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DESAFIOS PARA SUPERAÇÃO À DESIGUALDADE DE GÊNERO

Martha Regina Bertasso48 Valquíria Elita Renk49

RESUMO: O debate sobre a equivalência de direitos possibilita um estudo acerca do avanço histórico das representações entre homem e mulher e a posição de privilégio que a figura masculina tradicionalmente ocupava. A relevância do objeto de estudo, aqui tratado, materializa-se em razão da necessidade de avaliar a relação entre Educação, desigualdade de gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas de Educação. O estudo teve como objetivo desenvolver uma pesquisa na qual se ressalta a importância da educação para combater violações de Direitos Humanos, a desigualdade de gênero e o desrespeito à dignidade humana, especialmente no que se refere ao ambiente escolar.

Palavras-chave: Desigualdade. Direitos Humanos. Educação. Gênero.

INTRODUÇÃO

A história demonstra que a mulher sempre esteve na condição de inferioridade, assim, os movimentos feministas buscam impulsionar o reconhecimento de direitos. O debate sobre a equivalência de direitos possibilita um estudo acerca do avanço histórico das representações entre homem e mulher e a posição de privilégio que a figura masculina tradicionalmente ocupava.

Ademais, o termo gênero é utilizado por diferentes teorias e possibilita diversos significados acerca do que é feminino ou masculino, de acordo com a sociedade e as tradições culturais. Neste trabalho, busca-se evidenciar a relevância dos movimentos sociais e a contribuição do feminismo para a desconstrução da ideia de inferioridade da mulher, a necessidade da proteção da dignidade humana e a coibição de atos de violência e desrespeito, especialmente no espaço escolar.

A relevância do objeto de estudo, aqui tratado, materializa-se em razão da necessidade de avaliar a relação entre Educação, desigualdade de gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas de Educação.

Nesse trabalho acadêmico, a problemática está situada na questão: existe negligência do Estado na adoção de medidas efetivas de combate as mais diversas formas de desigualdade de gênero escolar?

O estudo teve como objetivo ressaltar a importância da educação para combater violações de Direitos Humanos, a desigualdade de gênero e o respeito à dignidade humana, especialmente no que se refere ao ambiente escolar.

Dentre os objetivos específicos da pesquisa encontra-se a importância de se compreender os processos sociais, o avanço dos direitos humanos, bem como, a indispensabilidade da Educação para previnir a desigualdade de gênero e a necessidade da proteção da mulher e a mudança de pensamento acerca da inferioridade feminina no contexto social e escolar.

O tema em questão justifica-se pela necessidade do ensino dos Direitos Humanos para a prevenção da desigualdade de gênero, e sua relevância está em associar a Educação como meio de promoção da igualdade entre homens e mulheres. Ressalta-se também, a necessidade de se aprimorar as políticas públicas existentes e a construção de mecanismos de prevenção, proteção e cuidado de mulheres vítimas de violência.

48 Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2020). E-mail: marthabertasso@hotmail.com.

49 Pós Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (2019). E-mail: valquiria.

1 DESENVOLVIMENTO

Os movimentos feministas procuram demonstrar quais as formas de opressão e silenciamento das mulheres, bem com, a condição imposta de subordinação à figura masculina. Se os homens não estão dispostos a aceitar a mudança e reconhecer as mulheres como iguais e o Estado não é capaz de impor o reconhecimento como medida que erradique a subordinação estrutural, ambos seguirão coadjuvando a violência de gênero e pisoteando os direitos e a humanidade. (RUIZ, 2007)

Assim, “a violência sofrida por mulheres é exercida majoritariamente por homens, e também por toda uma sociedade que educa esses mesmos homens como seres de privilégios contra outros seres que, não sendo homens não teriam privilégios.” (TIBURI, 2018, p. 105)

Acerca da inferioridade feminina pautada em conhecimentos da ciência da Biologia, Dayse de Paula Marques da Silva aponta que:

No século XIX surgiram, particularmente no campo na antropologia física, teorias que explicaram a inferioridade feminina com base na biologia. Este campo explicativo tomou muita força na sociedade moderna, pois teria o “aval” da ciência. Contrapondo-se a esta perspectiva, o movimento feminista problematizou e reconstruiu argumentos em torno da determinação biológica das hierarquias entre homens e mulheres, colocando em xeque as concepções relativas ao feminino e masculino na sociedade ocidental. (SILVA, 2007, p. 253)

O que se questiona não é a existência de tarefas ou ações tipicamente desempenhadas por homens ou por mulheres, mas sim, a existência de uma hierarquia destas atividades, as quais rotulam os homens ou mulheres que as realizam em posição de desigualdade, de domínio e de subordinação. (LOURO, 2009)

A questão da igualdade de gênero está intrinsecamente ligada à efetivação da dignidade humana, um direito fundamental do cidadão. A alteração do âmbito legal possibilita a igualdade formal entre homens e mulheres, mas é por meio da igualdade nas relações concretas que se efetivará a igualdade de fato.

A igualdade formal é um pressuposto para a uniformização do regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos, de um ordenamento jurídico. A igualdade jurídica surge, assim, indissociável da própria liberdade individual. (CANOTILHO, 2003). Os movimentos sociais atuam de diferentes formas e podem ser compreendidos como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. São verdadeiras manifestações de resistência como passeatas, perturbações da ordem e negociações. (GOHN, 2003)

Quanto à utilização dos termos gênero, direitos humanos, igualdade e respeito:

O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tributária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. Tem uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis, direitos humanos, enfim, igualdade e respeito. (PEDRO, 2005, p. 78)

Portanto, o desequilíbrio e a existência de direitos privilegiados masculinos em prejuízo dos femininos dificultam o exercício do princípio da igualdade. O Tribunal Penal Internacional, criado no ano de 2002, em Haia, é um exemplo que estipula no artigo 36, número 8, de seu Estatuto que no momento da seleção de juízes deverá ser observada uma composição justa e equilibrada de elementos masculinos e femininos. (RAPOSO, 2004)

Ademais, a discriminação de gênero retrata um problema social e não somente uma pauta feminista. Na obra O contrato sexual (PATEMAN, 1993) ressalta que a desigualdade entre os sexos, visualizada através da divisão do trabalho, dos baixos salários e da violência são provenientes da maneira como se organizaram as estruturas e das instituições patriarcais da modernidade.

A sexualidade também é algo complexo e que não pode ser separada dos aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos da vida humana. Em relação ao desejo pelo corpo da mulher, ele é “também, no curso da história, um corpo dominado, subjugado, muitas vezes roubado, em sua própria sexualidade.” (PERROT, 2016, p. 76)

Necessário também um maior conhecimento acerca do conceito de masculinidade,50 que nem

50 “Masculinidade diz respeito a um conceito que se refere ao conjunto de práticas e ações legitimamente reconhecidas e aceitas no universo social, como um padrão de comportamento que afirma e realiza um ideal masculino, representando o

sempre é abordado, pois o enfoque dos estudos normalmente segue na direção das questões femininas.

“A masculinidade constrói a civilização pela exclusão, exploração e pela violência, baseadas em seu sistema de domínio”. (PISANO, 2017, p. 25)

No entanto, ao se considerar o gênero como uma construção social podemos compreendê- lo como algo que está em constante transformação, dependente da cultura e do ambiente em que se está inserido. Dessa forma: “associado ao sistema capitalista, o patriarcado funciona como um sistema que reforça as estruturas de desigualdade e exploração do corpo e trabalho das mulheres.”

(PARADIS, 2014, p. 60). Portanto, o sistema do patriarcado naturaliza a opressão das mulheres.51 Necessário uma mudança acerca do pensamento que desqualifica as mulheres no sentido corporal, intelectual e moralmente. Simone de Beauvoir ressalta que a sociedade ainda não alcançou o fim da desigualdade, da subordinação, da violência e de todas as formas de discriminação contra a mulher:

[...] sendo o corpo o instrumento de nosso domínio no mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis porque os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada. (BEAUVOIR, 2009, p. 65)

Não é diferente quando se busca discutir acerca de mulheres não nascidas com o sexo feminino, mas que se identificam como sendo do gênero e que sofrem, principalmente, situações de preconceito e de violência doméstica.

Neste sentido, o Projeto52 de Lei do Senado n° 191, de 2017, de autoria do Senador Jorge Viana visa a alterar a Lei Maria da Penha para estabelecer que independe da identidade de gênero a garantia de direitos à mulher. A idéia do referido projeto é a promoção de políticas públicas de prevenção e combate a qualquer forma de violência para aquelas que não nasceram biologicamente com corpo feminino, mas que se entendem, agem e se identificam como mulher, deve ser efetivada.

A necessidade da proteção e cuidado da mulher deve ser debatida, sendo indispensável uma maior compreensão acerca do gênero nas relações sociais. A respeito do tema:

[...] uma construção social e histórica de caráter relacional, configurada a partir das significações e da simbolização cultural de diferenças anatômicas entre homens e mulheres. [...] Implica o estabelecimento de relações, papéis e identidades ativamente construídas por sujeitos ao longo de suas vidas, em nossas sociedades, historicamente produzindo e reproduzindo relações de desigualdade social e de dominação/subordinação. (BARREDA, 2012, p. 101)

Dessa maneira, “[...] O principal ponto é que a vulnerabilidade alcança em princípio, a todo o gênero feminino, em qualquer e diversa situação social e econômica e em qualquer contexto, dada a ancestral legitimidade do poder pátrio masculino”. (MACHADO, 2016, p. 170).

O grande desafio é a compreensão social acerca da igualdade de gênero com ações que promovam o respeito à mulher e a conscientização sobre a inexistência de hierarquia entre os sexos. Necessária a construção de uma sociedade baseada no respeito à diversidade e identidade do sujeito, bem como, ações governamentais que contribuam para a superação da desigualdade de gênero.

E o Brasil como um Estado democrático, nos termos da Constituição Federal de 1988 prevê a dignidade da pessoa humana no seu artigo 1º, inciso III, a saber: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] a dignidade da pessoa humana.”

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2002, p. 128)

51 “[...] A maior parte das agressões sofridas pelas mulheres é decorrente de conflitos interpessoais, o que acaba por mere- cer pouca atenção e sua exposição causa embaraço.” (BANDEIRA, 2014, p. 449)

A proteção da dignidade humana está diretamente ligada às ações estatais, sendo importante destacar a construção de um conceito destas denominadas políticas públicas, pois: “Pode-se dizer que essas duas categorias – direitos e políticas públicas – fazem parte de um mesmo campo semântico.

São como duas faces da mesma moeda: a primeira remete à sociedade e a segunda, ao Estado.”

(NOVAES, 2012, p. 332). Ademais, “é possível compreender como políticas públicas as ações que nascem do contexto social, mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção pública numa realidade social [...].” (BONETI, 2018, p.18)

O acompanhamento dos resultados das políticas, em especial as educacionais, vão refletir se a desigualdade de gênero já foi suficientemente debatida na sociedade e, principalmente, no ambiente educacional. Cabe destacar que quanto à política pública de educação superior: “não pode deixar de estender as características acadêmicas, o rigor científico, a liberdade do pensamento e de expressão e a condição de geradora da cultura local, estadual e nacional a todos os cidadãos.” (ZAINKO, 2003, p. 45)

Além disso, as políticas públicas são formalizadas por meio de teorias edificadas no campo da sociologia, da ciência política e da economia, bem como, refletem em todos os setores da sociedade.

Acerca do contexto cita-se que:

[...] Pode-se, então, resumir política pública como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, ‘colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real. (SOUZA, 2006, p. 25)

Desta maneira, “Políticas, (omissis), são as formas próprias de o Estado agir nos diversos níveis, de acordo com as formas como planeja atender às necessidades da população.” (AZIBEIRO, 2002, p. 20). A política social não deve ser vista unicamente como uma “mera “reação” do Estado aos “problemas” da classe operária, mas contribui de forma indispensável para a constituição dessa classe. A função mais importante da política social consiste em regulamentar o processo de proletarização” (LENHARDT; OFFE, 1984, p. 22).

A realidade da mulher no mercado de trabalho53 é um exemplo que comprova a desigualdade e “[...] atinge, em muito maior extensão e profundidade, as mulheres em idade produtiva do que os homens nas mesmas condições.” (SAFFIOTI, 1987, p. 125). Com isso, “[...] lá onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 91)

Sendo assim, fica claro que historicamente o homem obteve êxito no mundo público, restando à mulher apenas o espaço no âmbito privado das relações sociais:

Tudo isso nos faz refletir sobre os traços que se formam na socialização diferenciada dos sexos e como são valorados socialmente. Sabemos que se preparam homens e mulheres desde o berço.

Ao homem corresponde o mundo público; o ponto de vista é o futuro; se fomenta a intrepidez, a inovação. À mulher, pelo contrário, lhe corresponde a esfera doméstica e é educada para que deseje permanecer nela; o ponto de vista é o passado e o presente; e se fomenta a rotina, a conservação, a repetição. (RUIZ, 2004, p. 139)

É evidente “[...] a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)” (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599)

Neste sentido, salienta-se que “[...] os arranjos familiares e os padrões da divisão sexual do trabalho modificaram-se, mas continuam a implicar, nas suas formas correntes, maior vulnerabilidade para as mulheres, especialmente as mais pobres.” (BIROLI, 2018, p. 34)

No que tange aos impactos da discriminação de gênero vale destacar que:

Poucas são as investigações que abordam o impacto da discriminação de gênero nas políticas públicas educacionais, tais como a persistência da discriminação contra as mulheres expressa 53 “[...] na maior parte dos países, as mulheres são amplamente sobrerepresentadas entre os 50% dos salários mais baixos, de modo que as fortes diferenças entre países refletem, em grande medida, as diferenças salariais entre homens e mulhe-

em materiais didáticos e currículos, a limitação ao acesso à educação e permanência na escola, sobretudo das jovens grávidas, bem como o fracasso escolar que marca de maneira distinta a trajetória escolar de meninos e meninas. (VIANNA e UNBEHAUM, 2004, p. 78).

Indispensável também a criação de programas que estimulem o ingresso e a permanência de mulheres no campo das ciências e tecnologias. Com isso, busca-se desenvolver uma sociedade mais igualitária, um processo pelo qual se caminha no início. Deve-se também combater todas as formas de ações “[...] discriminatórias frente às discrepâncias indicadas requer a adoção de políticas públicas eficientes derivadas destes estudos e da nova formulação educacional pautada nas pesquisas de gênero.” (NETO, 2019, p. 157)

Acerca da educação como política pública base para a questão de gênero, destaca-se que a atuação dos governos deve atingir os mais novos e também aqueles que já alcançaram a maioridade, de forma que:

A educação sustentada divide-se em dois patamares: o primeiro referente à educação básica de comportamento daqueles que estão com a personalidade em formação, implementando a idéia de transversalidade dentro do próprio ensino básico. O segundo frente à alteração de comportamento da parcela de sociedade que já tenha sua personalidade formada, tendo atingido a idade adulta, mas que se comporta de uma forma preestabelecida, dentre outros fatores pela ausência do perfeito conhecimento da realidade sobre a questão de gênero que lhe acarreta. (FERRACINI, 2019, p. 138, grifos do autor).

Quanto ao ambiente escolar é necessária uma reestruturação dos conteúdos e a uma maior capacitação de profissionais da educação, de forma a trazer visibilidade a figura feminina e transformar o pensamento acerca de que: “[...] a mulher é o oposto, ‘o outro’ do homem: ela é o não homem, o homem a que falta algo [...]” (EAGLEATON, 1983, p. 143). Sobre a instituição escolar:

A instituição escolar, de forma explícita ou implícita, por meio de seu currículo, seu projeto político pedagógico, plano anual, plano de aula, material pedagógico, suas práticas pedagógicas, linguagens, brincadeiras, ainda é um local privilegiado para discussão e reflexão sobre a produção e reprodução das desigualdades entre os gêneros. (GRAUPE e SOUSA, 2015, p. 111)

Abordar questões de gênero no ambiente escolar pode ser algo difícil, principalmente por muitos acreditarem que a escola não é o local apropriado para discutir tal temática. Sobre o assunto ressalta-se que:

Esses grupos articulam discursos conservadores de diversas ordens vinculados a questões morais e religiosas, defendem uma posição política em relação à função do Estado e da escola, restringindo estas instituições, defendendo liberdades individuais e os direitos e a liberdade da família em educar os seus filhos. Desta forma, acreditam que a escola não deve abordar temas como política, religião, gênero e sexualidade, que professores em sua maioria são “doutrinadores”

e não são educadores, pois deveriam apenas se restringir a ensinar conteúdos técnicos. Tais concepções tomam os jovens como meras tabulas rasas, sem opinião e reflexão. Baseados nisso, defendem a proibição de professores e da escola de trabalhar estas temáticas, previstas nos parâmetros curriculares nacionais, que, como vimos, são caras não só aos movimentos sociais, como também aos próprios princípios democráticos, ferindo a autonomia pedagógica e atingindo a promoção da cidadania e a construção de uma escola plural, onde todos e todas devem ser respeitados, independente de sua origem, cor, etnia/raça, gênero, classe, identidade, orientação sexual, pertencimento religioso, etc. (SEVILLA e SEFFNER, 2017, p. 4-5)

Sobre o tema vale salientar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu acerca da inconstitucionalidade de lei que vedava ensino sobre gênero e orientação sexual. A ação de descumprimento de preceito fundamental54 – ADPF n.º 460 foi ajuizada contra o artigo 2º, parágrafo único, da Lei 6.496, de 24 de junho de 2015, do Município de Cascavel/PR, que aprova o plano municipal de educação e veda política de ensino com informações sobre gênero no município.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental constitui instrumento jurídico apropriado para sanar lesão ou ameaça de lesão a preceitos e princípios fundamentais provocados

54 Artigo 1º da Lei 9.882/99: “A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Su- premo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou muni-

por ato comissivo ou omissivo do poder público, quando não haja outro meio apto a saná-la.

No caso da ADPF n.º 460 o trecho da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel/PR a que se refere a argüição é o previsto no artigo 2º, parágrafo único, em que consta: “[...] Além das diretrizes previstas nos incisos de I a X deste artigo, fica vedada a adoção de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo “gênero” ou “orientação sexual”.

Na ação em comento a Procuradoria Geral da República descreve que:

A Lei 6.496/2015 utiliza indevidamente a expressão “ideologia de gênero” (cujo conteúdo é incerto e constitui, ela própria, uma manifestação ideológica) e não “estudos” ou “teoria de gênero”, para legitimar fusão artificial entre gênero e interesses e afastar a temática do campo dos direitos e do processo educativo. Ao proibir uso e veiculação de material didático que contenha “ideologia de gênero”, a lei tenta driblar a discriminação latente da população LGBT e a simples discussão sobre gênero e sexualidade, o que parece ser seu principal intento. “Ideologia”, nesse caso, serve como palavra-disfarce. Por essa razão, não haveria utilidade em debater seu sentido na lei municipal.

A ampla proibição da Lei 6.496/2015, que abrange identidade, ideologia e orientação de gênero, além de imprecisa, é discriminatória, porquanto violadora da laicidade do estado e dos direitos fundamentais à igualdade, à liberdade de ensino e de aprendizado, à proteção contra censura e à liberdade de orientação sexual. (ADPF n.º 460, petição inicial, p.10)

Ao apreciar a ação o Tribunal, por unanimidade, conheceu da arguição de descumprimento de preceito fundamental e julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 6.496/2015 do Município de Cascavel/PR, nos termos do voto do Relator.

Portanto, não deve o Estado deixar de tratar em sala de aula temas relacionados ao gênero e identidade sexual, pois tal omissão poderá trazer inúmeros prejuízos na construção do ser que está em plena formação. Vale salientar que a avaliação de políticas educacionais pode contribuir para a análise das questões de desigualdade de gênero. Nesse sentido, observa-se que:

O gênero enquanto um modo de dar significado às relações de poder estabelecidas e difundidas pelas políticas educacionais está presente nas mais variadas esferas, níveis e modalidades de ensino.

E a avaliação sistemática das políticas públicas educacionais, nesta perspectiva, pode-se tornar um precioso aporte para a percepção das desigualdades de gênero. (VIANNA e UNBEHAUM, 2004, p. 80)

Além disso, a mulher esteve presente desde o início da industrialização, mas seu trabalho era menos qualificado, mal pago e raramente colocado no nível onde se exercia o poder, ficando sempre em posição secundária e subordinada ao seu papel de mãe e de esposa que era seu único papel social reconhecido e legítimo.

Desta maneira, evidencia-se a importância do estudo dos direitos humanos com enfoque na temática gênero, bem como, a importância da educação55 para combater todas as formas de desigualdade. Muitas destas legislações vigentes destacam o importante papel da escola na formação do cidadão, uma vez que é o local propício para a discussão e reflexão das desigualdades, principalmente entre os gêneros.

Uma escola é uma entidade social; não a mera reunião de indivíduos com diferentes papéis. Trata- se, pois, da preparação de profissionais cujo trabalho será sempre ligado a uma instituição com práticas, valores e princípios sedimentados ao longo de sua existência histórica. É o que poderíamos denominar ‘mundo escolar’ ou ‘vida escolar’. (CARVALHO, 2007, p. 472)

Indispensável também o estímulo ao trabalho do professor e o investimento em cursos de aprimoramento. Para tanto, deve-se proporcionar ao professor condições dignas de trabalho. Assegurar o direito à educação é trazer qualidade ao aluno, bem como, acesso e permanência na escola e na universidade, locais em que indivíduos interpretam, ressignificam e materializam a realidade, ou seja, ambientes favoráveis para a reflexão e discussão sobre os problemas e dificuldades.

Considerando o contexto, existiram avanços; porém, o caminho a ser percorrido para a efetivação dos direitos previstos ainda é longo, portanto, os progressos: “[...] conseguidos nos últimos anos permitem concluir que já começou a nascer o Brasil de amanhã, que por vias pacíficas deverá transformar em realidade o sonho, que muitos já ousam sonhar. (DALLARI, 2007, p. 48).

55 “[...] educação não é o mesmo que escola. Esta última é uma invenção da humanidade no seu processo histórico para

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