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OS íNDIOS DENTRO DO CONTExTO MUNDIAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

No documento iniciais VOL-2.indd (páginas 54-58)

A BIODIVERSIDADE E OS CONhECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS

4. OS íNDIOS DENTRO DO CONTExTO MUNDIAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

inclusive no que se refere aos prazos para cumprimento das obrigações. Dessa forma, as normas de direito internacional econômico são mais eficazes.

Outro elemento que contribui para uma maior eficácia das normas de direito econômico internacional trata-se do fato de que o Órgão de Solução de Contro- vérsias da OMC não é vinculado a nenhum tribunal superior. Além disso, OSC utiliza duas soluções possíveis no caso do conflito de normas, sendo que o segundo meio de interpretação impõe a eficácia dos princípios de direito interna- cional econômico nas respostas dadas pelo OSC da OMC em relação aos conflitos instaurados.

A primeira solução consiste na utilização de regras tradicionais da herme- nêutica jurídica, a qual, entre as duas, é mais coerente e acertada. Assim, prepon- dera-se a norma específica sobre a norma geral, e a norma ulterior frente a norma anterior.

A segunda solução aplicada pelo OSC da OMC ignora a existência de nor- mas em conflito e utiliza apenas as normas do ramo de direito que mais se referem à jurisdição escolhida entre as partes no julgamento do caso concreto, qual seja o direito internacional econômico. Assim, no caso de um conflito entre o direito internacional econômico e o direito ambiental, o primeiro, com seus mecanismos de implementação pela cogência e com o engajamento de mais de 40 Estados perante a OMC, seria mais eficaz. Dessa forma, o direito internacional é colocado como um conjunto de ramos independentes, pouco racionalizado.

Para Laure Ortiz e Jean-Jacques Gouguet, “a eficácia implica uma exigência de avaliação das políticas e o controle da efetividade da regra de direito2”. O controle da efetividade de direito, portanto, deve ser feito à medida que o direito internacional tem de aumentar a eficácia dos institutos de direito ambiental e dos direitos humanos, numa política de alteração da organização e dos modos de co- erção desses sistemas de direito.

que estimule o conhecimento acerca desses povos, afim de que estes não sejam explorados ou prejudicados por ações de biopiratas. Outro problema consiste no fato de que os sistemas locais de conhecimento são muitas vezes ignorados e, con- sequentemente, considerados primitivos e não científicos quando são colocados dentro de uma análise global.

Um exemplo clássico de biopirataria na Amazônia Brasileira é a patente pro- tegendo as plantas Ayhuasca. O pesquisador Loren S. Muller depositou a patente no Escritório de Patentes e Marcas de Comércio dos EUA (United States Patent and Trademark Office – USPTO) sem haver qualquer modificação do estado na- tural da planta. O referido pesquisador alegou que as folhas da sua planta tinham tamanho, formato e texturas diferentes da variedade tradicional. Porém, na rea- lidade, Loren Muller havia apenas recuperado, identificado e depositado a plan- ta no USPTO, além de ter colocado em evidência conhecimentos medicinais de tribos indígenas acerca das plantas Ayhuasca. A patente das plantas Ayhuasca foi cancelada, contudo a falta de novidade foi demonstrada apenas por vários artigos científicos americanos anteriores ao pedido da patente descrevendo a planta, sem ter sido levado em consideração a utilização da planta pelos índios3. A decisão da anulação da patente é boa porque a patente foi cancelada, porém demonstra o desrespeito em relação ao valor do conhecimento das comunidades indígenas, implicitamente considerado inferior e primitivo pela decisão do USPTO quando comparado ao conhecimento dito científico.

Existem parcerias entre comunidades indígenas e empresas estrangeiras que lograram certo sucesso, porém no aspecto meramente econômico, sendo que foi feita uma negociação na qual os benefícios foram de certa forma distribuídos. A empresa Aveda Corporation, por exemplo, comprou os direitos de usar a imagem dos indígenas da comunidade Yawanawá Katukina do Rio Gregório e direitos de compra e venda do urucum, matéria-prima para o lápis labial “Uruku Lipcolor”, produto de boa aceitação no mercado de cosméticos dos EUA. Foi realizado um acordo de cooperação entre a empresa e a comunidade que dispunha um pacote de benefícios durante determinado período, incluindo assistência técnica, financia- mento para a produção inicial, processamento local, transporte e infra-estrutura, facilidades para a certificação do produto “orgânico” e garantia de mercado para boa parte da produção. Atualmente, a Aveda consome 2 toneladas de urucum por ano4.

Apesar do exemplo do acordo entre a Aveda Corporation e os índios Ya- manawá Katukina não estar relacionado com o tema da propriedade intelectual, ele pode ser analisado e contribuir para o presente estudo. Primeiramente, vale ressaltar que, apesar da existência de um acordo de cooperação multilateral, há

3 Para o exemplo dado, cf. SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Asso- ciados: Novos Avanços e Impasses na Criação de Regimes Legais de Proteção. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 0, Volume 20, p. 50-74, jul./dez. 2002, p. 52.

4 Para o exemplo dado, cf. CORRÊA, Charlene Maria de Ávila. Biodiversidade, Biotecnologia e Propriedade Inte- lectual: Micro-organismos Encontrados na Natureza e sua Tutela Legal. [Mestrado] Faculdade de Direito “Laudo de Camargo”, Universidade de Ribeirão Preto, 2005.

um desvio do que consistiria o modo de vida dos índios, de forma que se tem uma agressão à cultura destes na medida em que os coloca na posição de um comer- ciante de urucum. Cançado Trindade, neste aspecto, afirma que uma política justa em relação a comunidades como as indígenas compreende o “[...] reconhecimento e a proteção de seus direitos tradicionais a terra e a outros recursos nos quais se apóia seu modo de vida – direitos que eles podem definir em termos que não se enquadram nos sistemas legais regulares5“.

Devido à importância da manutenção da cultura indígena e dos conhecimen- tos tradicionais associados, discute-se no plano internacional e interno a elabora- ção de um sistema legal de controle e proteção. No plano interno, o Brasil possui dois importantes decretos que tangenciam o tema, o decreto 3.945/0 e o decre- to 4.339/02. Contudo, tais complexos normativos são dotados de pouca eficácia.

O decreto 4.339/02, por exemplo, trata da política nacional da biodiversidade e, dentro dos seus princípios, no ponto 2, VI, do seu anexo, institui que “as ações relacionadas ao acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade deverão transcorrer com consentimento prévio informado dos povos indígenas, dos quilombolas e das outras comunidades locais”.

Em relação à problemática relativa à falta de instrumentos normativos que regulem a relação entre os índios, a biodiversidade e a propriedade intelectual de forma eficaz, há duas visões antagônicas a respeito da proteção dos conhecimen- tos tradicionais.

A primeira, adotada pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), acredita que uma simples adaptação do atual sistema patenteário atual, de forma a abranger, sob sua proteção, os conhecimentos tradicionais. Nesta acep- ção, serão utilizados os mesmos meios legais já existentes, como as patentes, mar- cas comerciais, segredos industriais, sem qualquer mudança significativa em seus fundamentos.

A segunda acepção, defendida por autores como Juliana Santilli6, a mais acertada entre as duas, implica na criação de um regime legal específico, total- mente distinto do sistema patenteário vigente, no que tange ao ponto de vista conceitual e valorativo. Tal orientação baseia-se no fato de que o sistema patente- ário atual possui como critério o elemento da novidade, na qual o conhecimento é individualmente produzido. Os conhecimentos em comunidades indígenas são gerados de forma que, no sistema vigente, integrariam o domínio público, não havendo qualquer proteção patenteária. Isto porque tais conhecimentos são trans- mitidos de uma geração para outra, e criados coletiva e informalmente. Assim, o sistema de propriedade intelectual brasileiro prejudica tal modo de produção e utilização dos conhecimentos tradicionais indígenas, sendo necessário um regime legal “sui generis”.

5 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 993, p. 94.

6 Cf. SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados: Novos Avanços e Impasses na Criação de Regimes Legais de Proteção. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Bra- sília, Ano 0, Volume 20, p. 50-74, jul./dez. 2002, p. 56.

O regime legal específico de proteção a direitos intelectuais coletivos das comunidades indígenas compõe um silogismo com as seguintes premissas: previ- são expressa de que são nulas as patentes ou quaisquer outros direitos de proprie- dade intelectual que se referem a processos ou produtos direta ou indiretamente resultantes da utilização de conhecimentos de comunidades indígenas; estruturar e colocar em prática uma política de desenvolvimento biológico, sociológico e econômico na Amazônia Brasileira, tendo como parâmetros a soberania nacional e o cuidado para que os índios não sejam prejudicados pela má distribuição dos benefícios oriundos da exploração da biodiversidade amazônica; a previsão da não-patenteabilidade dos conhecimentos tradicionais dos índios, o que permitiria a transmissão destes entre as várias comunidades indígenas e entre as gerações destas; a necessidade do consentimento prévio das comunidades indígenas para o acesso e transmissão de recursos genéticos situados em suas terras, até mesmo como forma de efetivar o art 23, §2º da Constituição Federal de 9887; neces- sidade de autorização das comunidades indígenas para a utilização e divulgação de seus conhecimentos tradicionais para quaisquer finalidades, com previsão de participação nos possíveis lucros resultantes de tal processo; e incentivo à atua- ção de organizações antropológicas e pró-índios para o planejamento conjunto de realização do desenvolvimento sustentável dos povos indígenas sem agredir a sua cultura e costumes; fazer um inventário da biodiversidade e sociodiversidade brasileira, formando uma base de dados concreta para o desenvolvimento da bio- tecnologia e controle da biopirataria.

Por fim, no contexto de uma visão mais sociológica e filosófica, ao passo que o plano técnico-jurídico já foi analisado, porém sem abandonar o aspecto do direito, dentro da relação entre as comunidades indígenas e a sociedade em si, assim como do tratamento da biodiversidade nos países, faz-se necessário o de- senvolvimento da bioética. A ética é uma parte da filosofia que busca refletir sobre o comportamento humano sob o ponto de vista de noções de bem e mal, de justo e injusto, integrando as normas morais. Surge, a partir da ética nas ciências biológi- cas, a bioética, que hoje se encontra de certa forma voltada para o biodireito.

O art. 27.2 do Acordo TRIPS, por exemplo, incorpora uma argumentação ética em seu contexto, ao passo que autoriza os países membros a excluir do pa- tenteamento as invenções que atentem contra a moral e a ordem pública. O biodi- reito, portanto, relacionado com a bioética, surge da necessidade do jurista obter instrumentos eficientes para solucionar problemas criados pela sociedade contem- porânea, de forma a construir uma legislação na qual se garanta mais humanismo e justiça, de maneira se estabeleça um novo contrato social. Assim, os princípios bioéticos devem permear o sistema de patentes na busca da proteção dos direitos ambientais e direitos humanos, principalmente no que diz respeito às minorias.

17 Art. 23, §2º, CF/88. “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, ca- bendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes”.

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