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Movimento feminista no Paraguai: início do século XX

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 190-195)

São inegáveis as contribuições do feminismo, ou melhor, dos feminismos, no que concerne aos direitos adquiridos pelas mulheres. A luta pela igualdade entre os gêneros foi e continua sendo um dos maiores desafios do movimento. Também é inegável que o feminismo sofreu e sofre muitos ataques por parte de setores mais conservadores. Em um período em que há um avanço do conservadorismo, as críticas ao movimento acentuam-se, ainda que muitas delas advenham de más interpretações e/ou do desconhecimento sobre o movimento e sua importância. Contudo, essas críticas, ataques e ameaças que as feministas sofreram e sofrem

não conseguiram parar o movimento, que foi imprescindível para a conquista de muitos direitos para as mulheres.

No Paraguai, assim como em grande parte dos países, às mulheres era reservada a vida doméstica. Casar-se, ser boa dona de casa, dedicar-se aos filhos e ao marido era o discurso propagado pela Igreja e pelos setores mais conservadores da sociedade. A educação, quando aberta às mulheres, também tinha como objetivo prepará-las para o principal papel na vida adulta: a maternidade, que, no geral, chegava muito cedo. Disciplinas como prendas domésticas, bordados, costuras e polidez, auxiliavam as futuras esposas a exercerem com maestria suas atribuições. Possuir uma carreira e ser independente era um sonho distante para grande parte das mulheres, questões que já foram discutidas nos capítulos anteriores.

A trajetória política e social das mulheres nas Terras Guaranis foi marcada por iniciativas tardias, se comparadas com outros países latino-americanos, e pelas muitas adversidades que distinguiram as conquistas femininas. Uma das consequências da guerra que se arrastou entre 1865 e 1870 foi a diminuição significativa da população masculina adulta e uma concentração de crianças e mulheres, sendo que estas tiveram que ocupar muitos postos de trabalhos que antes eram ocupados pelos homens. Ainda na década de 1870, deram início à reconstrução do país devastado pela guerra. Tal cenário desencadeou um empoderamento feminino, obrigatório diante das circunstâncias, e a formação de organizações com o objetivo de reivindicar direitos trabalhistas. Anos mais tarde, em 1936, ocorreu a formação da União das Mulheres do Paraguai, movimento socialista que emergiu em um contexto nacional e internacional de reivindicações (TAMAYO, 2013). O Paraguai foi o último país da América Latina no qual as mulheres conquistaram direitos políticos, o que só ocorreu na década de 1960.

Foi em meio a esse contexto turbulento que o movimento feminista paraguaio ousou questionar o sistema patriarcal. As mulheres lutaram pelo fim das desigualdades entre homens e mulheres, da misoginia e do machismo. A luta pelo direito de conquistar uma carreira e ser independente também esteve no foco das feministas paraguaias, com as lutas estendendo-se por anos, até que alcançassem a cidadania refletida, por exemplo, no direito ao voto. Embora haja controvérsias em relação à introdução do feminismo no Paraguai, já nos primeiros anos do século XX havia profícuos debates feministas no país. De acordo com Lopes (2011), o movimento feminista paraguaio foi um dos primeiros a reivindicar direitos civis e políticos para as mulheres, que exigiam o “voto, a administração adequada de sua propriedade e o direito de ingressar na universidade” (LOPES, 2011, s/p).

Contudo, foi durante as décadas de 1920 e 1930 que houve um rico debate feminista propriamente dito no país. Grupos como o Centro Feminista Paraguayo (1920), fundado por Serafina Dávalos e Virginia Corvalán, a Associação Feminista (1929) e o Consejo Nacional de Mujeres (1936) foram palcos de debates calorosos.

Outras formas de manifestação feminista foram as publicações em jornais, muitos deles anticlericais, como o La Voz del Siglo (1902-1904) ou, ainda, o Por la mujer (1936) e o The Feminist (1953). Teses como as de Serafina Dávalos, primeira advogada do país, e de Virginia Corvalán foram essenciais para fomentar os discursos e lutas do movimento (PARAGUAY... 2017).

Já em 1943 foi criada a Asociación Feminista del Paraguay, oficial e conservadora, que foi significativa na luta pela concessão do voto feminino, em decorrência da proximidade com a ditadura de Alfredo Stroessner, instituída em 1941 (IBACACHE, 2006). Contribuiu também a Liga Paraguaya pro Derechos de la Mujer, organização de mulheres católicas e conservadoras que possuíam afinidades com o ditador Stroessner. O país possuía uma longa lista de centros e associações que reuniam pessoas interessadas em lutar a favor das mulheres.

Quanto ao público, a maioria “eran mujeres de clase media, normalistas; docentes, esposas e hijas de los políticos de aquel momento”(CACERES, 2016, p. 37). O objetivo era “cambiar ideas sobre la mejor forma de concurrir con voz propia de aliento al Congreso internacional de la alianza para el Sufragio Femenino, que tendría lugar en mayo del mismo año”

(BARRETO apud CACERES, 2016, p. 37).

No que diz respeito às reinvindicações de participação na política, em fevereiro de 1901 foi publicado no jornal La Democracia um telegrama que havia sido enviado ao Senado.

O telegrama “Dios proteja destino patria" foi escrito por mulheres das elites de Concepción que procuraram expressar o descontentamento com um senador, considerado por elas como traidor (CACERES, 2016). Muitos dos artigos publicados nesse jornal “reflejan la sociedad de aquella época, donde los lugares que ocupaban, tanto el hombre y la mujer, eran establecidos por la Iglesia y el Estado para mantener las buenas costumbres” (CACERES, 2016, p. 34).

São atitudes de mulheres como Dávaros, Corvalán e damas da alta sociedade, como aquelas que redigiram o telegrama citado acima, que demonstravam a insatisfação de muitas mulheres com as condições a elas impostas. Tais manifestações representavam uma séria ameaça à ordem estabelecida, na medida em que questionavam e ousavam desafiar princípios instituídos pela Igreja, pelo patriarcalismo e pelo Estado - em muitos casos uma extensão dos dois primeiros.

Uma das feministas mais proeminentes foi Virginia Corvalán, que esteve atuante especialmente nas décadas de 1920 e 1930. Virginia, a única mulher de uma turma de quarenta formandos, graduou-se no Colegio Nacional de la Capital Gral. Socialista, foi a segunda mulher do país a obter doutorado em Direito e Ciências Sociais. Em sua tese Feminismo: a causa das mulheres no Paraguai, publicada em 1925, expõe ideias consideradas radicais para a época, como a defesa do voto feminino. Numa fase em que as mulheres eram consideradas inaptas para algumas funções, Corvalán “acrescentou que as mulheres podem ser superiores ou inferiores de acordo com suas condições físicas, mas não em relação à sua inteligência” (FORGADORES DEL PARAGUAY, 2001, s/p).

O momento de atuação de Virginia coincide com a conquista de alguns direitos femininos, como a criação de escolas normais. A docência, em muitas regiões, passou a ter maioria feminina, o que de certa forma garantia maior autonomia às mulheres (BARRETO, 2014). É sabido que a atuação feminina, como enfermeiras e professoras especialmente, de acordo com a mentalidade da época, era uma espécie de extensão do papel social da mulher.

Isso também está ligado à desvalorização do magistério, que em muitos momentos era considerado de pouca importância, daí privilegiar a atuação feminina na profissão (SOUZA, 2006). Ao longo dos anos 1930, Virginia esteve à frente de algumas instituições feministas, como a Union Feminina del Paraguay. Muitas dessas instituições desapareceram em curto prazo, em decorrência de perseguições por parte do aparelho estatal. Na década de 1940, houve uma diminuição das atividades das feministas, muito provavelmente devido à ditadura instituída por Higinio Morínigo, quando houve perseguições a vários segmentos da população (1940-1947) (BARRETO, 2014).

Outra feminista de destaque foi Serafina Dávalos, que para obter o título de bacharel em Direito e Ciências Sociais, em 1907, questionou a sociedade e os valores culturais do Paraguai em sua monografia Humanismo. Para ela, a discriminação feminina tinha origem cultural e não legal. Tanto Dávalos quanto Corvalán, em suas respectivas teses de doutoramento, defenderam esse ponto de vista. Ambas partiam do pressuposto de que a Constituição de 1870 já concedia cidadania às mulheres e, portanto, não havia impedimentos legais, inclusive para serem eleitas para cargos públicos e mandatos (BAREIRO, 1997), no entanto esse reconhecimento só ocorreu em 1961.

Mediante discussão intelectual e jurídica, Dávalos defendia a igualdade entre mulheres e homens. Talvez um dos pontos mais emblemáticos de sua tese seja o primeiro capítulo, em que questiona a ideia de que “la única misión de la mujer, es ser madre” (DÁVALOS apud IBACACHE, 2006, p. 42), isso, de acordo com ela, nada mais seria que a instituição do

patriarcalismo, que ao reduzir a mulher à condição de mãe, reduzia-a também ao meramente biológico. Tal premissa retirava direitos civis e políticos das mulheres. Dávalos criticou também a noção de que cabia à mulher ser sujeita ao homem, concepção muito defendida pela Igreja e consequentemente reverberada pelos conservadores. Além de questionar o entendimento da época que atrelava a mulher ao casamento e maternidade, seus escritos e militância, assim como em Virginia, anos mais tarde, trouxeram muito incômodo para a Igreja e para setores conservadores da sociedade paraguaia, desestabilizando um sistema que vigorava há anos no país e em toda a América. \

Em sua tese, Dávalos “desarrolla con detenimiento su proyecto educativo para las mujeres, enfatizando la necesidad de escuelas profesionales que las formaran como telegrafistas, farmacéuticas y contadoras, entre otras atividades” (LOBATO; SCHETTINI 2016, p. 74). Um pouco antes, em 1905, fundou a Escuela Mercantil de Ninãs, cujo objetivo consistia em habilitar mulheres para atuar na área comercial e contábil (LOBATO;

SCHETTINI, 2016), com habilitação para o trabalho em casas de comércios locais. Seria por meio da educação que as mulheres “transitarían evolutiva y necesariamente desde un rol adscrito a la naturaleza hacia el lugar cultural del que ha sido privada por una cultura masculinizada” (IBACACHE, 2006, p. 45).

Muito provavelmente, uma das primeiras instituições de ensino para meninas foi fundada por Adela Speratti. Adela nasceu durante a Guerra do Paraguai, na qual o pai foi morto. Junto com sua mãe, ela e sua irmã, Celsa, refugiaram-se na Argentina, onde estudaram. Regressaram ao Paraguai tempos depois e em 1897 Adela fundou a Escola Normal, em Assunção, ali permanecendo como diretora até sua morte, em 1902, quando sua irmã assumiu o lugar na direção por cinco anos. Após o ocorrido, a escola recebeu o nome de sua fundadora. Pouco antes, em 1890, Adela havia estabelecido em Assunção a Escuela de Preceptores, primeira instalação aberta no país pós-guerra, que mais tarde teve seu nome mudado para Escuela Normal de Maestras e formou sua primeira turma três anos depois.

Juntamente com Celsa, organizou a primeira escola de pós-graduação para meninas no país (DURÁN, 2011), e anos mais tarde uma das discípulas de Celsa, María Felicidad González, fundou a Escuela Normal de Profesores, em 1921, “alma máter del magisterio paraguayo”

(DURÁN, 2011, p. 06).

Pineda (2012), ao escrever sobre a educação no Paraguai, fala de um instituto profissional para meninas fundado antes do término da Guerra, em Trinidad, cuja direção coube à Assunção Escalada. A instituição municipal recebeu o nome de Escuela Central para

Niñas, entretanto, outras informações sobre a instituição são desconhecidas (MOREIRA, 2011).

Muitas mulheres viram-se na empreitada de lutar pela consolidação jurídica da cidadania feminina, mas, quanto à organização de reinvindicações por melhores condições de salários e de trabalho, foram raras as manifestações de pequenas comerciantes, costureiras, empregadas domésticas, por exemplo. E embora a maioria das lutas da categoria se concentrasse na busca por melhores salários e condições de trabalho, as professoras, pelo menos aquelas das cidades maiores, geralmente “incorporaban elementos políticos como la exigencia de cumplimiento de las leyes por parte de los gobernantes y la defensa del sistema político democrático” (BAREIRO, 1997, p. 04). Interessados em manter a estrutura de dominação e exclusão das mulheres dos espaços políticos, sociais, culturais, educacionais e profissionais, a Igreja e alguns setores mais conservadores da sociedade negavam a elas o direito à identidade sem que estivessem presas à alguma figura masculina. No entanto, as mulheres rebelaram-se contra as discriminações que sofriam, mesmo que nem sempre tenham sido atendidas.

O movimento feminista paraguaio questionou valores culturais do patriarcado enraizados na sociedade do país, tais como a submissão feminina ao homem (pai, irmão, marido), a inferioridade intelectual, a vida doméstica e, com ela, o ser mãe e boa esposa como único destino para as mulheres; e ainda lutou pelo sufrágio feminino e o direito à educação, entre outras bandeiras. Ao fazê-lo, instituições poderosas como a Igreja Católica e setores mais conservadores da sociedade reagiram às investidas das feministas, ora na tentativa de desarticular o movimento, investindo em revistas que buscavam valorizar o ideal feminino da época, ora reafirmando os costumes e valores católicos e tradicionais, cujos colégios confessionais exerceram um papel essencial.

Apesar das muitas críticas, as feministas continuam atuantes, com algumas conquistas e derrotas também. Uma das bandeiras levantadas por elas há alguns anos refere-se à participação e representação paritária de mulheres e homens na esfera pública. Longe da vitória, as feministas seguem em luta.

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 190-195)