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E DIREITOS HUMANOS” NA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE FALA E RECONHECIMENTO

Alessandra Mainardi86 Fernanda Serrer87

RESUMO: A pesquisa investiga a relação existente entre o discurso filosófico e a construção da igualdade de gênero, ressaltando a constituição de um campo teórico fundado nos movimentos feministas, adequado para o surgimento e desenvolvimento de modos de pensar críticos e emancipatórios. Faz uma reflexão sobre a violência doméstica, que se desenvolve por meio de um processo silencioso, deixando marcas invisíveis em todos os envolvidos. Refere o estudo da mediação como técnica de resolução de conflitos e sua contribuição para a construção de novos espaços de fala e reconhecimento feminino, a partir da experiência vivenciada no Projeto de Extensão universitária “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí.

Palavras-chave: Mediação. Conflitos. Gênero. Diálogo. Extensão Universitária.

INTRODUÇÃO

Desde a Antiguidade, os discursos e elementos que constituem o patriarcado legitimam a ordem estabelecida e justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino, a fim de definir os indivíduos e seus papeis, seja em espaços públicos ou privados. São modos de pensar que manifestam e especificam o que é característico de um e outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos e as condutas próprias de cada um.

No século XVIII, a partir do Iluminismo, esse paradigma passou gradualmente a ser questionado por intermédio de movimentos sociais, que tiveram como protagonistas as mulheres na luta pelos seus direitos políticos. Ao longo dos séculos XX e XXI, autoras se dedicaram a uma desconstrução teórica da cisão e oposição entre o feminino e o masculino, embate teórico que se coloca no front da subordinação e opressão feminina, inaugurando novas oportunidades e significados para os movimentos feministas.

Embora a caminhada teórica de luta, denúncia e busca pelo reconhecimento do espaço de emancipação feminina tenha já andado a passos largos, ainda se faz muito presente a violência contra a mulher, fato que resulta em danos psicológicos, os quais são mais dificilmente identificados. Além disso, a cultura do silêncio, a vergonha e falta de diálogo entre vítima e agressor geram conflitos familiares, os quais são constituídos de ressentimentos e mágoas. Nesse sentido, se faz necessário o entendimento e uso de ferramentas comunicacionais que valorizem a escuta ativa e a empatia entre os conflitantes, valorizando o diálogo e a resolução pacífica dos conflitos.

Os novos olhares teóricos e movimentos sociais que contemporaneamente colorem o feminino, materializam-se em representações que passam a ser internalizadas e externalizadas no plano político, cultural e social, possibilitando a criação e o desenvolvimento de uma série de dispositivos

86 Aluna do Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Bolsista PIBEX do Projeto de Extensão Universitária “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí. E-mail: alessandra.

mainardi@sou.unijui.edu.br.

87 Professora do Curso de Graduação em Direito da Unijuí Mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos da Unijuí. Extensionista no Projeto de Extensão Universitária “Conflitos Sociais e Direitos Humanos:

alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí. E-mail: Fernanda.serrer@unijui.edu.br.

e métodos que buscam a igualdade de gênero por meio do reconhecimento de direitos, bem como a construção de espaços de emancipação feminina, dentre os quais está a mediação de conflitos que é desenvolvida pelo Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, vinculada ao Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.

Sendo assim, esta pesquisa tem por objetivo analisar e descrever a relação existente entre o patriarcado, os movimentos feministas e o espaço de fala da mulher na contemporaneidade, por meio das ações desenvolvidas pelo Projeto de Extensão, destacando de que maneira estas conquistas femininas e os métodos alternativos de enfrentamento de conflitos contribuem para a formação e desenvolvimento da sociedade.

1 O FEMININO DA ANTIGUIDADE À IDADE MÉDIA

Durante milênios, a estrutura de organização social predominante no mundo ocidental foi o entendimento antigo e medieval de uma sociedade marcada pela desigualdade, com espaços distribuídos de acordo com privilégios organizados no âmbito das relações sociais. Essa estrutura teve como justificativa diversas teorias, as quais estabeleceram a divisão masculino e feminino, com também seus papeis e seu status. Apesar do tempo passado, é perceptível que ainda hoje muitos dos pensamentos filosóficos da antiguidade sobre a mulher configuram o inconsciente da filosofia política ocidental.

É dos conflitos da ordem social e cultural da pólis que herdamos uma variedade de tradições que ainda hoje nos definem. A pólis grega identificou desde cedo a presença de uma demanda significativa por justiça, apresentada pelos trágicos e posteriormente analisada e fundamentada pela filosofia. A ontologia é uma das marcas principais da tradição clássica, a qual objetiva compreender e categorizar o “ser”, isto significa, apreender as coisas colocadas no mundo e defini-las a partir das suas essências.

Há, neste sentido, o que Farago (2004, p. 2) observa como “um elo extremamente estreito” entre as dimensões ética, religiosa, jurídica e política da justiça e do direito.

Dessa forma, Platão e Aristóteles protagonizaram duas metodologias em relação às mulheres.

Na perspectiva de Aristóteles, “as diferenças biológicas são a causa fundamental das variações nas naturezas e capacidades das mulheres” (PINTO, 2010). Por outro lado, para Platão as diferenças corpóreas são menosprezadas, uma vez que toda a sua doutrina se centra na relevância da alma, o que reduz a importância do debate acerca das diferenças biológicas. Embora sob prismas diferentes, ambos concordam em um princípio fundamental, o de que “o masculino é a forma verdadeira de humanidade” (TUANA, 1992).

Já a Idade Média, identificada como o período escasso da razão, permitiu a emergência de líderes político-religiosas do sexo feminino, fundadoras de ordens, que se manifestavam contra autoridades civis e eclesiásticas. Como resposta às críticas tecidas ao sistema, as mulheres tinham suas práticas reprovadas pela comunidade e eram frequentemente executadas em eventos públicos após terem sido condenadas como bruxas ou hereges.

Na ausência de uma unidade, afirma Richards (1993, p. 13) é a “perpétua oscilação entre ‘extremos’

que pode ser considerada a ‘característica fundamental da vida medieval’”. Era uma sociedade de explosões súbitas e violentas, associadas a crise demográfica ou a mudança social.

A relação da filosofia medieval com o corpo, o sexo e o feminino, é típica do Cristianismo. A cristandade foi uma religião negativa quanto ao sexo, encarando como uma espécie de mal necessário, indispensável para a reprodução humana, mas que perturbava a busca da perfeição espiritual, que é, por definição, transcendente à carne. Sendo assim, os ensinamentos institucionalizados pela Igreja Católica exaltam o celibato e a virgindade como as mais elevadas formas de vida (LE GOFF; TRUONG, 2006).

Os teólogos medievais chegaram a enfatizar que era um pecado mortal fazer amor com a esposa unicamente por prazer. “Um homem que está ardentemente apaixonado por sua esposa é um adúltero”, disse São Jerônimo (apud RICHARDS, 1993. p. 34). A esposa não poderia reivindicar seu corpo como de sua propriedade, este pertencia ao marido e vice-versa, afinal, “os corpos das pessoas não lhes pertenciam” (RICHARDS, 1993, p. 36).

Além disso, os teólogos consideravam o controle da natalidade como um pecado grave. Se a finalidade do sexo era a procriação, a contracepção era considerada uma falta mortal. Nesta, como em

tantas outras áreas, os ensinamentos de Agostinho modelaram o pensamento medieval.

A Idade Média se tornou uma época de grande abstinência, tristeza e aborrecimento. Todavia, nessas trevas, apesar da Igreja, mulheres conservaram a chama da esperança e resistência ao aniquilamento moral e corporal do feminino proporcionado pela filosofia medieval. Foi, deste modo, que essa chama se perpetuou até a Modernidade que se aproximava.

2 RAZÃO E ESTADO DE DIREITO: MULHERES E A IGUALDADE PERANTE A LEI

A Modernidade traz a noção de um sujeito individual e abstrato que passa a ocupar o espaço central da filosofia dentro da tradição moderna, modificando suas pretensões básicas, almejando não mais a essência das coisas, mas a definição de princípios do conhecimento racional que estarão na consciência de cada indivíduo autônomo.

A partir disso, no Século das Luzes, o sujeito passa a ser guiado pela razão, agindo de maneira justa e livre, deixando de lado possíveis influências provenientes de um sacerdote ou soberano absoluto e configurando uma verdadeira revolução de espírito. É do Iluminismo que nasce o sujeito pensante, racional e liberal da modernidade. De tal forma que o liberalismo, feminismo e direitos humanos são conceitos modernos vinculados com a entrada da sociedade nesta nova etapa.

Bobbio (1997, p. 97), define a liberdade como uma “qualificação da vontade”, a saber, “a situação em que um sujeito tem a possibilidade de orientar sua vontade para um objetivo, de tomar decisões sem se ver determinado pela vontade dos outros”.

A partir disso, o liberalismo realizou uma notável obra institucional conhecida como Estado de Direito, um modelo de Estado constitucional representativo, sustentado pelo reconhecimento de uma tábua de direitos e liberdades básicas e pelo estabelecimento da separação de poderes para que prospere a liberdade do indivíduo e seja garantida sua segurança pessoal.

Nesta época, a igualdade estava intrinsecamente ligada com a sua proclamação como norma jurídica, constituindo-se, basicamente, como atributo jurídico conferido aos indivíduos. Acerca do conceito de igualdade formal, tão caro ao modelo de Estado de Direito, afirma Joaquim Barbosa Gomes (apud LOBATO; SANTOS, 2003, p. 18):

O princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e intoleráveis.

Desse modo, a igualdade formal refere-se à preocupação de um tratamento igualitário sem aferições sobre qualidades ou atributos pessoais dos destinatários da norma. Sendo assim, resulta da perspectiva política do Estado de Direito, que é fundado na lei igual para todos. Logo, todos são iguais perante a lei como forma de garantia dos direitos fundamentais estabelecidos por este Estado de Direito.

É no período iluminista que se encontra o berço do feminismo, a era dos direitos BOBBIO, 1992).

O feminismo surge com princípios reivindicados pelas mulheres como: a universalidade da razão, a emancipação frente aos preconceitos, a ampliação do princípio de igualdade e a ideia do progresso.

Ademais, se faz importante enfatizar que a reivindicação, a igualdade e o Iluminismo mantêm uma intensa união, pois a reivindicação é possível graças à existência prévia das ideias iluministas liberais que buscavam a igualdade entre homens e mulheres.

Nesse sentido, percorrer este intenso caminho prático-teórico desenvolvido ao longo do século XX demonstra a riqueza e a pluralidade da construção teórica da justiça sob o enfoque do gênero, conhecidas como as ondas feministas.

3 A MULHER NAS DIFERENTES PERSPECTIVAS INAUGURADAS PELAS ONDAS DO MOVIMENTO FEMINISTA

O feminismo chega ao século XX vivenciando a primeira onda feminista. Tal onda se apresenta

pela igualdade de direitos civis, educativos e políticos.

Com relação ao Brasil, afirma Céli Jardim Pinto (2010, p. 15) “[...] a primeira onda do feminismo também se manifestou mais publicamente por meio da luta pelo voto”. As sufragistas brasileiras de classe média e de enorme influência política, foram lideradas por Bertha Lutz, bióloga, cientista de importância, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto. Foi uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em 1927 pediu a aprovação do Projeto de Lei, de autoria do Senador Juvenal Larmartine, por meio de um abaixo assinado, que dava o direito de voto às mulheres. Direito que foi conquistado em 1932, quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral Brasileiro (PINTO, 2010, p. 16).

A busca pelo sufrágio se dá pelo reconhecimento, participação, princípios de liberdade e igualdade de todas as pessoas enquanto indivíduos. O movimento colaborou para a transformação da condição da mulher na sociedade industrializada ou em industrialização. Sendo assim, o alcance do sufrágio feminino é um marco de extrema importância na História do feminismo, na luta contra o sexismo e na busca pela igualdade de gênero.

Por outro lado, conforme aponta Céli Pinto (2010), havia o grupo de operárias de ideologia anarquista: reunidas nos movimentos União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas, elas reivindicavam por melhores condições de trabalho nos chãos de fábrica, como salários equiparáveis aos dos homens e jornadas menores das tarefas.

Os anos dourados do pós-segunda Guerra tornaram-se anos de inclusão e conformidade, mas em seu final, foram seguidos pela revolução cultural do fim dos anos 1960 e 1970, que marcou a segunda onda feminista, com a ascensão do individualismo, da diversidade e a desconstrução dos valores até então aceitos nesse período (HOBSBAWM, 1995).

A revolução cultural de fins do século XX pode assim ser mais entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais. Pois essas texturas consistiam não apenas nas relações de fato entre seres humanos e suas formas de organização, mas também nos modelos gerais dessas relações e os padrões esperados de comportamento das pessoas umas com as outras; seus papéis eram prescritos, embora nem sempre escritos (HOBSBAWM, 1995, p. 261).

Diante disso, um mundo de pluralidade, debate e de diversidade se instalava. Neste cenário, o movimento feminista adquire importância fundamental, uma vez que a luta por igualdade, dignidade e direitos das mulheres constituiu uma das revoluções culturais mais importantes do período (BOBBIO, 1992). Além disso, com a ascensão do movimento feminista, as mulheres, agora consideradas sujeitos de sua própria história, se dedicaram a uma reconstrução teórica diante da sua trajetória de subordinação.

A publicação, em 1945 de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, colaborou para o desenvolvimento da segunda onda feminista, cujo mérito foi a evidência de que o feminismo não se identificava exclusivamente com a conquista de alguns direitos jurídicos, mas que ainda tinha muito a dizer e fazer.

Nesse contexto, Beauvoir (1980, p. 9) nega a existência do “feminino”, afirmando a complexa origem cultural e social do que é ser uma mulher, afinal, “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”, mas “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre macho e o castrado que qualificam de feminismo. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro”. (BEAUVOIR, 1980, p. 9, grifo da autora).

Por esta razão, esta obra empreende o formato da construção de uma teoria explicativa sobre a subordinação das mulheres, revitalizando princípios iluministas por intermédio de seu existencialismo (VALCÁRCEL, 2001). A obra reflete o caminho percorrido e as conquistas obtidas, sua novidade radica na inauguração de uma nova maneira de fazer feminista, na qual o feminismo aparece como uma teoria explicativa da organização filosófica e social do mundo. E muito além disso, Beauvoir aborda a partir da história, psicologia, biologia e da antropologia as causas da subordinação.

O eixo temático do livro se dá na ideia de alteridade, que está presente em todas as culturas, e implica sempre a presença de dois conceitos recíprocos: o outro e o próprio. No entanto, quando aplicada a relação entre homens e mulheres, não há reciprocidade e simetria, mas sim dois polos opostos em que a um deles, o homem, é definido como a alteridade pura, como único essencial (BEAUVOIR, 1980).

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