passados três anos, foi fundada, também no Rio de Janeiro, a Federação Espírita Brasileira. O espiritismo kardecista puro, ou seja, aquele ligado ao espiritismo francês, com o passar do tempo ficou restrito às elites, embora sempre estivesse se associando a outros movimentos de origem europeia, tais como a homeopatia e a maçonaria. Enquanto isso, outra ala espiritista, também chamada de espiritismo popular, ganhava caráter nacional à medida que se mesclava com os cultos afro-brasileiros, perdendo o

18 Os chamados “científicos” compõem uma vertente no interior do espiritismo europeu e brasileiro que tomou forma na segunda metade do século XIX, após a morte de Allan Kardec. Uma outra vertente também se notabilizou no mesmo período, o “espiritismo místico ou religioso”. No geral, os ideólogos do espiritismo científico consideram o espiritismo uma ciência. Os científicos alcançaram notoriedade entre o final do século XIX e início do XX. No Brasil, a figura central dessa vertente, foi Afonso Angeli Torteroli (1849- 1928). Para mais informações consultar: LEWGOY, Bernardo. Representações de ciência e religião no espiritismo kardecista: antigas e novas configurações. Civitas, Porto Alegre v. 6, n. 2 jul.-dez, p. 151-167, 2006. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/60/6919 Acesso em: 11 de Out. de 2020.

caráter científico e angariando mais adeptos nas classes menos favorecidas, com o passar do tempo (LEAL, 2007).

A educação foi objeto da atenção dos espíritas, visto que a “ideia da reencarnação enfatiza a autonomia humana, no processo permanente de evolução – leia-se autoeducação – e a responsabilidade individual ante o progresso coletivo, que implica em mudanças sociais e reformas educacionais” (INCONTRI, s/d, p. 03). O próprio Allan Kardec era um educador alinhado com as propostas de Pestalozzi, seu mestre. Foram críticos da educação confessional, bem como defendiam o ensino leigo. Na França, aliás, o movimento de laicização da educação contou com a participação de espíritas. Por entender a importância da educação para a evolução social, os espíritas engajaram-se na defesa pela educação pública.

Aqui no Brasil, por exemplo, contribuíram significativamente com a luta pela educação pública, obrigatória e gratuita. Entre os iniciadores da pedagogia espírita no Brasil, podem-se citar Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco, Herculano Pires, Ney Lobo e outros. Tal pedagogia baseia-se nos seguintes princípios: o respeito à “liberdade e a individualidade da criança, que deve agir para aprender (...) mas essa ação livre deve ser acompanhada pelo amor dos educadores, empenhados em incentivar e cultivar o lado bom dos educandos, com atenção, diálogo, observação e autoridade moral” (INCONTRI, s/d, s/p).

O primeiro colégio espírita do Brasil foi fundado em 1902 pelo educador mineiro Eurípedes Barsanulfo (1880-1918), em Sacramento/MG, com o nome de Colégio Allan Kardec. A instituição era gratuita e inovadora em diversos aspectos, partindo da inclusão de negros entre o quadro de professores e alunos. Enquanto no Brasil ainda predominava o sistema de vigilância rígida e disciplina punitiva, o colégio em questão primou pela

“educação ativa e o respeito à liberdade de aprendizado, sem os tradicionais sistemas disciplinares” (BIGHETO, 2008, p. 29).

Como citado anteriormente, Anália Franco (1853-1919) foi outra figura que também se destacou pela dedicação à educação no país. Espírita, feminista, abolicionista e republicana, Anália também foi professora, jornalista, poetisa e escritora, tendo fundado mais de cem lares para abrigar crianças carentes. Nesses abrigos as crianças recebiam educação e profissionalização que se estendiam às suas mães - “muitas delas, mães solteiras, que só teriam a alternativa da prostituição” (INCONTRI, s/d s/p). A educadora contou com o apoio da Maçonaria em algumas atividades desenvolvidas.

Outros, como Tomás Novelino (1901-2000), discípulo de Anália e Eurípedes, fundou uma fábrica de sapatos em Franca, cuja renda era utilizada para manter três escolas da Fundação Pestalozzi. É importante enfatizar que muitas escolas fundadas pelos espíritas

eram gratuitas, e poucas têm caráter confessional. A tendência, mesmo entre os mais conservadores, é de assumir uma postura de respeito à pluralidade religiosa, étnica e de integração da mulher.

A mídia, em especial a imprensa periódica, foi um dos principais meios de divulgação da doutrina espírita no Brasil entre o final do século XIX e início do XX. A imprensa naquele período era alimentada, no geral, por intelectuais, e com o periodismo espírita não foi diferente. Este contou com a colaboração de jornalistas/escritores e intelectuais renomados na época, como Manuel de Araújo Porto Alegre, o Barão de Santo Ângelo. Dentre outros intelectuais de renome que ajudaram, de certa forma, para que o movimento se fortalecesse, estão Alcindo Guanabara, Bezerra de Menezes e Coelho (LEAL, 2007).

Quanto aos periódicos espíritas, a lista é extensa. José Dias (2006) cita os títulos que constam na Tabela 2, a seguir.

Tabela 2 - Periódicos espíritas

PERIÓDICO FUNDAÇÃO FUNDADOR LOCAL

Grupo Familiar do Espiritismo 1865 Luís Olímpio Teles de Menezes

A Reforma 05/1869 - Rio de Janeiro, RJ

O Eco D’além Túmulo 1869 Luís Olímpio Teles de Menezes Salvador

Revista Espírita 1875 Dr. Antônio da Silva Neto

(redator)

A Cruz 1881 Dr. Júlio César Leal Recife, PE

União e Crença 1881 - Areias

O Renovador 1882 - Rio de Janeiro, RJ

Vianense 1883 - Viena, MA

O Reformador 1883 -

O Século XX 1885 - Rio de Janeiro

A Luz 1886 - Maranhão

Verdade e Luz 1890 Antonio Gonçalves da Silva São Paulo

A Nova Era 1890 - Rio de Janeiro

A Luz 1890 - Curitiba, PR

O Regenerador 1890 - Belém, PA

Fonte: Tabela elaborada pela autora a partir dos dados apresentados por José Roberto de Lima Dias (2006).

Quanto ao periódico A Luz, encontrou-se referência a ele como Orgão do Centro Spirita de Curityba. A lista é mais extensa. Nos primeiros anos do século XX, Anália Franco, já mencionada anteriormente, fundou dois jornais: A Nova Revelação, em 1903, e o Periódico Natalício de Jesus, no ano de 1908, em que eram publicadas ácidas críticas à Igreja Católica, no período em que católicos e espíritas se digladiavam nos jornais (MACHADO, 2013). O autor José Roberto de Lima Dias, em sua dissertação de mestrado, por exemplo, elenca 67 títulos de impressos, entre jornais e revistas, além de folhetins, livros e livretos que compunham a imprensa espírita. Peças de teatro também eram meios de

propagação da doutrina. Toda essa mídia atraiu muitos críticos, entre conservadores, intelectuais e, claro, a Igreja Católica. Os autores consultados não mencionam como era a receptividade desses jornais, contudo, é provável que tenha sido boa, tendo em vista a quantidade de títulos em circulação.

Como nos casos anteriores, a Igreja reagiu ao movimento ainda na Europa. O Livro dos Espíritos, de Kardec, foi bem recebido pelo público, contudo, desencadeou uma séria reação da Igreja. A intolerância em relação a outros credos levou-a a perseguir duramente o movimento e seus adeptos. Entre as ações, consta o episódio Auto de Fé de Barcelona, que diz respeito à queima de livros de Kardec que haviam sido enviados à Barcelona (LANG, 2008). Contudo, não foi apenas a Igreja que teceu críticas ao espiritismo, o Estado também buscou desarticular o movimento. O Código Penal de 1890, no Capítulo III, trata dos crimes contra a saúde pública, e no rol das doenças elencadas constava o espiritismo, ou seja, ser espírita era atentar contra a saúde pública e passível de multa. Todavia, outras práticas também se enquadravam nesse “crime”: no art. 157 do capítulo acima citado, consta:

“Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incurais, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas de prisão celullar por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000” (CÓDIGO PENAL, Cap. III, art. 157, 1890). Nos receituários de alguns psiquiatras, o espiritismo era considerado uma manifestação de insanidade mental. Apesar de todas as perseguições e ataques que sofreu, a doutrina, como se sabe, sobreviveu e continua a atrair adeptos.

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 99-104)