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A RELIGIÃO CRISTÃ TRADICIONALISTA

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COMO INSTRUMENTO DA

Quando se mencionam instrumentos que auxiliam neste processo de dominação da vida e da subjetividade dos indivíduos e de alguns grupos sociais, é possível identificar algumas manifestações da biopolítica. Resumidamente, a biopolítica se manifesta através de instrumentos principalmente retóricos e ideológicos, que objetivam controlar os corpos, as vontades e as subjetividades individuais e coletivas de grupos sociais específicos. É, portanto, uma forma de intervir na vida por meio de estratégias políticas, a fim de disciplinar e padronizar a sociedade.

Explicitado este contexto, pode-se definir a problemática desta pesquisa como: é possível identificar a Religião como instrumento da biopolítica, que interfere no controle dos corpos e nos direitos das mulheres no Brasil? Assim, o objetivo central deste estudo é relacionar Religião com biopolítica, a fim de identificar suas influências sobre os corpos e os direitos das mulheres brasileiras.

No que se refere à metodologia, o estudo desenvolve-se na lógica da dedução, com abordagem epistêmica complexo-paradoxal. A complexidade e a paradoxalidade se evidenciam não como uma redução a apenas uma abordagem, mas sim a aplicação de abordagens diversas, mesclando análise, interpretação e dialética a fim de construir uma rede de relações que possibilitam a formação de uma racionalidade ecológica, ou seja, que estimule uma praxis de bem viver. As fontes consultadas são predominantemente indiretas, advindas de bibliografias específicas. O texto subdivide-se em dois momentos: no primeiro, objetiva-se relacionar a Religião como um instrumento da biopolítica e, no segundo momento, refere-se às implicações que a Religião, enquanto prática de biopoder, têm sobre os direitos das mulheres no Brasil.

1 RELACIONANDO BIOPOLÍTICA E RELIGIÃO

Uma discussão sobre gênero, biopolítica e Religião é delicada, principalmente porque algumas destas questões se apresentam como tabus ou fundamentalismos para o meio público. Ao resgatar estes termos - que também compreendem categorias da compreensão - para a seara de uma discussão científica, requer-se também uma sensibilidade, a fim de demonstrar alguns elementos que compõem seus conceitos. Importante que, neste trabalho, em referência ao pensamento complexo e paradoxal de Edgar Morin (2007), não se definem conceitos fechados. Em virtude da complexidade do mundo e devido ao fato de que conceitos últimos e absolutos podem promover mutilações em formas de ser e de viver, mantém-se, através da abertura conceitual, um campo teórico que aceita incertezas, aceita outros elementos de composição dos conceitos e, consequentemente, incentiva a diversidade das formas de ser e de bem viver. Assim, tendo estas premissas como base para a construção da lógica do pensamento aqui exposto, é possível identificar alguns elementos que compõem os conceitos dos principais termos que norteiam esta pesquisa: biopolítica e Religião.

O conceito de biopolítica alicerça-se no pensamento de Michel Foucault. Thomas Lemke (2017) explica que Foucault foi um grande expoente na formulação do conceito de biopolítica, sendo um dos primeiros autores a vinculá-lo com formas específicas de exercício do poder. Segundo o autor, “La biopolítica representa una constelación en la que las ciencias naturales y humanidades modernas y los conceptos de normalidad que surgen de éstos dan estructura a la acción política y determinan sus objetivos” (LEMKE, 2017). Neste sentido, Lyra e Wermuth (2018) explicam que a vida humana politizada acaba vinculando- se a uma relação em que a soberania estatal transmuta-se em poder sobre a vida e a morte dos cidadãos vinculados a uma ordem estruturante. Delimita-se uma ordem estruturante, pois ela pode ser manifestada por instituições diferentes do Estado, como, por exemplo, o mercado. A ordem estruturante define os padrões de normalização da vida, de subjetivação dos desejos individuais e pode ser incentivada pela política de Estado a fim de promover a submissão e disciplina da sociedade (LEMKE, 2017).

A sociedade da disciplina é um termo muito utilizado para explicar o pensamento biopolítito de Foucault. Disciplinar a sociedade é uma forma de identificar o biopoder27 exercido sobre a vida individual e coletiva. A disciplina, neste sentido, é instituída a fim de moldar o pensamento e os

27 Biopoder se refere a um poder paralelo ao de soberania estatal. Se, por um lado, a soberania é o poder sobre a morte das pessoas, sendo esta morte podendo ser causada em situação de guerra, de marginalização ou de vulnerabilidades causadas pela estrutura de governabilidade do Estado, o biopoder refere-se diretamente ao poder sobre a vida das pessoas, ou seja, o poder que disciplina e controla (LEMKE, 2017).

desejos das pessoas para atender as demandas necessárias para se manter a ordem estruturante de determinado modelo de sociedade (LEMKE, 2017). Assim, a disciplina a ser instituída pelo capitalismo, por exemplo, se expressa desde a escola, onde ensinamentos como ordem, organização, produtividade e lucratividade são internalizados no imaginário de cada indivíduo. Esta internalização faz subsistir condições psicossociais que garantem que tanto o corpo individual quanto o corpo coletivo reproduzam sistematicamente padrões comportamentais que permitem a perpetuação do sistema social no decorrer do tempo. Além da manutenção social, a disciplina tem por principal objetivo a dominação sobre o corpo social e o corpo coletivo, no sentido de que se trata de um processo de adestramento, de internalização de ideias e valores no patrimônio ideológico e axiológico dos seres humanos que correspondem a interesses das estruturas de poder (LEMKE, 2017). Neste sentido, manifesta-se uma forma de dominação branda, isto é, a completa submissão a um poder sem se ter consciência de seu status de submisso, pois se trata de uma dominação que se fundamenta pela força das ideias e valores, e não pela força coercitiva (SANTOS; LUCAS, 2015).

Outro elemento que caracteriza a discussão sobre biopolítica na contemporaneidade é definido por Agamben como a vida nua. Para Lyra e Wermuth (2018), a vida nua de Agamben é um estado onde o ser humano é meramente uma presença corpórea. Para a manutenção da biopolítica, é necessária a existência de dois grupos de pessoas, sendo que um destes possua uma significação e existência jurídica e o outro é delegado a uma vida nua, ou seja, uma vida sem qualidade, de privação de direitos e de marginalização. Isto significa que “La inclusión en la comunidad política sólo és posible con la exclusión simultanea de seres humanos a los que se les rehúsa el estatus de derecho” (LEMKE, 2017).

Existem uma série de outras implicações da teorização da biopolítica, onde a guerra, o Estado de exceção e a instrumentalização do Direito à vontade do poder são abordados. Entretanto, neste trabalho aborda-se especificamente um ponto de intervenção da biopolítica sobre os corpos das mulheres e, portanto, é necessário um recorte teórico. Para fins deste estudo, cabe compreender a biopolítica como uma forma de exercício do poder, onde a política se estrutura a partir do controle sobre a vida. O controle sobre a vida é constituído a partir de instrumentos que servem ao processo de adestramento social, onde as instituições internalizam convicções nos seres humanos que fazem com que ajam de determinada forma que lhes convém. Estes instrumentos de disciplina contêm tecnologias de normalização, ou seja, recursos ideológicos e retóricos que definem o normal e o anormal, aqueles que podem ser incluídos e aqueles que podem ser excluídos – mais radicalmente, definem aqueles que podem viver e aqueles que podem morrer – (LEMKE, 2017). O Direito também constitui um instrumento da biopolítica, na medida em que as leis podem ser modificadas pelos interesses dos grupos de poder e, inclusive, podem-se forjar estados de exceções às regras, sob pretexto de intervenção na vida social. É possível, neste contexto, identificar formas de vida nua, ou seja, pessoas com sua existência reduzida a uma presença corpórea, sem significação e sem proteção jurídica do Estado. As pessoas relegadas a uma vida nua permanecem em situação de marginalização e vulnerabilidade, estando com suas existências constantemente ameaçadas para manter a estrutura de poder. Estão excluídas do grande corpo social, e muitos destes excluídos podem ser aqueles que não se submetem às políticas de adestramento social e negam o papel social28 que o sistema lhes impõe.

Por outro lado, partindo-se para a explicação acerca do conceito de Religião, se adotam conceitos precisos. Isto porque se faz necessário limitar a amplitude do estudo a determinadas relações, firmadas em determinadas instituições e campos sociais. Assim, Religião, neste estudo, possui um caráter de institucionalização da fé, das crenças e de ensinamentos tradicionais. Conforme apreende- se dos escritos de Gianni Vattimo (1998), a Religião pode adquirir sentidos diferentes, de acordo com os elementos que compõem a sua compreensão e amplitude. O autor utiliza esta terminologia para se referir à fé institucionalizada em um órgão burocrático e hierárquico, como é o caso das Igrejas Medievais, Modernas e Contemporâneas. Recorrendo-se a mais uma especificação do campo a ser estudado como Religião, utiliza-se neste estudo a Religião institucionalizada a partir da vertente Cristã Apostólica Romana, que compreende o catolicismo ocidental e as ramificações do protestantismo

28 O papel social é teorizado por Dahrendorf e pode ser resumido às diferentes funções e aos diferentes comportamentos que os seres humanos devem assumir no trabalho, na vida social, na vida familiar. O papel social não considera as aspira- ções pessoais ou os sentimentos e necessidades subjetivas e individuais, é um código de comportamento pré-constituído e

(evangélicos, luteranos, etc). Além disto, o estudo se restringe a uma abordagem das Religiões Cristãs Tradicionalistas, também chamadas fundamentalistas, que possuem uma cosmovisão singular e que representa atos e discursos de biopoder. Assim, busca-se evidenciar, neste tópico da pesquisa, os possíveis usos de ensinamentos religiosos cristãos, dentro destas vertentes religiosas institucionais, como instrumentos a favor da biopolítica.

Morais (2017) explica que o cristianismo possui um papel importante para a formação da pessoa e da ordem política ocidental. Da mesma forma, o autor refere que Foucault, em sua obra, não considera o cristianismo como uma organização paralela à política ou à governabilidade. Nos escritos de Foucault, Religião, governo e poder se entrelaçam em uma complexa rede de institucionalização de formas de controle. Assim, Morais evidencia que, em uma sociedade disciplinar, a vigilância é de extrema importância. Os corpos dos indivíduos e o corpo social devem estar em constante vigilância para garantir que estejam cumprindo seus papéis de acordo com as normas disciplinares do sistema. A disciplina e a vigilância são elementos importantes que compõem a estrutura e o imaginário religiosos.

O saber religioso se alicerça sob padrões de disciplina e normalidade da vida individual e coletiva.

A legitimidade deste saber advém de uma ordem transcendental divina, que representa a voz, a vontade de Deus, que é o detentor da certeza, da correnteza e da verdade (VATTIMO, 2016). Girard, em diálogo com Vattimo (2010), explica que a normalização da vida a partir de estruturas abstratas e metafísicas religiosas remonta a uma ordem de polarização entre os normais e os diferentes, entre os amigos e os inimigos. Isto remonta a uma internalização de dualismo, rivalidade e combate às diferenças, na medida em que os diferentes são considerados a causa para crises sociais, pois representam a parte desagregada da sociedade, ou seja, aqueles que não estão comprometidos com a coesão do grupo social. Levando-se em consideração que a biopolítica possui em suas bases esta diferenciação social entre o normal e o anormal e a institucionalização do combate ou da invisibilidade dos anormais, percebe-se uma estreita relação dela com a Religião, no sentido de que a Religião atua como instrumento do biopoder.

Esta instrumentalização se manifesta no momento em que através de discursos religiosos se estipulam padrões disciplinares com base nas ideias de graça e pecado. Aqueles que não seguem a norma religiosa ou aqueles que não se enquadram nos padrões da norma são pecadores, desqualificados pela vontade de Deus, e cujas existências são reduzidas a uma vida nua. A vida nua estipula uma situação de vulnerabilidade, onde indivíduos e grupos são segregados da sociedade através de preceitos morais e culturais. Segundo Morais, “A religião se apresenta como um dispositivo biopolítico na medida em que ela produz discursos racistas e pode ampliar a potencialidade da morte do “inimigo”. E assim, a religião e a violência se unem sob o biopoder” (2017, p.81).

Portanto, é possível identificar a Religião como um dispositivo da biopolítica, na medida em que se estrutura sob bases de exercício do biopoder através de dogmas e ensinamentos que se dão no campo religioso. Por outro lado, trata-se de um campo específico, com implicações na vida privada e na seara moral, parecendo desvinculado de uma biopolítica a ser exercida através do Direito e do poder estatal.

Se esta forma de biopoder não possui vinculação com a ordem estatal ou jurídica, não há de se falar em suas implicações sobre os direitos, pois estes estariam envoltos por outras forças e interesses que não os religiosos. Entretanto, o próximo tópico desta pesquisa desmistifica esta percepção, relacionando o biopoder religioso com legislações e políticas estatais brasileiras, demonstrando as intersecções entre pensamento político, jurídico e religioso. A base para demonstração destas relações será tomada a partir da situação das mulheres, ou seja, dos mecanismos de biopoder voltados para os sexos feminino e masculino que se perpetuam da seara religiosa para a seara jurídica.

2 A RELIGIÃO COMO PRÁTICA DE BIOPODER NO CONTROLE DOS CORPOS E DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL

Se a Religião é um instrumento para a prática de biopoder, é possível identificar algumas de suas influências sobre a vida daqueles que ela busca organizar e disciplinar. Neste trabalho, optou-se por abordar a disciplina religiosa sobre a vida das mulheres. Sabe-se que as sexualidades são abordadas como tabus sociais principalmente pela Igreja. Isto deve-se a resquícios da cultura eclesiástica da Idade Média (séculos X ao XV), quando o controle das populações era exercido predominantemente

pela Igreja Cristã. Este período foi marcado por discursos e práticas religiosas radicais no sentido da dominação dos corpos. As mulheres sofreram especialmente com esta dominação, pois a Igreja Cristã legitimava sua submissão aos homens e seu status de objeto. Ainda, as mulheres que não se adaptavam a este papel social submisso eram marginalizadas, chegando ao ápice de, no período Inquisitorial (século XII a XIV ou XV) promover a famosa caça às bruxas, ou seja, a perseguição, a tortura e o julgamento a penas de morte cruéis às mulheres que tinham comportamentos desviantes em relação aos exigidos pela Igreja (FEDERICI, 2017).

Entretanto, para compreender a complexidade que se desenlaça ao se estudar ensinamentos e dogmas cristãos, deve-se estar atento para aspectos ideológicos, culturais e históricos. A Religião Cristã baseia-se nas escrituras sagradas constantes na Bíblia. A interpretação destas escrituras - cuja algumas datam desde 1.500 a.C – são utilizadas para construir ideologias e perpassá-las à sociedade. Estas ideias, portanto, têm relação direta com os escritos bíblicos. Por outro lado, deve-se ter em mente que os escritos bíblicos se originam dos povos hebreus originários, que possuíam uma cultura profundamente patriarcal29. O contexto histórico, cultural e social da época em que a Bíblia foi escrita possuía diferenças substanciais com a era atual e o problema reside nas tentativas de continuar utilizando estes mesmos mecanismos de controle e padrões de normalização da antiguidade na contemporaneidade (HELMINIAK, 1998).

No que se refere às relações de gênero, na sociedade hebraica originária, as tribos organizavam-se em clãs, onde as crianças e os jovens submetiam-se à autoridade do pai que, por sua vez, submetia-se também à autoridade de seu genitor, e assim sucessivamente. O pai mais antigo era o grande líder da tribo, o patriarca. Todas as relações humanas se davam, portanto, tendo como instituição base a família.

As mulheres, portanto, possuíam um papel vital, no sentido de que elas eram as genitoras, ou seja, a partir delas a família poderia aumentar seus membros. Como a família era a principal instituição que determinava o governo do povo hebraico antigo, o controle sobre os corpos das mulheres era essencial para a manutenção da governabilidade. A sociedade hebraica originária não reconhecia o instituto da adoção e, portanto, a ideia de filhos legítimos do casal era supervalorizada e protegida. Restringir a sexualidade era uma forma de garantir a legitimidade da linhagem sanguínea da família, bem como, garantir que mais mão-de-obra familiar para conquistar ainda mais riquezas (HELMINIAK, 1998).

A virgindade também era supervalorizada nesta época. Isto se deve, principalmente, à importância econômica que os corpos das mulheres possuíam. Sendo a sociedade hebraica originária essencialmente patriarcalista, o governo era exercido apenas por homens. As mulheres, nesta sociedade, não possuíam status de seres humanos. Elas eram consideradas propriedade do pai ou do marido, tanto que eles poderiam dispor delas como bem entendessem. Como propriedades, eram dos corpos das mulheres que provinham os herdeiros e um possível dote da família do noivo para a família da noiva e isto significava riqueza e prosperidade à família, ou seja, ao governo e a toda tribo (HELMINIAK, 1998).

Na contemporaneidade, as condições sociais, culturais, políticas e econômicas que são os fundamentos para as ideias e a normalização de certas condições sociais representadas na Bíblia não mais existem. A família, por exemplo, apesar de ser ainda uma instituição primária de muita importância na vida das pessoas, é apenas parte de uma estrutura social maior, que engloba instituições educacionais, correcionais e estatais. Bem como, a importância da mulher na sociedade contemporânea não se dá mais exclusivamente ao seu papel de reprodutora. Entretanto, através de interpretações bíblicas literais, as Religiões Cristãs ainda fazem persistir até os dias atuais no imaginário popular estas normas a padrões de normalização patriarcalistas repressivas. Isto ocorre basicamente porque a racionalidade por detrás do pensamento teológico tradicional é centrada na figura do divino, de onde provém tudo que é bom e correto. Por se tratar de um fundamento transcendental, o divino não erra, não mente, pois ele não é humano, é superior ao ser humano e é a manifestação de tudo aquilo que é correto. Assim, o ensinamento advindo do fundamento de pensamento teológico transcendental é metafísico, no sentido de ser absolutamente verdadeiro aplicável a todas as épocas e contextos, sem acompanhar o ritmo de modificação das sociedades (VATTIMO, 2016).

Segundo Tesser (2019), os discursos religiosos, com ênfase nas Igrejas de matriz cristã, promovem a invisibilidade das mulheres em suas pregações. Esta invisibilidade deriva do fato da maioria das

29 O patriarcalismo pode ser entendido como uma cultura que constrói discursos e práticas de supervalorização do sexo masculino e submissão do sexo feminino. Para a cultura patriarcal, existem apenas estas duas identidades de gênero, e elas

escrituras bíblicas conterem como protagonistas homens e, quando se refere às mulheres, valoriza seu papel doméstico de progenitora e cuidadora, acusando de pervertidas as que não se encaixam nestes papéis, como Eva ou Maria Madalena. Estas pregações introjetam mensagens hegemônicas de dominação entre os sexos nas comunidades, influenciando valores e interesses individuais e coletivos que buscam manter a organização social pautada na submissão das mulheres perante os homens. Ou seja, são discursos e práticas de exercício de biopoder sobre os corpos e subjetividades das mulheres.

É importante frisar que, a partir do controle da sexualidade e dos padrões disciplinares impostos às mulheres pela Religião Cristã, normalizaram-se formas de convívio e papéis sociais, inclusive, legalmente. Por mais que se considere que o Brasil é, atualmente, um Estado Laico, ou seja, não admite influência de interesses de fundamento religioso metafísico para a formulação de leis, políticas públicas ou decisões de governo, é possível perceber inúmeras discussões com base religiosa em questões públicas dos direitos das mulheres. Miguel Reale (2010) demonstra através de seus estudos que a norma de direito se encontra intimamente vinculada ao contexto social, econômico e cultural de um povo. Para o autor, o Direito possui três dimensões diferentes: norma, fato e valor. Nesta terceira dimensão (valor), Reale indica que condutas valorizadas na cultura como justas ou injustas acabam por refletir um valor ao ordenamento jurídico, e, em última análise, podem tornar-se positivadas em lei. Isto significa que o ordenamento jurídico irá proteger legalmente os valores considerados importantes para a sociedade. Se uma sociedade se orienta por valores patriarcalistas, isto estará presente nas leis que negarão algumas prerrogativas às mulheres.

Pode-se utilizar como exemplo desta relação entre valores socialmente protegidos e leis, a vigência da expressão chefe de família para identificar os direitos pertinentes apenas aos homens que constituíssem família com suas respectivas esposas no Código Civil brasileiro de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002). No artigo 186 do referido diploma legal, estava estipulado que em caso de casamento entre menores de 21 anos que necessitassem da autorização dos pais, em discordância destes, prevaleceria a vontade paterna. Nos artigos 218 e 219, inciso IV, também estabelecia a possibilidade da anulação do casamento fundada no desconhecimento do marido de que a esposa já tivera relações sexuais anteriores. Por fim, o artigo 233 estabelecia claramente a chefia da família aos maridos, cabendo-lhes representar a esposa e os filhos nos atos da vida civil (BRASIL, 1916).

As disposições jurídicas hegemônicas acerca das relações de gênero constantes no Código Civil de 1916 estão em consonância com os valores perpassados pelas correntes religiosas tradicionalistas.

O mesmo ocorre também com questões atinentes à diversidade cultural, étnica, sexual e econômica.

Outra problemática envolvendo manifestos exercícios de biopoder pela Religião é a formação de bancadas religiosas no Congresso Nacional Brasileiro. Este órgão é responsável pela formulação das leis do país e representa, portanto, a governabilidade pelo ente estatal. Porém, ao admitir presença de bancadas que publicamente fundamentam seus projetos com base nos escritos bíblicos e na presença do divino, há uma fragilização da laicidade e, portanto, uma influência direta da Religião na esfera pública e no poder estatal. Desta forma, há uma vinculação do biopoder exercido pela Religião na esfera estatal, transmutando-o em política de governabilidade e, portanto, em biopolítica. Há, neste sentido, uma relativização da laicidade para que a biopolítica se utilize das tecnologias de biopoder da Religião e, desta forma, passe a exercer controle e disciplina sobre os corpos.

No que se refere à bancada religiosa no Congresso Nacional, tem-se destaque a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), reconhecida por mobilizar deputados e senadores com ideologias cristãs fundamentalistas, que promovem diversos atentados contra os indivíduos e os grupos que não se adequam aos padrões de normalização impostos pela Igreja. Dentre os projetos de lei movidos pela FPE, no período entre 2014 e 2017 se destacam 26 contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

No Brasil, a discussão mais debatida em público na atualidade sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é o direito ao aborto legal. O aborto é considerado crime pelo Código Penal Brasileiro (artigos 124 a 128), admitida sua forma legal apenas em situação de feto anencefálico, de perigo de vida da mãe ou de estupro. Entretanto, os projetos de lei movidos pela FPE buscam impedir quaisquer possibilidades legais de aborto (DIP, 2018). Do ponto de vista da laicidade, as vertentes religiosas têm liberdade para se posicionar e pregar ensinamentos que proíbam o aborto, a respeito do direito à liberdade de crença. Por outro lado, não se podem embasar decisões jurídicas de governabilidade com fundamento nos dogmas ou na moral religiosa. Então, neste aspecto específico, não se trata de

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