Arq Neuropsiquiat r 2005;63(3-B):874-877
S e rviço d e Doen ças Neurom usculares do Ho sp it al de Clínicas da Universidad e Federal do Paraná Curit iba PR, Brasil (UFPR):1M é d i c o Resi den t e de Neu ro f isio l og ia Clín ica;2M éd i co Resid en t e d e Neu rolo gia;3M éd ica Neu ro f i sio l og i st a Clínica;4P rof esso ra A dju nt a; 5Prof essor Tit ular.
Recebido 22 Novem bro 2004, recebido na f orm a f inal 10 M arço 2005. Aceit o 4 M aio 2005
Dra Rosana Herminia Scola - Serviço de Doenças Neuro m u s c u l a res / Hospital de Clínicas da UFPR - Rua General Carn e i ro181/30andar 80060-900 Curitiba PR - Brasil. E-mail: scola@hc.ufpr.br
ESTUDO DA CONDUÇÃO NERVOSA
MOTORA NA DOENÇA DE McARDLE
Relat o de caso
Paulo José Lorenzoni
1, Marcos Cristiano Lange
2, Cláudia Suely Kamoi Kay
3,
Rosana Herminia Scola
4, Lineu César Werneck
5RESUM O - A doença de M cA rdle (glicogenose t ipo V) é miopat ia met abólica com sintomas de int olerância ao exercício, causados pela def iciência da enzima miof osf orilase. Nesses pacient es, o est udo da condução n e rvosa mot ora após período de esf orço muscular máximo ou ao est ímulo repet it ivo pode revelar achados caract eríst icos da doença. Descrevemos o caso de um homem de 37 anos com sint omas de int olerância aos e x e rcícios, f adiga muscular e cãibras no início da at ividade f ísica com a presença do f enômeno de “ second w ind” . O est udo da condução nervosa m ot ora apresent ava redução na ampl it ude do pot enci al de ação m uscular co mp ost o após esf or ço d e 30 e 90 segund os em nervos m edi ano, ulnar e f ib ular pr of und o e d e c remento após 200 est ímulos a 40 Hz em nervo fibular prof undo. A eletromiograf ia de agulha apre s e n t a v a padrão miopát ico e durant e o exercício isquêmico não se evidenciou silêncio elét rico. Discut imos as carac-t eríscarac-t icas elecarac-t rof isiológicas enf acarac-t izando a imporcarac-t ância do escarac-t udo da condução nervosa mocarac-t ora e carac-t escarac-t e de est imulação repet it iva nos pacient es com suspeit a de miopat ia met abólica.
PA L AV R A S - C H AVE: doença de M cArdle, glicogenose t ipo V, potencial de ação muscular compost o, condução nervosa mot ora, t est e de est imulação repet it iva.
Motor nerve conduction study in McArdle disease: case report
A BSTRA CT - M cArdle disease (glycogenosis t ype V) is a met abolic myopat hy w it h sympt oms of exer cise in-t olerance caused by def iciency of in-t he enzyme myophosphorylase. In in-t hese pain-t ienin-t s, in-t he moin-t or nerve con-duct ion st udies af t er a short period of maximal volunt ar y muscle cont ract ion or repet it ive st imulat ion re-veals charact erist ic f indings of the disease. A 37-years-old man present ed sympt oms of exercise int olerance, muscular fat igue and cramps in t he beginning of t he physical activit y w ith “ second w ind” phenomenon. The mot or nerve conduct ion st udies af t er a volunt ary cont ract ion of 30 and 90 seconds pr esent ed decrease in t he amplit ude of t he compound muscle act ion pot ent ial in median, ulnar and deep peroneal nerves; and d e c r em ent af t er 200 st imulat ion at t he 40 Hz in deep peroneal nerve. The elect romyography pre s e n t e d myopat hic pat t ern and during t he ischemic exercise elect ric silence w as not proven. The charact erist ic of elect rophysiological st udies are discussed w it h emphasis at t he import ance of t he mot or nerve conduct ion st udies in t he pat ient s w it h suspicion of met abolic myopat hy.
KEY W ORDS: M cArdle disease, glycogenosis t ype V, compound muscle act ion pot ent ial, mot or nerve con-duct ion, repet it ive nerve st imulat ion t est .
A d oença de M cArdle (DM ) o u glicogenose do
t ipo V é miopat ia met abólica aut ossômica re c e s s i v a
com sintomas de intolerância ao exercício causados
p el a d ef i ciên ci a d a en zi m a m i o f o sf o r i lase, q u e
m et aboliza o g licogênio p ara cont ração m uscular
durant e o exerc í c i o
1 , 2. O diagnóst ico é conf irm a d o
pela biópsia m uscular e est udo genét ico, porém o
q u a d ro clínico associado à dosagem seriada do
ácd o lát ico e as alt erações ácdo est uácdo eletro f i s i o l ó g
i-co, durant e o exercício isquêmii-co, f azem a suspeit a
d i a g n ó s t i c a
1. O est udo d a co ndução nervosa m o
Arq Neuropsiquiat r 2005;63(3-B) 875
Devido aos poucos relat os da lit erat ura enf at
i-zando os est udos elet rof isiológicos da DM
descre-vem os o present e caso.
CASO
Homem de 37 anos com sint omas de int olerância aos e x e r cícios, f adiga m uscular e cãibras no início da at ivi-d aivi-d e f ísica ivi-d esivi-d e o s 12 an o s ivi-d e iivi-d aivi-d e. A o s 35 an o s passou a apresent ar aum ent o da f reqüência, duração e int ensi dade da f adi ga m uscul ar e cãibras associ ados a episódios re c o rrent es de alteração na coloração da urina (escurecim ent o) após esf orço f ísico, com ocasional m e-lhora dos sint om as com a perm anência do esf orço f ísico
(“ second w ind” ). Os pais são consangüíneos (prim os em segundo grau) e negavam casos f am i liares de doenças n e u r o m u s c u l a res. Negava uso de m edicam ent os, vícios ou doença crônica.
Ao exam e neurológico t rof ism o, t ônus e f orça m us-cular encont ravam-se pre s e rvados em todos os músculos, porém , durant e esf orço f ísico ou isquêm ico, apre s e n t a-vam cont ração dolorosa sust ent ada do grupo m uscular ut ilizado. O rest ant e do exam e neurológico era norm a l . A invest igação m ost rou hem ogram a, plaquet as, sódio, p ot ássi o , cálci o, m agn ési o , f ósf oro , creat i n ina, uréia, f o sf at ase alcalin a, gam a-GT, t ransa m inases glut âm ica pirúvica e oxalacet ica, bilirrubina t ot al e f rações, albu-m ina, coagulograalbu-m a, velocidade de healbu-m ossedialbu-m ent
a-Fig 2. Estudo de condução nervosa motora em nervo mediano com captação em músculo abdutor curto do polegar ao re p o u s o (A) e após esforço voluntário de 30 (B) e 90 segundos (C) mos -trando decremento de 39,3% e 87,63%, respectivamente, da amplitude do PAMC.
Fig 1. Estudo de condução nervosa motora em nervo fibular p ro -fundo com captação em músculo extensor curto dos dedos ao repouso (A) e após esforço voluntário de 30 (B) e 90 segundos (C) mostrando decremento de 46,7% e 70,3%, re s p e c t i v a m e n t e , da amplitude do PAMC.
876 Arq Neuropsiquiat r 2005;63(3-B)
ção , p arci al de u rin a e f un ção t i reoi deana n orm ais. A creat inof osf oquinase encont rava-se 12 vezes acim a do valor de ref erência (2095 U/L; norm al < 170 U/L) com a u-m ent o de 27 vezes após esf orço vol unt ário (4660 U/L). Ao repouso o acido lát ico sérico era de 11,2 m g/dl (nor-mal: < 22) e durant e esf orço isquêmico não houve aum e n-t o signif ican-t ivo (10,5 e 13,0 m g/dl após 1 e 10 m inun-t os). O est udo elet rof isiológico m ost rou condução nerv o s a m ot ora com redução na am plitude do pot encial de ação m uscular com post o (PAM C) após esf orço de 30 e 90 se-gu ndos em nervo s m edi an o, u ln ar e f ib ular pro f u n d o (Figs 1 e 2/Tabela) e decremento de 49,1% após 200 est í-m ulos coí-m freqüência de 40 Hz eí-m nervo fibular pro f u n-do (Fig 3). O est un-do de condução nervosa sensit iva m os-t rou-se nor m al. A eleos-t rom iograf ia de agulha (EM G) ao repouso f oi norm al, ao esf orço volunt ário m ost r ou pa-drão m iopát ico caract erizado por duração e am plit ude reduzidas, aum ent o do re c r ut am ent o e do núm ero de p o t en ci ais d e u n i d ad e m o t o ra p o l if ási cos cu r t o s em m úscul os biceps braquial e del t óide direit os. O exam e durant e o exercício isquêm i co não evi denciou si lêncio elét rico.
A biópsia m uscular com cort es congelados, nas colo-rações pela hemat oxilina e eosina (HE), t ricrom o de Go-m ori Go-m odificado, oil red O, PAS, cresil violeta e sirius re d , m o s t rou f ibras com discret a variação no diâmet ro, gran-de núm ero gran-de f ibras arredondadas, raras at róf icas arre-dondadas, núcleos m últ iplos e cent rais em poucas, raras com necrose e f agocit ose e vacúolos sub-sarcolem ais e m ais rarament e centrais que são “ PAS posit ivos” , compa-t íveis com m iopacompa-t ia vacuolar por acúm ulo do glicogênio m u scu lar (Fi g 4). A s reaçõ es h i st o q u ím icas (AT P a s e s , NADH, esterase, miofosforilase, fosf atase acida, f osf atase alcalina, desi drogenase succi nica, cit ocrom o C oxidase e adenilat o deam inase) revelaram f ibras t ipo I e II atróf icas e ausência t ot al da enzim a m ioatróf osatróf orilase, conatróf ir -m ando o diagnóst ico de Doença de M cAr dle (Fig 4).
DISCUSSÃO
Desde a descrição inicial da DM em 1951
2a
elet r o n e u ro m i o r af ia elet em sid o u elet il izad a n a i n veselet i
g ação clín ica d e p acien t es co m su sp eit a d e m io
-p at ia m et ab ólica. As alt erações n a EM G d u rant e
Fig 4. Biopsia de músculo biceps braquial demonstrando: (A): presença de vacúolos com acúmulo sub-sarcolemal de glicogênio (setas) (HE/400X). (B): reação histoquímica com ausência completa da enzima miofosforilase (400X). (C): reação histoquímica normal para enzima miofosforilase (400X).
Tabela. Estudo da condução nervosa motora ao repouso e após esforço.
Am plit ude do PAM C (µV)
Nervo Repouso Esf orço de 30 segundos Esf orço de 90 segundos
Facial 2930 2530
-Acessório espinhal 16200 12300 8330
M ediano 8130 4930 1000
Ulnar 24000 19000 16300
Arq Neuropsiquiat r 2005;63(3-B) 877
o rep o uso, esf orço volunt ário , esf orço isquêm ico
e ep isódios d e cont ração m uscular, associadas aos
achados clínicos e laborat oriais, podem ser
caracte-ríst icas da doença.
Os achados EM G são variáveis dependendo do
m om ento em que é realizado o exame e da
severi-dade da doença, podendo ser normal em pacient es
com pouco t empo de evolução. Durant e o re p o u s o ,
alg uns pacien t es podem apresent ar pot enciais
p ont âneos com o f ibrilações, ondas p osit ivas, d
es-c a rgas repet it ivas es-complexas e miot ônies-cas
1 , 3 , 6 - 8. Alt
e-rações caract eríst icas d as m iop at ias, com o pot
en-ciais d e ação d a u n id ad e m o t o r a co m d u r ação e
am plit u de dim inuídas, aument o do re c ru t a m e n t o
e do núm ero de pot enciais polif ásicos curt os, são
en co n t r ad as so m en t e n o s p acien t es co m l o n g o
t em p o d e evo lu ção
1. No en t an t o , a p r esen ça d e
alt erações no recrut am ent o e na at ividade de
in-serção durant e a cont ração muscular ou o exerc í c i o
isq uêm ico , co m o o silên cio elét rico , são achad os
da EM G caract eríst icos dest a doença
1 , 2 , 4 - 6. Contudo,
alguns pacient es não apresent am o padrão
miopá-t ico associad o a silêncio elémiopá-t rico duranmiopá-t e a conmiopá-t
rção muscular, podendo est ar presente apenas o p
a-d r ão m io p át ico , co m o o co r r eu em n o sso caso
4 , 8.
Nesses p acien t es o est u d o d a co n d u ção n erv o s a
m ot ora t em im port ant e d est aque na invest igação
diagnóst ica.
Nos pacien t es co m DM o est udo da cond ução
n e rvosa mot ora pode most rar-se alt erado após c u rt o
período de esf orço muscular voluntário ou est
ímu-los rep et it ivo s com alt a f r e q ü e n c i a
3 - 6. Na m aio ria
d o s p acien t es com DM a am plit ude do p o t encial
d e ação m uscular com post o (PAM C), após esf orço
d e 30 o u 90 segundos, d emo nst ra sig nif icat iva
re-dução da amplit ude que depois de um período de
repouso re t o rna ao norm a l
1 , 3 , 5. Em nosso pacien t e
o b s e rvo u -se r ed u ção n a am p lit u d e do PA M C em
t odos os nervos est udados (Tabela), maior nos
ner-vos m ediano e f ibular prof undo após esf orço
vo-l u n t ár io d e 30 e 90 seg u n d o s, r e s p e c t i v a m e n t e ,
com pat ível com o diagnóst ico de DM (Figs 1 e 2).
Com relação à est im ulação nervosa repet it iva,
al-guns pacient es com DM m ost ram progressivo
de-clínio na amplit ude do PAM C quando est im ulados
com f reqüência acima de 5 Hz, semelhante ao
mos-t rado em nosso caso
1 , 4 , 5. Est e decrement o na
ampli-t ude do PAM C ao esampli-t ím ulo repeampli-t iampli-t ivo ainda pode
ser exacerbado ap ós período de cont ração vo lu
n-t ária m áxim a
1 , 3. Na m aioria d est es pacient es co m
DM a est im ulação repet it iva com baixas f
reqüên-cias (2-4Hz) não produz decrem ent o
6.
Dessa f orma, os est udos neurofisiológicos
mos-t ram que a f isiopamos-t ologia da DM mos-t ambém esmos-t á re l
a-cionada com um a d isf unção n a excit abilidad e d a
m em b r an a d a f ib r a m u scu l ar d u r an t e a co n t r
a-ç ã o
1 , 3 , 8 , 9. Haller et al.
9encont raram concent rações
r eduzidas da bom ba de sódio-pot ássio (Na
+K
+-AT
Pase) na membrana da f ibra muscular de pacientes
co m DM , p r ovocando au m en t o d a co n cen t ração
ext racelular do pot ássio. Isso reduz a excit abilidade
d a m em b r an a d u r an t e o p er ío d o d e co n t r ação
m u s c u l a r, exp licando a dim inuição d o PAM C após
esf orço e ao est ím ulo repet it ivo
9,10. O m ecanism o
responsável pela redução da Na
+K
+- ATPase nos
pa-ci en t es co m DM n ão est á t o t alm en t e elu pa-cid ad o ,
m as pode est ar relacionado com um inadequado
suprimento de ATP proveniente da glicólise para a
bom ba de Na
+K
+da f ibra m uscular
10.
Dian t e disso , enf atizam os a im port ância do
es-t udo d a condução nervosa m oes-t ora após esf orço e
d a est im ulação repet it iva com alt a f reqüência
as-sociada a EM G na invest igação diagnóst ica dos
pa-cien t es co m su speit a d e m io p at ia m et ab ó lica do
t ipo DM .
REFERÊNCIAS
1. Amato AA, Dumitru D. Hereditary myopathies. In Dumitru D, A m a t o AA, Zwarts MJ. Electrodiagnostic medicine, second edition. Phila-delphia: Hanley & Belfus. 2002:1333-1335.
2. M c A rdle B. Myophaty due to a defect in muscle glycogen bre a k d o w n . Clin Sci 1951;10:13.
3. Brandt NJ, Buchthal F, Ebbesen F, Kamieniecka Z, Krarup C. Post-tetanic mechanical tension and evoked action potentials in McArdle’s disease. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1977;40:920-925.
.4 Cochrane P, Hughes RR, Buxton PH, Yorke RA. Myophosphorylase deficiency (McArdle’s disease) in two interrelated families. J Neuro l Neurosurg Psychiatry 1973;36:217-224.
5. Dyken ML, Smith DM, Peake RL. An electromyographic diagnostic s c reening test in McArdle’s disease and a case report. Neurology 1967; 17:45-50.
6 . Pourmand R, Sanders DB, Corwin HM. Late-onset McArdle’s disease with unusual electromyographic findings. A rch Neurol 1983;40:374-377. 7. Felice KJ, Schneebaum AB, Jones HR. McArdle’s disease with late-onset symptoms: case report and review of the literature. J Neurol Neuro s u rg Psychiatry 1992;55:407-408.
8 . G ruener R, McArdle B, Ryman BE, Weller RO. Contracture of phosphorylase deficient muscle. J Neurol Neuro s u rg Psychiatry 1968;31:268-283. 9. Haller RG, Clausen T, Vissing J. Reduced levels of skeletal muscle
Na+K+-ATPase in McArdle disease. Neurology 1998;50:37-40.
10. Clausen T. Na+- K+pump regulation and skeletal muscle contractility.