• Nenhum resultado encontrado

DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE CULTURAL SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES

Joice Graciele Nielsson66 Leticia Gheller Zanatta Carrion67

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as questões atinentes aos direitos humanos, sua construção, formalização e desenvolvimento, abordando a possibilidade de sua observância frente à diversidade cultural, salientando os papéis ocupados por tais conceitos na modernidade. Sob este prisma, o enfoque recai sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, reconhecimento ocorrido após um processo histórico de lutas por igual dignidade, sendo que a diversidade está presente na pluralidade de identidades femininas existentes no mundo.

Palavras-chave: Direitos humanos. Diversidade cultural. Direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende analisar os direitos humanos, entendidos como não sendo inatos à humanidade, mas fruto de muitas lutas e transformações sociais, ao longo da história, sendo que a concepção contemporânea dos direitos humanos se caracteriza pela universalidade e pela indivisibilidade desses direitos, inaugurada com a Declaração Universal de 1948.

A extensão universal dos direitos humanos alcança todos os seres humanos do planeta, tendo como base a ideia de que a condição de pessoa é o único requisito à dignidade e à titularidade de direitos. Assim, a dignidade humana é pressuposto ao estabelecimento de uma ordem pública mundial, abrigando valores considerados básicos da humanidade, sendo fundamento dos direitos humanos.

A partir da mudança do pensamento mundial, expressa na Declaração da ONU, ocorre o reconhecimento do indivíduo como um ser dotado de dignidade, exigindo uma nova forma de proteção dos direitos dos indivíduos, tornando-se fundamental a convocação para que os mesmos sejam resguardados e garantidos internacionalmente.

Nesse cenário, surge um rol de direitos materializado por bens jurídicos protegidos, independentemente de quaisquer particularismos de nacionalidades ou de matriz cultural, tais como vida, integridade física e moral, garantias judiciais básicas, o que implica num dever de proteção universal efetiva dos direitos humanos.

A partir deste ponto, pode-se direcionar a discussão histórica que envolve o corpo feminino, cujo controle tem sido regularmente exercido pelo Estado, representando o alvo central de ideologias conservadoras e fundamentalistas, numa abordagem dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sob a perspectiva da diversidade cultural, particularizando e destacando direito à igual dignidade.

1 DIREITOS HUMANOS

A proteção aos direitos humanos passou por diversas mudanças, haja vista que inicialmente restringia-se a algumas legislações internas de países como a Inglaterra (1684), os Estados Unidos

66 Doutora em Direito, UNISINOS; Mestre em Desenvolvimento, UNIJUI; Professora do PPGDireito, Mestrado em Direitos Hu- manos e Graduação em Direito da UNIJUÍ; Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos

67 Mestre; Professora da UCEFF Itapiranga, Advogada; Doutoranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ; Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos

(1778) e a França (1789). Questões humanitárias eram abordadas em determinadas situações de guerra e muitos assuntos não eram discutidos para preservar o princípio de soberania dos estados.

(MAZZUOLI, 2002)

Com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Direito Internacional dos Direitos Humanos se consolidou, devido às crueldades praticadas contra milhões de pessoas em razão do nazismo.

Diante das inúmeras violações de direitos surgiu a necessidade de criar uma legislação internacional, para resguardar e proteger esses direitos, nascendo um movimento de expressão internacional para proteger a pessoa humana, despertando o interesse dos Estados em declarar o rol de direitos do homem, na busca pela manutenção da paz e promoção dos direitos humanos. (MAZZUOLI, 2007)

A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, representou uma resposta ao holocausto a que foi submetido, de modo especial, o povo judeu, sob a égide da ideologia do nacional-socialismo. Diante da ruptura provocada pelo totalitarismo nazista, impôs-se à comunidade internacional a reconstrução da noção de direitos humanos (ALVES, 2003).

Tal Declaração inova ao utilizar uma linguagem de direitos até então inédita, articulando o discurso li- beral com o discurso social, ao elencar tanto direitos civis e políticos (artigos 3º a 21) quanto direitos sociais, econômicos e culturais (artigos 22 a 28), sendo que esta combinação faz emergir a concepção contemporâ- nea, marcada pelas notas da universalidade e da indivisibilidade dos direitos humanos (TRINDADE, 2002).

Os direitos humanos são cláusulas fundamentais e superiores que todo indivíduo deve ter diante da sociedade na qual esteja inserido, pois se referem a padrões mínimos para que a pessoa viva dignamente, uma vez que nas relações sociais existem normas garantidoras de tais direitos, não esquecendo que os direitos humanos são limitações contra a intervenção estatal (SIQUEIRA JR. E OLIVEIRA, 2007).

Há quem entenda os direitos humanos como um conjunto de pressupostos, todos tipicamente ocidentais, determinando que existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; esta natureza é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que deve ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (PANIKKAR, 2002).

Com a mudança do pensamento mundial, há o reconhecimento do indivíduo como ser dotado de dignidade, exigindo uma nova forma de proteção de seus direitos, tornando-se fundamental sua garantia internacional. A constatação de que o Estado-Nação é insuficiente para resguardar a dignidade humana, qualifica um novo fundamento aos direitos humanos, sendo que a reivindicação de uma base internacional se fundamenta no reconhecimento mundial da dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, uma transformação vem ocorrendo nos direitos humanos, permitindo o surgimento da concepção contemporânea, sendo que a universalidade e a indivisibilidade são suas principais características. A proteção internacional dos direitos humanos ganha importância e alcance maiores, passando a ser tratada como uma das áreas centrais do Direito Internacional, o que acarreta grande alteração neste campo jurídico.

A universalidade passa a figurar como uma das características fundamentais dos direitos humanos, sendo apresentada como marca determinante da chamada concepção contemporânea desses direitos (PIOVESAN, 2004).

O que se busca é fortalecer a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio do Estado, não deve se limitar à competência nacional ou à jurisdição doméstica exclusiva, uma vez que se trata de um tema de interesse internacional (PIOVESAN, 2004).

Nesse sentido, independente da cultura na qual esteja vinculado, cada ser humano, em sua indivi- dualidade, pelo simples fato de ter nascido, é dotado do atributo da dignidade, possuindo iguais direitos.

Trata-se de universalizar os valores que conformam a ideia de dignidade humana, da qual decorre uma série de direitos que precisam ser institucionalizados e concretizados para garantir proteção, segurança e bem -estar a cada membro da humanidade. As sociedades, particularmente, devem introduzir em sua estrutura normativa jurídica esse mínimo comum que garanta uma existência digna a seus membros. (LUCAS, 2013)

A dignidade, como qualidade inerente ao ser humano, é irrenunciável e inalienável, sendo elemento que qualifica o ser humano como tal, do qual não pode ser destacado. Não se pode pensar na possibilidade de que certa pessoa seja titular de uma pretensão à concessão da dignidade, entendida como qualidade integrante e irrenunciável da condição humana, que pode e deve ser reconhecida,

respeitada, promovida e protegida, não podendo ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo inerente (SARLET, 2006).

O Direito Internacional Público passa a se constituir a partir do princípio da proteção internacional da dignidade da pessoa humana, o qual se sobrepõe ao da soberania. A importância daquele princípio o torna fundamento de um núcleo rígido de direitos, que vincula os Estados à comunidade internacional, fixando direitos irredutíveis, instituídos a partir da Declaração Universal.

O “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, com princípios próprios, solidifica-se como corpo jurídico dotado de uma variedade de instrumentos internacionais de proteção, impondo obrigações e responsabilidades aos Estados, com relação às pessoas a ele submetidas. Sua observância deixou de atender ao interesse estritamente doméstico dos Estados, passando a ser matéria de interesse do Direito Internacional e objeto de sua regulamentação (MAZUOLLI, 2001).

O reconhecimento e institucionalização dos direitos humanos tem aumentado nos últimos anos, mas muitas violações continuam acontecendo ao redor do mundo. É muito comum o descaso estatal com alguns de deveres básicos, o que justifica a existência de um sistema internacional para proteger os direitos humanos violados. Nesse sentido, um sistema internacional de proteção de tais direitos representa garantia fundamental, pois fortalece o mecanismo de garantia no interior dos Estados. Além disso, os sistemas regionais dão segurança aos cidadãos da região e sinalizam que, caso um Estado não consiga proteger a população, há um espaço além das fronteiras nacionais. (BEDIN E SCHNEIDER, 2012)

Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos são o interamericano, o europeu e o africano, com suas respectivas Comissões e Cortes, criados para efetivar a aplicação da tutela vinculando os Estados partes. O sistema global é subsidiário aos sistemas internos de tutela, de modo que só é movimentado quando o sistema nacional falhar em garantir os direitos humanos.

O “direito a ter direitos” passou a ser a principal referência deste processo de internacionalização dos direitos humanos, que surgiu como uma reação às barbáries cometidas durante o holocausto bélico/militar do século XX (ARENDT, 1995). Criou-se uma sistemática internacional de proteção que torna possível a responsabilização do Estado, no plano externo, quando, internamente, os órgãos competentes não apresentarem respostas satisfatórias na proteção desses mesmos direitos.

Os direitos humanos envolvem reconhecimento recíproco de obrigações fundamentais à garantia da vida do indivíduo, em sua universalidade, não podendo ser mitigados por conta de particularismos culturais, representando patrimônio comum da humanidade, imperativos categóricos jurídicos em relação aos quais não se transige, desvinculados da satisfação de expressões culturais. (LUCAS, 2013)

A internacionalização dos direitos humanos implicou em um reexame dos valores da soberania, pois os mesmos deixaram de pertencer ao domínio dos Estados e passaram a submeter-se ao controle da comunidade internacional.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra o seu fundamento no valor da dignidade da pessoa humana, concretizando as ideias de que o homem constitui um fim em si mesmo, dotado de dignidade; é insubstituível; e único e, por isso, não deve ser tomado como um meio a ser usado para algum propósito (KANT, 1989).

A universalidade de tais direitos leva em conta a preocupação com a coletividade, não apenas a individualidade. Entretanto, a sociedade é formada por uma multiplicidade de culturas, com particularidades que devem ser atendidas, para possibilitar o desenvolvimento humano e a dialética entre igualdade e diferença (SANTOS E LUCAS, 2015).

A tarefa dos direitos humanos, nesse cenário, é a de estabelecer os exatos limites da igualdade e da diferença entre os indivíduos e entre as culturas, sem, contudo, negar os aspectos comuns que os identificam na qualidade de sujeitos particulares. Numa sociedade multicultural, esse desafio configura-se ainda maior, pois, enquanto as múltiplas identidades culturais existentes em um país, postulam o direito de manifestarem suas especificidades nas mesmas condições os direitos humanos como universais devem tutelar apenas as diferenças que não sufocam sua missão, de garantir a todos os homens, enquanto tais e não como integrantes desta ou daquela cultura, os direitos necessários ao exercício de suas liberdades e autonomia (SANTOS E LUCAS, 2015).

Nesse sentido, os direitos humanos giram em torno de exigências consideradas imprescindíveis como condições de uma vida digna, exigências derivadas da ideia de dignidade humana, sendo inerentes

2 DIVERSIDADE CULTURAL

Sob a ótica tradicional, os direitos humanos ficaram limitados ao território de um Estado e seu ordenamento jurídico, reduzidos a questões nacionais, sem questionar o núcleo que serve de fundamento a tais direitos, fazendo com que fosse desconsiderada a função político-pragmática da moralidade jurídica dos direitos humanos, que permite tecer uma concepção mais ampla de tais direitos. Diante de tantas diferenças, é necessário reafirmar a universalidade dos direitos humanos, reconhecendo o indivíduo em si mesmo, desconsiderando sua identidade ou seus vínculos, a fim de protegê-lo em qualquer lugar e circunstância (LUCAS, 2013).

Assim, os direitos humanos representam o mínimo ético necessário ao estabelecimento do diálogo intercultural, protegendo a universalidade do homem como tal, admitindo a particularidade das culturas quando não forem razão de exclusões e desigualdades.

A sociedade contemporânea é caracterizada pela diversidade, multiplicidade, pluralidade de culturas ou de identidades culturais, sendo que a preservação dessa diversidade implica na manutenção e desenvolvimento de culturas/identidades existentes e abertura às demais. O reconhecimento e a valorização da diversidade cultural estão ligados à busca da solidariedade entre os povos, à consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais.

Nesse sentido, a interculturalidade implica em um conjunto de propostas de convivência democrática entre diferentes culturas, visando a integração entre as mesmas, sem que isto implique numa anulação da diversidade. (FLEURY, 2005)

Uma relação de interculturalidade é qualquer uma que ocorre entre pessoas ou grupos sociais de culturas diferentes. Por extensão, pode-se chamar também de interculturais as atitudes de pessoas e grupos de uma cultura que se referem a elementos de outra cultura. (SJ., 2005, p. 47)

As relações interculturais podem ser negativas, quando causam a destruição ou diminuição da assimilação do que é culturalmente diferente, e positivas, quando respeitam o que é culturalmente diferente, enriquecendo-se mutuamente, nesta aprendizagem. A tolerância ao que é culturalmente diverso, sem que haja um intercâmbio, uma troca, não chega a caracterizar uma interculturalidade positiva (SJ., 2005).

Há quem diferencie o termo de multiculturalidade, muito usado no estudo da diversidade cultural, indicando a coexistência de diversos grupos culturais na mesma sociedade, sem apontar para uma política de convivência.

De um mundo multicultural – justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação – passamos a outro, intercultural e globalizado. Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relativas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos. (CANCLINI, 2007, p. 17).

Por não guardar relação exclusiva com a nacionalidade, a cultura, a religião e as tradições culturais particulares, os problemas que afetam a humanidade não podem ser enfrentados por uma cultura de direitos humanos que observe, apenas, o reconhecimento de práticas culturais que marcam a tradição de uma comunidade. Nesse contexto, para que a cultura dos direitos humanos enfrente os desafios de seu tempo, deve ser fundada em bens e valores comuns a todos, independentemente de tempo e lugar, numa moralidade que se manifesta na substancialidade das conquistas civilizacionais de toda a humanidade, a base moral dos direitos humanos. (LUCAS, 2013)

A diversidade e a amplitude que os novos conceitos estão imprimindo, na sociedade mundial, torna necessário que os indivíduos sejam encarados de modo a acompanhar a velocidade das transformações mundiais desta realidade multicultural, da qual vem surgindo novos paradigmas em diversos campos sociais.

3 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES

Um tema que vem suscitando discussão acalorada ao longo dos anos diz respeito à proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, desde a década de 1960, acompanhando as questões populacionais e feministas.

Os direitos reprodutivos referem-se, resumidamente, ao direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos, bem como o direito a ter acesso à informação e aos meios para a tomada desta decisão. Já os direitos sexuais dizem respeito ao direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência.

(MATTAR, 2008, p. 61)

Os movimentos de mulheres, em especial o movimento feminista, foram precursores das demandas acerca dos direitos sexuais e reprodutivos, demandados, primeiramente, em consonância com a ideia de natalidade. Nota-se que, independentemente das formas de lutar pelos direitos femininos, os movimentos de mulheres e feministas tinham como princípios, se baseavam (e ainda baseiam) no direito à igualdade, à autonomia pessoal e à integridade corporal (CORRÊA; PETCHESKY, 1996).

O feminismo teve papel determinante por trazer a ideia de empoderamento das mulheres, principalmente pela garantia dos direitos sexuais, dando a perspectiva equitativa de que mulheres devem exercer sua sexualidade como desejarem, não estando obrigadas à reprodução, livres de discriminação e julgamento moral alheio.

Com a transformação social, a emancipação feminina suscitou – e continua suscitando – muitas discussões, envolvendo a igualdade almejada pelas mulheres, maternidade, determinismo biológico, direitos sexuais e reprodutivos, elementos essenciais para entender a premência de tratamento igual em sociedade, fazendo do movimento feminista a representação da defesa contra a redução da mulher ao homem (SCHWARZER, 1988).

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forme que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino (BEAVOIR, 2016).

Na cultura ocidental, quem nasce com um corpo de mulher deve se submeter ao código moral da maternidade (TIBURI, 2014). Ao longo da história as mulheres reivindicam a liberdade sobre o próprio corpo, buscando desconectar a razão de sua existência da maternidade, tida como um atributo sob o qual não é possível optar, sendo que o reconhecimento do direito de decisão foi um acontecimento importante no século XX (DEL RE, 2009).

O controle dos corpos é instituído pelo Estado, de acordo com sua discricionariedade, afirmando um poder que está na máquina estatal e não no indivíduo. A questão da sexualidade está mais ligada à sociedade, a qual regula e modela o sexo conforme a discricionariedade do Estado, principalmente no que diz respeito às taxas de natalidade e mortalidade (FOUCAULT, 1999).

A depender do contexto social, era conveniente que as mulheres tivessem mais filhos, devendo o Estado incentivar o aumento da natalidade, o que era comum após as grandes guerras, devido ao grande número de mortes – ou menos – devido ao aumento da densidade demográfica nos grandes centros, com posicionamento favorável a medidas contraceptivas. Tal pensamento não considera a individualidade e a sexualidade da mulher, pois a trata como um meio e não como um fim.

No caso das mulheres, estereótipos de gênero ainda agravam este cenário, no qual a completa domesticação, controle do desejo, da carne e do prazer, ou sua extirpação, são sempre enaltecidos.

Virgindade, pureza, recato, inocência, castidade, são adjetivos de carne nobre. Quando muito, o uso do útero e da carne dentro do lar/campo é permitido: ser mãe, esposa, fiel, honesta, zelosa, cuidadosa, significa cumprir com os requisitos de valoração moral passíveis de qualificar o corpo em carne como dignos da proteção do biopoder governamental. Do contrário, a carne sexualizada, a carne pública, a carne que se torna visível enquanto carne feminina, que manifesta seu desejo, se transforma em carne inútil, transgressora, e, portanto, punível, e enquanto tal, estuprável. (NIELSSON E WERMUTH, 2018)

Desde o início do século XX, asseverou a demanda por emancipação sexual e pela realização

de contraceptivos e demanda pela revisão da legislação punitiva ao aborto (SCHWARZFISCHER, 1988).

A maternidade deixou de ser o único horizonte e a não maternidade passou a ser uma realidade com o maior acesso a pílulas anticoncepcionais, nos anos 1960 (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009).

É neste contexto que se vislumbra a violência biopolítica exercida sobre o corpo como território, especialmente o corpo feminino, e perpetuada no limbo entre regra e exceção, e suas várias faces e estratégias de manifestação. Uma delas, realizada sob o manto da legalidade estatal é o seu controle reprodutivo. A redução da mulher a sua função reprodutiva, e seu manejo, conforme a disposição do poder soberano, revelam uma face cruel do biopoder, capaz de perpetuar sucessivas violação de direitos a corpos femininos já violados pelos poderes patriarcais (DELAJUSTINE E NIELSSON, 2019).

A sexualidade da mulher é controlada por muitas regras e o debate feminista “mostrou que o patriarcalismo, como cultura e como relações sociais, prendia a sexualidade da mulher no controle da sua capacidade reprodutiva e a família era o mecanismo por excelência desse controle” (PAOLI, 1985).

O movimento feminista trouxe conquistas importantes às mulheres como medidas de prevenção, educação sexual, métodos contraceptivos modernos (pílula do dia seguinte, DIU, entre outros), mas o reconhecimento pelo direito ao aborto tornou-se uma constante demanda.

O estabelecimento do paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos representou uma resposta aos movimentos feministas, pela libertação da violência patriarcal promovida contra os corpos femininos e pelo controle da sexualidade (WICHTERICH, 2015).

Tais direitos foram reconhecidos como direitos humanos, representando o resultado de reinvindicações dos movimentos feministas, estando relacionado a questões envolvendo família, filiação, concepção, entre outros costumes e práticas sociais (PEGORER, 2016).

A explicação tradicionalista concentra-se na capacidade reprodutiva feminina e vê a maternidade como a maior meta na vida das mulheres, definindo, assim, como desviantes mulheres que não se tornam mães. Considera-se a função materna uma necessidade da espécie, uma vez que as sociedades não teriam conseguido chegar à modernidade sem que a maioria das mulheres dedicasse toda a vida adulta a ter q0ue criar filhos. Assim, vê-se a divisão sexual do trabalho com base em diferenças biológicas como justa e funcional. (LERNER, 2019, p. 43)

A liberdade para exercer livremente a sexualidade e a reprodução é igualmente determinante e encontra-se na mesma dimensão da vida humana. Nesse sentido, reconhecer que a mulher tem autonomia sexual implica em assegurar que seu exercício seja desvinculado da reprodução (Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos, políticas públicas e desafios, 2009).

O direito à liberdade reprodutiva relaciona-se à autonomia corporal e integridade física, com fundamento na dignidade humana, liberdade, segurança e privacidade individual. O direito à auto-determinação reprodutiva implica no reconhecimento de que as mulheres podem realizar suas próprias escolhas sexuais e reprodutivas (Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos, políticas públicas e desafios, 2009).

Essas questões colocam em discussão a identidade e o papel da mulher no mundo, o espaço por ela ocupado, a dimensão de seus direitos e deveres, diante do necessário respeito à diversidade cultural e aos direitos humanos.

Devido aos sempre presentes neocolonialismo, racismo e imperialismo, os críticos pós-coloniais desafiam esse universalismo da agenda de direitos humanos relacionado às mulheres, por conta da ideia de hierarquia interna das mulheres no que diz respeito às conquistas dos direitos individuais e da autonomia. (WICHTERICH, 2015, p. 18)

A identidade da mulher precisa ser construída sobre um modelo dialógico e de reconhecimento, como parte da construção da identidade humana vital, com igual dignidade, considerando seus direitos sexuais e reprodutivos diante da diversidade cultural, pretendendo sua inclusão no universo da igualdade.

Por fim, faz-se necessário destacar o papel dos direitos humanos na proteção de direitos fundamentais da humanidade e seu alcance universal, o que também se justifica diante da amplitude da discussão proposta, tornando-se imprescindível colocá-las diante da interculturalidade a fim de buscar respostas que envolvam o respeito aos direitos humanos e à diversidade cultural, inclusive com relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Documentos relacionados