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BIOPIRATARIA, UM CONCEITO EQUíVOCO

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UTILIZANDO A LEI DE PATENTES ESTADUNIDENSE

2. BIOPIRATARIA, UM CONCEITO EQUíVOCO

O termo biopirataria foi utilizado pela primeira vez em 993 pela ONG ca- nadense RAFI (hoje ETC-group), para denunciar que multinacionais e instituições de pesquisa estavam patenteando e explorando recursos biológicos e processos de manipulação que fazem parte do conhecimento tradicional de povos autóctones

3 BARBOSA, Denis Borges. Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.

4 Cerca de 90% de todas as taxas pagas a títulos de royalties no mundo vão para os Estados Unidos. Fonte: VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

do local de onde provêm tais recursos sem que estes tenham sido consultados ou participado nos lucros. Como é termo relativamente recente, de sentido equívoco, normalmente utilizado com certa carga de emoção ou idealismo, tentaremos deli- mitar tal conceito de maneira normativa.

No que diz respeito à biopirataria legitimada por patentes internacionais, deve- se considerar dois acordos, a CDB e o Acordo TRIPS, ambos ratificados pelo Brasil.

Destarte, somos da opinião de que o conceito objetivo de biopirataria, na visão brasileira, deve ser construído com base numa tentativa de integração das normas contidas nos dois acordos. Afinal, como o Brasil é parte integrante de ambos, pres- supõe-se que concorde com suas disposições, aplicando-as de maneira harmônica no direito interno e pugnando pela sua integração também no direito internacional.

2.1 Acordo TRIPS

O acordo TRIPS é conseqüência das duas revoluções tecnológicas atravessa- das pelos países desenvolvidos a partir da segunda metade do século XIX, a revo- lução informática e a biotecnológica5. É o acordo dentro do rol normativo da OMC que cuida da propriedade intelectual, estabelecendo um patamar mínimo de prote- ção por parte dos Estados signatários no âmbito de sua legislação interna. Foi criado com o fito de reduzir obstáculos ao comércio, pois a falta de proteção à propriedade intelectual pelos países subdesenvolvidos foi considerada uma barreira.

A efetiva aplicação do acordo é garantida pelo Órgão de Solução de Contro- vérsias da OMC (OSC), que pode aplicar sanções comerciais aos países signatá- rios que não respeitarem os compromissos assumidos (art. 64 de TRIPS).

O Acordo TRIPS, em seu art. 7º, diz que a propriedade intelectual deve aju- dar a promover a inovação tecnológica e a transferência e difusão de tecnologia em “benefício mútuo de produtores e usuários”. Tal artigo expressa seus limites de incidência, preocupando-se apenas com o titular do direito intelectual sobre uma tecnologia e o usuário da mesma, excluindo as preocupações acerca da ori- gem da matéria-prima utilizada e da existência de algum conhecimento tradicio- nal inspirador no processo ou no produto da patente em questão.

O art. 27 determina que qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, serão patenteáveis. Devem ser cumpridos os requi- sitos de novidade, passo inventivo e exploração industrial. Tais requisitos, segundo o Acordo, admitem interpretações diferentes por parte de cada país quanto à sua verificação, o que depende do interesse do membro em questão. (Aspectos sobre os requisitos serão analisados de maneira mais aprofundada posteriormente).

O mesmo artigo estabelece que os membros podem considerar não paten- teáveis invenções cuja exploração seja necessário evitar para proteger a ordem pública ou a moralidade e evitar prejuízos ao meio ambiente e ainda plantas e animais, exceto microorganismos, e processos essencialmente biológicos para a

5 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. Qual é o conflito entre a convenção da biodiversidade (CDB) e o acordo relativo aos direitos de propriedade intelectual (acordo TRIPS)?. In Revista da ABPI. N. 69. Mar/Abr de 2004.

produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e mi- crobiológicos. Deverão também conceder proteção a variedades vegetais através de um sistema sui generis, de patentes ou da combinação de ambos.

Ordem Pública e moralidade requerem conceituações subjetivas que cabe a cada país desenvolver6. Assim sendo, não é fator importante para uma definição normativa de biopirataria, uma vez que caso um país adote uma noção de moralidade mais flexível que o Brasil, admitindo, por exemplo, que não é imoral o patenteamento de seres vivos, como é o caso da Europa no que tange a organismos geneticamente modificados (Diretiva 44/98), não poderá ser acusado de acobertar a biopirataria, pois não comete nenhuma violação ao permissivo legal do Acordo.

No que diz respeito à matéria biológica patenteável, os países podem adotar quatro posições legítimas segundo o TRIPS: ) conceder patentes a toda e qual- quer espécie de invenção, incluindo plantas, animais e processos biológicos; 2) excluir plantas, animais e processos biológicos, mas não as variedades de plantas;

3) excluir também as variedades de plantas, mas introduzir um regime sui generis para sua proteção e; 4) não excluir as variedades de plantas e oferecer além do patenteamento um regime sui generis.

2.2 Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB)

A CDB não estabelece um rol limitativo de matéria biológica que deva ser excluída do regime de patentes, seu marco distintivo é a maneira como tratou a questão da preservação/conservação dos recursos naturais e do acesso à biodiver- sidade7. No que tange ao acesso da biodiversidade, a CDB reconhece os seguintes princípios a serem respeitados: soberania sobre os recursos biológicos, repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, transferência de tecnologias, levando em conta todos os direitos sobre tais recur- sos e associação das comunidades autóctones aos procedimentos de autorização e acesso à repartição de benefícios que podem ser retirados da operação.

A CDB confere titularidade de direito aos recursos biológicos a quem já são titulares de fato, aos Estados onde se encontram os recursos biológicos em seu ambiente natural.8 Cabe ao Estado dar o seu consentimento prévio às atividades de bioprospecção, estabelecendo suas normas e até mesmo, em havendo motivo, recusar o acesso (ver art. 5. e 5.2 da CDB).

A repartição de benefícios compreende a transferência de tecnologia. As partes devem tomar medidas legislativas, administrativas ou políticas para com- partilhar os resultados da pesquisa e da sua utilização comercial com a parte pro- vedora do recurso (art. 5.7), incluindo tecnologia protegida por patentes e outros

6 VARELLA, Op. cit. p. 99.

7 BASTOS JÚNIOR, Luiz Magno Pinto. A Convenção sobre Diversidade Biológica e os instrumentos de controle das atividades ilegais de bioprospecção In. Revista de Direito Ambiental. n. 23. julho-setembro de 200.

8 HERMITTE, Marie-Angèle. O Acesso aos recursos biológicos: Panorma Geral. In Diversidade biológica e conhecimen- tos tradicionais. Org. VARELLA, Marcelo Dias. Belo Horizonte:Del Rey, 2004.

direitos de propriedade intelectual (art. 6.3). Sobre a influência das patentes na aplicação da Convenção, elas devem cooperar com os fins propostos, o que não exclui a sua observância e proteção (art. 6. e 6.5).

A dependência tradicional entre os recursos biológicos e comunidades locais, principalmente as indígenas, é reconhecida pela CDB, que incita os Estados a abri- rem espaço para estas nos processos decisórios de acesso à biodiversidade (art. 8 j).

Tais direitos são “baseados na relação de proximidade, quase que de dependência recíproca entre os homens e os recursos biológicos de seu meio ambiente, no esfor- ço de conservação dos recursos selvagens, de inovação dos recursos domésticos, dos conhecimentos das propriedades medicinais das plantas”9. O mesmo artigo também fala da repartição de benefícios para as comunidades nativas.

Vale ressaltar que ainda está em discussão a natureza dos direitos das co- munidades autóctones aos seus conhecimentos tradicionais, havendo propostas de que estes sejam protegidos por um sistema de patentes normal0 ou por um sistema sui generis.Tal tema não será objeto desse artigo.

2.3 Conceito

Destarte, poderia se depreender que biopirataria é o uso de propriedade intelectual sobre recursos da biodiversidade e conhecimentos tradicionais as- sociados que visem ao monopólio do controle de tais elementos sem que se tenham respeitado as condições impostas pela CDB, quais sejam, preservação da biodiversidade, respeito à soberania do país sobre seus recursos naturais, cumprimento da legislação de acesso do país de origem, compreendido seu con- sentimento prévio e fundamentado, reconhecimento, recompensa e proteção dos direitos das comunidades autóctones, repartição de benefícios e transferência de tecnologia.

Tal conceito seria a junção da delimitação do que é matéria patenteável feita pelo acordo TRIPS e os elementos a serem cumpridos pelo titular da pro- priedade intelectual, para que sua patente não fira a os dispositivos da Conven- ção de Diversidade Biológica. Ele permite que uma série de elementos sejam patenteados sem que se possa acusar os titulares das propriedades intelectuais de biopirataria, como é o caso de plantas e animais geneticamente modifica- dos. Em suma, ele exclui da patenteabilidade animais, plantas e elementos biológicos isolados da sua forma natural, por serem, de acordo com a CDB, propriedade do Estado de origem, e conhecimentos dos povos autóctones e suas variações óbvias.

Sua adoção é uma tentativa de dar um caráter mais objetivo à idéia de biopi- rataria, sem que se caia no campo da pura emotividade.

9 Idem.

0 Proposta defendida pela OMPI e pela OMC.

Proposta defendida pela Juliana Santilli.

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