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DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR

MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR

MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Professor Eduardo Rodrigues da Cruz

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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SIMÕES, Roberto Serafim, O papel dos klesas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. São Paulo, 2015. 175f.

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, meu irmão

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Cruz, pela sua dedicação e parcimônia.

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RESUMO. O período antigo do ioga emerge em meio a uma sociedade indiana estratificada e influenciado por religiões como o samkhya e o hinduísmo bramânico, sistematizando-se como um dársana ortodoxo hinduísta por meio da escritura antiga Ioga Sutras (IS) alguns séculos antes de era cristã. O IS explica tanto as causas do sofrimento humano quanto a promessa de uma boa vida iogue, baseando-se na teoria comportamental dos klesas (apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) como nefastos a evolução espiritual. Um caminho óctuplo ou asthanga ioga (AI) edifica-se a partir dele como a proposta ioguica de salvação da alma. O AI visa, por meio de condutas éticas, práticas rituais corporais e a experiência mística do samadhi atenuar os klesas em busca da união com deus/Isvara. Na idade média indiano, entre os séculos X-XV d.C., esse sistema de crenças ioguico encontra a religiosidade tântrica, jainista e budista elevando o valor do corpo em detrimento a outros aspectos doutrinais do IS.

A fase moderna do ioga, no entanto, está sendo erigida por influência de um novo contexto social-religioso. Atualmente, muito mais do que brâmanes e swamis, o ioga busca a sua legitimidade como caminho espiritual sob a égide da racionalidade científica e de novos movimentos religiosos do ocidente. Nesse processo, o ioga ressignifica a sua linguagem mística que circulava entre os ashrams e florestas indianos dos tempos antigo e medieval, para um público que enfrenta os desafios estressantes de se viver nos grandes centros urbanos ocidentais, sobretudo, uma sociedade do consumo, secular e privatizada religiosamente. Sabe-se que nos tempos atuais o ioga ressignifica a sua fisiologia metafísica à luz da ciência biomédica, desconfio que a teoria dos klesas, pode estar passando por uma reforma religiosa também.

Para buscar compreender essas possíveis transformações soteriológicas do ioga atual, saí a campo e conduzi de forma semiestruturada entrevistas com dez iogues e três cientistas brasileiros da área psicobiológica que investigam o sistema de atos ioguicos como terapia e cura. Os dados revelaram uma percepção de clivagem no ioga moderno, entre pertencer a uma terapêutica Nova Era ou mais uma técnica biomédica ocidental. A partir dessa conjuntura novas crenças despontaram para legitimar o discurso do ioga frente ao panorama social-religioso em que ele vive atualmente. Mais do que simples ressignificação simbólica, a soteriologia ioguica moderna está passado hoje por um processo de transformação soteriológica. As principais transformações que se destacaram, estão: 1) na elevação da concepção de estresse ao nível de klesa ou obstáculo espiritual; e 2) o relaxamento, antagônico ao estresse-klesa, conquista natureza mística do samadhi; e 3) por consequência, a salvação/libertação dos klesas-estresse adquiri substância “empírica” de um estado espiritual imutável de não-klesas-estresse ou de uma espécie de “homeostase divina”.

Conclui-se que a racionalidade científica ao invés de promover o desencantamento religioso do ioga, legitima-o como um novo sistema de crenças e produz novos bens de salvação (estresse-klesa, relaxamento-samadhi e homeostase-kaivalya). A associação dos benefícios para a saúde das práticas do ioga defendidos e propalados pela fisiologia biomédica associado ao desassossego dos centros urbanos ocidentais, pode ter enfraquecido a teoria comportamental dos klesas como causa essencial do sofrimento humano.

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ABSTRACT. The ancient yoga period emerges amid a stratified Indian society and influenced by religions like samkhya and the Brahmanical Hinduism if systematizing it as an orthodox Hindu darśana through ancient scripture Yoga Sutras (IS) some centuries before the Christian era. The IS explains both the causes of human suffering and the promise of a good yogi life, based on the behavioral theory of klesas (attachment, aversion, fear of death, pride and ignorance) as adverse spiritual evolution. An eightfold path or asthanga yoga (AI) is built-from it as the yogic proposal for salvation of the soul. The AI aims, through ethical conduct, practices corporal rituals and mystical experience of samadhi mitigate klesas seeking union with God/Isvara. On average Indian age, between X-XV centuries AD, this system of yogic beliefs is the Tantric religiosity, Jain and Buddhist raising the body's value over the other doctrinal aspects of IS.

The modern phase of yoga, however, is being erected under the influence of a new social - religious context . Currently, more than Brahmins and swamis , yoga seeks its legitimacy as spiritual path under the aegis of scientific rationality and new religious movements in the West . In this process , the yoga reframes its mystical language circulating among ashrams and Indian forests of ancient and medieval times to an audience facing the stressful challenges of living in large Western cities, above all, a society of consumption, secular and privatized religiously. It is known that nowadays the yoga reframes its metaphysical physiology in the light of biomedical science , I suspect that the theory of klesas , may be going through a religious reform as well. In order to understand these possible soteriological transformation of the current yoga, I led 13 semi-structured interviews with ten way yogis and three Brazilian scientists psychobiological area investigating the yogic system acts as therapy and healing. The data revealed a cleavage perception in the modern yoga, between belonging to a therapeutic New Age or more a Western biomedical technique. From this juncture new beliefs emerged to legitimize the discourse yoga against the social-religious situation in which it now lives. More than just symbolic reframing, modern yogic soteriology is passed today by a salvific transformation process. The main changes that stood out are: 1) the elevation of design stress level of klesa or spiritual obstacle; and 2) the relaxation antagonistic to stress-klesa, achievement mystical nature of samadhi; and 3) consequently, salvation/liberation of klesas-stress acquire substance "empirical" an unchanging spiritual state of no stress or a kind of "divine homeostasis." It is concluded that scientific rationality rather than promote religious yoga disenchantment, it legitimizes it as a new system of beliefs and produces new goods of salvation (stress-klesa, relaxation-samadhi and homeostasis-kaivalya) . The association of the health benefits of yoga practices defended and propagated by biomedical physiology associated with the restlessness of the western urban centers , may have weakened the behavioral theory of klesas as essential cause of human suffering.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 11

Capitulo 1. O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA ANTIGO DESCRITO NO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO ... 25

1.1. Período pré-clássico do ioga... 25

1.2. Período clássico do ioga... 27

1.2.1. Apresentação da proposta de salvação do ioga clássico... 29

1.3. Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga... 31

1.3.1. O inicio da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir do ayurveda.32 1.4. O surgimento do ioga moderno... 38

1.4.1. A Renascença Indiana... 38

1.4.2. Ioga moderno... 39

Capitulo 2. OS KLESAS NO MUNDO MODERNO...44

2.1. Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia... 44

2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia... 47

2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga... 52

2.2. Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções... 56

2.3. Klesa e estresse... 61

2.3.1. Estresse biológico... 63

2.3.2. Relaxamento... 65

2.3.3. Prana é real... 68

2.4. Profanação do ioga... 69

Capitulo 3 : IOGA NO BRASIL...72

3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana... 72

3.1.1. Fase místico-esotérico... 74

3.1.2. Fase visitando à Índia... 76

3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos... 78

3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano... 80

3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil.... 83

3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas... 86

Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS... 90

4.1. Considerações preliminares... 90

4.2. O universo da pesquisa... 92

4.3. Entrevistados... 94

4.3.1. Ravi... 94

4.3.2. Centurion... 95

4.3.3. Vishnu... 96

4.3.4. Ganesh... 96

4.3.5. Bento... 97

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4.3.7. Hermes... 99

4.3.8. Rudá... 100

4.3.9. Andurá... 100

4.3.10. Osiris... 101

4.3.11. William... 102

4.4. Questões de aproximação... 102

4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas104 4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento... 108

4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa... 115

4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados no convívio social... 119

4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado... 125

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA MODERNIDADE:KLESAS,SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM POR UMA FISIOLOGIA RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO...130

5.1. Meu caminho até aqui... 130

5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing... 134

5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade em que se vive... 139

5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam... 144

5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia do ioga... 148

5.6. Ioga moderno como nova religião em processo... 152

5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros... 156

5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga moderno... 158

5.9. Kaivalya à brasileira... 160

CONCLUSÃO...165

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INTRODUÇÃO

Devo confessar que escolho o ioga como objeto pois me sinto mais confortável em investigar a religiosidade brasileira através dele. Isto porque, em primeiro lugar, é o universo aonde posso transitar tanto quanto um insider quanto outsider. Observo colegas estudando campos religiosos que pouco conhecem e percebo o tempo que investem até compreenderem melhor o seu funcionamento interno. Bem antes de pensar em ingressar na academia já convivia com pessoas vivendo em ashrams, alimentando-se de prana, lendo chackras e permanecendo horas sentadas ou de ponta-cabeça em busca do samadhi. Não esboço qualquer traço de ironia ou inferioridade ao descrever essas crenças, pois não julgo nada como excêntrico e enxergo todas as formas de convicção – até mesmo na ciência como responsável em prolongar a vida com seus cosméticos antirrugas, inteligências artificiais, programas de treinamento psicofísico e cirurgias plásticas - se igualando a qualquer outro sistema religioso. E, por último, opto pelo ioga e o seu vínculo com a fisiologia biomédica, pois pertencem a uma lacuna nos escaninhos da ciência da religião brasileira que ainda não recebem o devido interesse. Demorei para divisar que há poucos acadêmicos fora do âmbito biológico preocupados em compreender o universo social brasileiro do ioga. Dessa forma, o ioga continua me instigando a compreende-lo melhor e, a partir dele, a religiosidade do brasileiro também pode se revelar.

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Elencar, no entanto, os benefícios psicofisiológicos para terapia e cura das técnicas de ioga é hoje tarefa simples pela quantidade de trabalhos em biomedicina sendo realizados, mas poucos são os acadêmicos que se atreveriam a designar nas ciências sociais o ioga numa classificação definitiva e absoluta. É somente no anos de 1990 que as “humanidades” se aventuram em tais desafios na Europa e nos Estados Unidos efetivamente (ALTER, 2004, p.85; GUERRIERO, 2014).

Foi a partir das minhas investigações neurobiológicas sobre o ioga (DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.371) e depois conhecendo outros autores dentro do programa de ciência da religião, que me deparei também com as repercussões religiosas que estes estudos fisiológicos da biomedicina infligiam sobre a doutrina ioguica (SIMÕES, 2011).

Percebo somente agora no final do doutorado, que desde o meu primeiro trabalho sobre o tema em 2006 e, em seguida, ingressando no programa de pós-graduação em ciências da religião em 2009, venho investigando de certa forma o o ioga sob a mesma perspectiva, ainda embrionária no Brasil: a Fisiologia da Religião. Antes da minha admissão na academia, demonstrei as repercussões neuroquímicas das práticas contemplativas do ioga e seus benefícios terapêuticos. No mestrado, expus os arrolamentos da doutrina do ioga contemporâneo com a fisiologia biomédica, mas não me interessei quanto aos seus benefícios terapêuticos como o fizera outrora, enveredei pelo aspecto das ciências sociais. A dissertação mostrou que a fisiologia poderia estar além das óbvias implicações terapêuticas de práticas religiosas e se infiltrar ressignificando antigas escrituras espirituais com termos biomédicos (Ibid.).

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permitindo-os sobreviver ao desencantamento do mundo (HANEGRAAFF, 2003). Assim, qualquer alteração no contexto sociocultural de uma dada denominação religiosa suscitará mudanças em sua estrutura de conhecimento do mundo, e com o ioga não poderia ser diferente.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa, parece revelar-se hoje um misto de terapia biomédica e aula de ginástica aonde a ciência, mais do que qualquer outra religiosidade institucionalizada, mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004). Até o Ministério da Saúde brasileiro discute a inclusão do ioga em seu Sistema Único de Saúde (SUS)1 e debates sobre o papel do ioga como prática médica não-convencional são debatidas acadêmica e politicamente no país (SIEGEL, 2010).

A esta altura, seria lícito supor um ioga sendo praticado destituído de suas singulares características religiosas, como ocorreu com a acupuntura, haja vista a difusão indistinta de crenças antigas ioguicas com outras espiritualidades, mas sobretudo, pela inclusão dos seus ritos corporais em laboratórios científicos e hospitais, ou seja, em ambientes (aparentemente) laicos e seculares, aonde a teoria dos klesas, prana, samadhi ou kaivalya não teriam o menor interesse. No entanto, não é isso que parece ocorrer e alguns pesquisadores já apontam o ioga revelar-se como uma nova religião em andamento, sobretudo em cidades modernas, com foco em suas práticas rituais corporais de cura, como veremos.

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em sânscrito e questões filosóficas sobre a sua espiritualidade, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e inicial, a soteriologia considerada “tradicional” ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos investigadores denominam hoje de ioga postural moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS) para que nos auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:

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1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha].

2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais]. 2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida.

2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver.

2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (GULMINI, 2002, p.115-262).

Mesmo compreendendo não ser aqui o local acadêmico para realizarmos uma exegese das escrituras ioguicas, julgo ser pertinente esclarecer melhor os seus significados. Por isso, se faz necessário que se comente as suas passagens para uma maior compreensão posterior, aonde analisarei as possíveis reformas soteriológicas sofridas destes aforismos do ioga com o mundo moderno. Saliento, contudo, que tenho consciência de que muitos comentaristas modernos do Ioga Sutras (IS), especialmente brâmanes e acadêmicos europeus do início do século XX, intentaram adequá-lo ao pensamento racional do ocidente, destituindo-o, em parte, de sua linguagem mística e mágica para uma racionalidade mais condizente com o pensamento acadêmico (SARBACKER, 2008, p.165; SINGLETON, 2008, p.77-99).

O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade. O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis. É a “consciência” (citta)2, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica de citta-purusa. O iogue crê que a alma exista em um estado de “não-movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciam uma Bem-aventurança divina constante (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87).

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Por outro lado, a inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da mente/consciência”, “turbilhão da mente/consciência” ou “confusão mental/consciêncial”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da mente/consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística transitória advinda de suas práticas corporais, denominado de samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”3 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101-107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento humano: a ignorância ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial (ARANYA, 1983, p.122). Os outros klesas ou causas das aflições ou mal-estar são revelados no sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a falsa identidade/orgulho. Os iogues, ao contrário dos cristãos por exemplo, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e desatentos ou alienados de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo nocivo de sofrimento e “confusão mental” (citta-vrttis) na identificação do corpo e da consciência com o mundo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga, é ordenado por oito passos de igual importância, sendo os dois primeiros uma espécie de “dez mandamentos” que um devoto ao ioga deve seguir na vida diária (yamas e niyamas); os próximos três descrevem a sua prática ritual corporal (asana, pranayama e o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”); a meditação propriamente dita é apresentada nos dois seguintes passos (dharana e dhyana); e, finalmente, a experiência mística de integração novamente da consciência com a alma

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incondicionada (ou deus/Isvara) ou samadhi no oitavo momento, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).

Ao findar a defesa da minha dissertação me perguntei se não haveria a ciência influenciado mais o ioga do que apenas a ressignificação simbólica dos seus preceitos metafísicos com termos da fisiologia biomédica. Digo isso, pois conversando com iogues e praticantes posteriormente, mas sobretudo, cursando formações ioguicas e vivenciando rituais das mais diversas no Brasil entre os anos que escrevia minha dissertação e esta tese, percebi o quanto do discurso ioguico havia mudado com relação as escrituras antigas do ioga (IS) que delineei sucintamente acima. Não eram apenas os chackras que haviam se transformado em glândulas endócrinas ou nadis em sistema nervoso autônomo. A grande causa do sofrimento iogue não parecia mais surgir dos comportamentos associado aos klesas, mas do estresse aferido empiricamente pelos instrumentos da ciência advindo do ritmo de vida das sociedades de consumo. Os professores e alunos de ioga atuais citam mais termos fisiológicos do que os sutras de Patanjali em suas aulas; e os klesas, o grande obstáculo espiritual ioguico de outrora, parecia não mais pertencer ao discurso ioguico moderno. O que ficou evidente a mim foi um ioga adaptando-se a cadência e as exigências do mundo moderno brasileiro, mas ainda não compreendia o que isso significava exatamente sob o ponto de vista da ciência da religião.

Revelamos pela exposição acima do IS, quatro conceitos fundamentais à proposta antiga de salvação/libertação do ioga: os klesas, os vrttis, kaivalya e o samadhi. Ao contrário do que se apregoava antigamente, os iogues e praticantes hoje parecem manifestar maior interesse na aquisição de saúde e bem-estar, do que reverenciar algum tipo específico de ética religiosa, conduta espiritual de culto a deus ou à qualquer outra religião institucionalizada (ALTER, 2004).

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acontecer em algumas escolas ioguicas sem incorrer na perda total de sua espiritualidade.

Numa pesquisa realizada em Londres em 2002 com 750 praticantes de ioga, descobriu-se que 80-83% destes iogues compreendem as suas práticas tanto como auxiliares no combate ao estresse, quanto na experiência igualmente válida de uma vida espiritual plena. Suzane Newcombe concluiu até mesmo ser possível classificar o ioga hoje como uma religião mística, segundo o conceito desenvolvido por Colin Campbell a partir de Ernst Troeltsch (NEWCOMBE, 2005). A relação que possa existir entre estresse e religião a pesquisadora não incluiu em suas perguntas, mas as suas descobertas ganham mais sentido quando expomos um dos pensamentos de B.K.S.Iyengar, o líder espiritual da escola de ioga investigada por Newcombe e um dos iogues mais populares e respeitados do mundo. Segundo ele: “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião” (IYENGAR, 2001, p.38). O seu discurso associado a nossa argumentação até aqui nos direcionam a concluir haver uma estreita relação se estabelecendo entre a biomedicina e o ioga moderno, que ao invés de desencantá-lo, pode estar legitimando-o como uma nova religião.

Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões (FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah Strauss corrobora essas aproximações nos esclarecendo que o diálogo saúde-doença para o ioga moderno não corresponderia a um simples mecanismo resultante da fisiologia compreendida pela biomedicina, mas da experiência subjetiva de um sentir-se mal, quasentir-se como uma angústia ou uma dor incorporada (STRAUSS, 2008). Dessa forma, é legítimo explorar a provável dialética estabelecida modernamente entre as noções de klesa como gerador da experiência do mal-estar e do conceito de estresse para o ioga que vem se instituindo no contexto sociocultural ocidental.

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antigo que versamos anteriormente4 - por sua vez, poderiam estar sendo entendidos como as técnicas para dominar o “estresse-klesa” (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012). Essas observações são deveras interessantes, mas ao considerar o estresse como sinônimo de klesa nos faz concluir equivocadamente que toda a manifestação fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana. Todavia o estresse, na perspectiva estrita da fisiologia biológica, nunca foi compreendido assim. O estresse como sinônimo de doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da ciência e, talvez, incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do ioga moderno.

Os klesas, como demonstramos acima, até o surgir da modernidade sempre foram sinônimo das cinco aflições espirituais responsáveis por perpetuar o estado de servidão ou sofrimento humano (SCHONFELD, 2010). Assim, é provável que os comportamentos dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo e orgulho) possam estar adquirindo outras conotações associadas a resposta biológica do estresse.

Digo isso, pois o estresse biológico é um estado absolutamente normal e neutro (nem bom ou ruim), muitas vezes benéfico para a manutenção da vida e somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso a saúde. Já o estresse ioguico, revelado por R.T. Rao e Bhavanani, como sinônimo de klesa, fica evidente se tratar de uma nova concepção criada no seio da espiritualidade ioguica moderna. Há, assim, um hiato entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de estresse. Todavia, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de estresse com as suas antigas crenças em corpos metafísicos e energias sutis ou transfisiológicas (BHAVANANI, 2007, p.30-40).

Medicalizar o ioga, portanto, atribuindo a ele associações entre estresse e klesa, pode ter sido uma porta que se abriu para os iogues modernos difundirem as suas crenças entre a sociedade ocidental. No Brasil por exemplo, temos o Prof. Hermógenes, iogue brasileiro mais conhecido e carismático do país, que conseguiu aliar a medicalização das práticas ioguicas com o cristianismo e o espiritismo fortalecendo, como ele mesmo diz, a saúde física e mental em busca da “auto-perfeição pelo hatha-ioga” como terapia espiritual para “nervosos” (HERMÓGENES,

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2010; 2011).

Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua medicalização e as suas práticas como técnicas profiláticas em muitos setores da saúde. Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga puro”, e a tradição de ioga do período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e não o estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às suas escrituras antigas (LIBERMAN, 2008, p.113). Esse fato poderia refletir não uma corrupção dos preceitos espirituais ioguicos “tradicionais”, como afirmam alguns estudiosos contemporâneos ao ioga (SINGLETON, 2005), mas uma reforma soteriológica legítima dos seus antigos bens de salvação frente ao transplante do ioga aos grandes centros urbanos do ocidente. No Brasil, provavelmente mais do que em qualquer outro país, a associação klesa-estresse-salvação/libertação pode revelar-se mais nítido e compreensível. Digo isso, pois entre os brasileiros, aliar o ioga como benéfico para a saúde é bastante popular como revelamos acima com o Prof. Hermógenes. Além disso, a América Latina em geral, por ter edificado o ioga sem a influência tão vigorosa de gurus de renome internacional como Iyengar, Jois, Sivananda e outros, possivelmente pela barreira idiomática, pode ter desenvolvido características próprias e, talvez, únicas.

Mesmo que escassos, estudos brasileiros corroboram essa possível singularidade do ioga no Brasil. Pesquisas revelam que o ioga vem perdendo o seu atributo de errância que predominam em espiritualidades Nova Era (NUNES, 2008), exprimindo que os iogues brasileiros tem se tornado mais fiéis ao seu guru ou professor de “formação”. Ao mesmo tempo, o ioga já desperta discussões sobre o seu papel social, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo a defender-se politicamente por sua independência do Conselho Federal Brasileiro de Educação Física, o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidade brasileira, fomentando algum tipo novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

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ter milênios de conhecimento, a sua trajetória é fluida e suas imbricações sociais e religiosas estarão sempre determinando novos caminhos. Cabe-nos aqui saber realizar as perguntas corretas.

Dessa forma, pensamos em problematizar a nossa pesquisa concentrando-se em compreender o papel dos klesas (comportamentos de apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) no panorama social brasileiro. Talvez o impacto soteriológico no transplante do ioga – de uma sociedade estratificada indiana antiga – para uma sociedade capitalista de consumo, secular e privatizada religiosamente, como oficialmente o Brasil se apresenta, pode ter reformado a teoria dos klesas para uma relação direta com a experienciar psicofisíca do estresse. Dessa forma, descobertas fisiológicas sobre o relaxamento psicofísico, como “produto” das práticas ioguicas, sobretudo reveladas e propaladas em meios acadêmicos e revistas populares, podem estar refletindo na diminuição do valor comportamenal dos klesas no ioga praticado e professado entre os brasileiros. Essa hipótese, associada ao caráter mutante da religiosidade brasileira poderia estar contribuindo na construção de um ioga brasileiro mais sincrético religiosamente. Infelizmente as pesquisas sobre o ioga brasileiro, fora do âmbito biomédico são bastante escassas, por isso, nossos dados para serem conclusivos precisariam de um número mais substancial de acadêmicos interessados sobre o tema. Por isso escolhemos dez iogues e três cientistas que, mesmo reduzido, podem representar uma parcela do microuniverso ioguico brasileiro ainda em formação.

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No Brasil, por sua característica cultural de sincretismo religioso mas, sobretudo, pela vinda tardia de iogues indianos, o ioga encontra aqui condições singulares de desenvolvimento aonde o poder terapêutico religioso de suas práticas revelou-se de forma mais evidente. Não é coincidência, por exemplo, que as obras de iogaterapia do Prof.Hermógenes tenham alcançado popularidade, mas as suas implicações podem ser mais profundas do que a simples mudança de klesas para a sua ressignificação ao estresse. Talvez, a análise do papel dos klesas no ioga brasileiro possa refletir também a causa do sofrimento que afeta uma parcela de brasileiros que transitam o microuniverso ioguico do país.

Quiçá, a relação cura-salvação, o processo de secularização e privatização religiosa, aliado a racionalização científica, podem ser os responsáveis pela diminuição no Brasil do valor ético da teoria comportamental dos klesas. A elevação das sensações e percepções psicocorporais ioguicos de relaxamento, propalados pela ciência biomédica, por outro lado, podem estar contribuindo como pano-de-fundo às reformas soteriológicas ioguicas frente aos grandes centros urbanos brasileiros.

Assim, a ressignificação das escrituras modernas do ioga à luz da fisiologia biomédica podem evidenciar uma adaptação racionalizante em sua proposta soteriológica. Um exemplo disso são as descobertas terapêuticas da fisiologia biomédica sobre o efeito benéfico a saúde das práticas ioguicas no combate ao estresse biológico crônico. Estas comprovações científicas refletem positivamente e podem se tornar uma das responsáveis principais por converter o estresse em klesa ou obstáculo espiritual. Por conseguinte, o estresse ioguico pode vir a adquirir o caráter de gerador de vrttis ou “agitação da mente” (citta-vrttis). Se isso se confirmar, o estresse ioguico poderá elevar a resposta orgânica antagônica ao estresse biológico, o relaxamento, ao nível de espiritual, diminuindo sensivelmente o peso comportamental e ético dos klesas de outrora por outro mais “baseado na experiência pessoal”. Essa hipótese conduz o kaivalya por sua vez, a um caráter mais “fisiológico” também, metaforizando-se numa busca pessoal suprassensível por uma espécie de “homeostase divina”.

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por resultado, a sua salvação/libertação em vida das aflições humanas na comunhão com Deus/Isvara (kaivalya). No entanto, percebo modernamente um desvio da atenção dos klesas para uma atenuação do estresse que toma características do mal a ser exorcizado em vista as suas repercussões corporais “empíricas”. Focar-me-ei na dialética estabelecida entre o ioga com a ciência biomédica como contributiva capital na possível reforma da sua proposta de salvação/libertação religiosa moderna na busca de uma natureza de “homeostase divina” ou kaivalya.

Para esse intento, vou buscar dados por meio de entrevistas semiestruturadas com iogues e cientistas psicobiólogos que investigam as práticas ioguicas como terapia-cura. O meu modo de escolha dos iogues foi selecionar àqueles responsáveis diretamente em difundir a cultura do ioga no país por meio de cursos de formação periódicos, retiros espirituais a Índia e workshops, palestras e aulas em universidades brasileiras sobre a cultura iogue da vida que vale a pena ser vivida. Com relação aos cientistas, escolhi três que respeitam aos seguintes critérios: pesquisarem o ioga como terapia, ministrarem palestras e workshops sobre o ioga e as suas práticas e repercussões biológicas, possuírem artigos sobre o tema publicados internacionalmente envolvendo a relação ioga e saúde, além de participarem como palestrantes nos cursos de formação ioguica.

O objetivo central estará em compreender a transformação dos klesas no ioga moderno em dialética com a ciência biomédica e a religiosidade brasileira. Mas para isso, precisaremos apresentar primeiro, a proposta de salvação antiga do ioga no intuito de contextualizar a sua origem antiga. No segundo momento, descreveremos o transplante do ioga indiano para o ocidente e a tensão que emerge no seu acesso à modernidade. Dessa tensão ioga-ciência, emerge o ioga moderno e seu enlace com a biomedicina ocidental. Mas na América Latina esse transplante pode ter desenvolvido as suas singularidades, como adianrtamos, devido as décadas de insulamento que o ioga passou. No Brasil em específico, a sua particularidade foi o sincretismo com religiões nativas e cristãs, mas principalmente, da utilização do discurso laico da ciência sobre os seus ritos corporais para espiritualizar o relaxamento e adaptar a sua proposta soteriológica à luz do contexto social moderno.

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e beneficiar-se no seu enlace com a educação física e a biomedicina ocidentais possibilitando se tornar uma terapêutica espiritual de cura. Com a ajuda teórica de DeMichelis o ioga, transplantado do oriente no fim do século passado para as sociedades ocidentais, me permitirá percebe-lo como moderno sem diminui-lo em sua religiosidade. A pesquisadora Andrea Jain ajuda-me a compor a disseminação do ioga moderno entre as camadas urbanas ocidentais, de uma perspectiva de contracultura, do início dos anos de 1960, para a cultura de consumo, a partir dos anos de 1980. Os trabalhos realizados e organizados por Mark Singleton e colegas (Liberman e Sarbacker) servirão de base para evidenciar as transformações soteriológicas ocorrendo com o ioga moderno.

Em nosso primeiro capítulo descreveremos a proposta soteriológica do ioga clássico, aonde os klesas são apresentados como as causas das aflições espirituais do ioga. No mesmo capítulo ainda, mostramos como o ioga indiano em contato com o ocidente, sobretudo a partir da colonização inglesa, ressignifica as suas escrituras e práticas a partir da fisiologia biomédica. No capítulo dois, discutimos como os klesas vão sendo metaforizados como estresse e emoções consideradas nefastas ao ioga moderno. A causa das aflições ioguicas agora, adquirem características bem mais corporais e medicamentosa, estabelece uma dialética saúde-salvação. A partir do terceiro capítulo, afunilamos o espectro da nossa investigação nos limitando ao contexto brasileiro a partir da história do ioga nas terras latino-americanas. Nesse momento da história moderna do ioga, os países da América Latina recebem o ioga via discípulos da teosofia e outras ordens esotéricas ocidentais.

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Capitulo 1

O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS:

DO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO

Os aforismos de Patanjali (aproximadamente século II a.C.) marcaram o alvorecer do período considerado clássico do ioga, que se estende até à idade medieval indiana, quando os iogues entram na sua terceira era histórica, intitulada, segundo historiadores da religião, como pós-clássica, medieval ou pré-moderna. É nesta fase histórica que surgem dois dos seus textos basilares, o Hatha-Ioga Pradipika (HIP) e o Gheranda Samhita (GS). Será a partir dessas escrituras dos séculos X-XV que o ioga mostra a sua vertente mais corporal - com uma descrição mais minuciosa de posturas, respiratórios e limpezas – e terapêutica – quando correlaciona as suas práticas físicas com a medicina tradicional indiana. Portanto, é no período medieval indiano, que a medicalização e corporificação do ioga tem início. No entanto, mesmo com todas as suas transformações medievais, o ioga mantem-se sob a égide do hinduísmo. O que vai realmente marcar o advento do ioga moderno é o seu desvinculamento gradativo com o hinduísmo quando da sua transplantação para o contexto ocidental urbano.

A partir do séc.XX, o discurso do swami Vivekananda, no primeiro parlamento mundial das religiões (1893), marca o advento da fase moderna do ioga (STRAUSS, 2008, p.58-62). A passagem por esses períodos da história do ioga se mostra relevante para compreendermos as imbricações deste com outros sistemas de crenças e as transformações que se impingem na compreensão iogue de realidade religiosa e não sucumbir a laicidade pelo mundo moderno.

1.1 - Período pré-clássico do ioga

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um tipo de ioga já era praticado pelos drávidas e a sua religiosidade sofrerá influência do que depois veio a ser conhecido como Hinduísmo pelo brâmanes, a alta casta sacerdotal ariana.

Supostamente este proto-ioga dravidiano já era uma prática religiosa voltada para a concentração mental, o controle da respiração, a adoração ritualística, cujos objetivos principais eram a invocação, a visualização e a união mística com suas inúmeras divindades (FEUERSTEIN, 1998, p.133-168). Como a religião dos arianos não aceitava esse ioga arcaico no início, ele foi sumariamente considerado um sistema religioso heterodoxo pelos seus sacerdotes (ZIMMER, 2000, p.67).

No entanto, aos poucos, talvez por força popular, os brâmanes vão absorvendo paulatinamente esse ioga nativo como parte das suas próprias crenças. Com o passar do tempo, uma quantidade admirável de hibridismos foi sendo realizada com esse proto-ioga dando origem às diversas organizações e tradições ioguicas, algumas perduram até hoje.

Segundo Georg Feuerstein (1998), podem-se identificar citações desse ioga autóctone dos drávidas já nos versos do Rig-Veda, os antigos hinos bramânicos (p.152; 155; 158)5. Em outro livro dos Vedas, o Atharva - que inclui uma extensa coletânea de encantamentos de amor, maldições e preces aos deuses em busca de prosperidade - também se podem ler hinos relacionados ao ioga do período pré-clássico (Ibid., hino 10.7).

Outras referências históricas ao ioga, consideradas pré-clássicas, estão nas Upanisads, textos pós-védicos que prometiam, igualmente ao ioga mais tarde, uma “união mística com o Ente Supremo”, muito parecidos com as escrituras ioguicas de Patanjali, autor de uma geração ioguica posterior (FEUERSTEIN, 1998, p.169), que veremos adiante.

O que busco salientar aqui é a origem antiga do ioga como caminho religioso para a transcendência com Deus por meio de práticas rituais corporais e o seu hibridismo com o Hinduísmo, o conhecimento dominante do seu contexto sócio-cultural. Além disso, fica nítido os sincretismos sofridos pelo que conhecemos como ioga ao longo da sua história. O ioga e os iogues parecem assemelhar-se, neste

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período, muito mais a categoria de magos protegendo-se e lançando feitiços contra seus inimigos através de suas práticas corporais que trabalhavam com as energias sutis, do que a de um clero instituído.

1.2 - Período clássico do ioga

O período clássico ioguico marca, no entanto, o aparecimento do documento que trata especificamente daquilo que se entende como ioga, o Ioga Sutra (IS), uma coletânea de 196 aforismos que o define e amplia a sua proposta soteriológica e, com isso, apresenta a causa do sofrimento humano e seus bens de salvação. Ainda hoje, as escrituras que versam sobre o ioga reverenciam este antigo tratado, fortemente associado à doutrina religiosa Samkhya, com a diferença de incluir o conceito de Deus/Isvara, muito provavelmente para ser aceito a ortodoxia hinduísta (GULMINI, 2002, p.173-185).

O IS foi compilado por Patanjali, filósofo brâmane, gramático, médico e figura semidivina indiana que, provavelmente, viveu séculos antes de Cristo. Patanjali não inventou o ioga, mas o codificou e o sistematizou como caminho espiritual óctuplo conhecido como o asthanga-ioga (AI), o ioga real, o ioga clássico ou o raja-ioga.

Segundo o IS, a realização do Si-mesmo é denominada de kaivalya, termo que significa literalmente solidão e equivale ao termo salvação espiritual. Sendo assim, o Si-mesmo transcendente (purusa) é solitário (lit.kevala), separado da natureza, portanto, do corpo (prakrti ou matriz fenomênica, ver GULMINI, 2002, p.438). Enquanto isto não ocorrer (purusa ou alma perceber-se desvinculado das aflições de prakrti ou corpo) fica-se condenado a um ciclo de renascimentos (samsara) infinito em vidas ilusórias ou de dor/sofrimento (maya ou avidya-purusa). O sofrimento espiritual (lit.dukha), por sua vez, é originado pelo contato do corpo com o mundo. Em outras palavras, dos estímulos sensoriais (bhutas) com os órgãos psicofísicos de interação de cada indivíduo (indriyas: jnanendriyas e karmendriyas)6, os quais

6

Audição (ouvido) palavra (voz); tato (pele) preensão (mãos); visão (olhos) locomoção (pés); gustação (língua) excreção (ânus); olfato (nariz) gozo (sexo) e também a “mente” (manas) que na filosofia do IS é considerado um indriya, pois decodifica as percepções captadas pelos sentidos externos e as retransmite ao “Ser interno” que, além de gerar respostas a estes estímulos, coordena os

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informam, a todo o momento, à consciência (citta) do mundo externo. A consciência (citta) de um leigo, no contato com o mundo fenomênico, não consegue diferenciar do que se origina de purusa (alma imaculada) ou de prakrti (corpo material). Nessa confusão consciencial (citta-vrttis), os klesas (sentimentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho) manifestam-se no Ser e a dor e o sofrimento surgem enquanto a plenitude original desaparece. O indivíduo agora está fadado a viver na ignorância (avidya) ou alienado da sua real natureza divina e em harmonia energética (GULMINI, 2002, p.125-133).

É importante esclarecermos que o caminho espiritual do ioga não está na conquista que ainda não temos, mas naquilo que é universal, eterno e divino em nós. Em outras palavras, ao contrário dos cristãos que já nascem portadores do pecado, o no ioga, os indivíduos nascem puros mas são contaminados pelo mundo (através do corpo). Suas práticas clássicas – sobretudo a meditação - são descritas como vias de salvação/libertação pela purificação do corpo (prakrti) e da mente/consciência ou espírito (citta). Há, portanto, um estado de harmonia perene que já somos, mas que os klesas desestabilizam e nos entorpecem.

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O que se buscou acima revelar é o valor do corpo para o sistema de crenças iogue. O corpo é, ao mesmo tempo, o responsável por manter e livrar os seres humanos da sua angústia espiritual. O mundo fenomênico impinge ao Ser, por intermédio dos corpos, a sua força e ludibria o indivíduo no seu jogo sensível (lila). É só por meio das práticas ioguicas que o seu adepto poderá vir a vislumbrar novamente a essência imaculada de sua alma (purusa) e estabelecer-se em equilíbrio ou sattva (Ibid., p.120; 125), na experiência última de kaivalya.

1.2.1 - Apresentação da proposta de salvação/libertação do ioga clássico

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em sânscrito e questões filosóficas, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e inicial, a proposta de aniquilamento do sofrimento humano considerada “tradicional” ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos investigadores denominam hoje de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo, descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS), que adiantamos na introdução para que nos auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:

1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha] (GULMINI, 2002, p.115).

2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais] (Ibid.).

2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida (Ibid., p.212).

2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver (Ibid., p.255).

2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (Ibid., p.262).

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O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade (BERRY, 1992, p.110; SARBACKER, 2008, p.162). O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis (ARANYA, 1983, p.10; BERRY, 1992, p.77). É a “consciência” (citta)7, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica ou sattva de citta-purusa quando alcançam kaivalya. O iogue crê que a alma exista num estado de “não-movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciem uma Bem-aventurança divina constante e eterna (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87). Samadhi, no entanto, é uma experiência religiosa transitória produzida a partir das práticas ioguicas, que possibilita aos iogues vivenciarem temporariamente um espaço liminar aonde cessa-se a ação dos klesas em prakrti e o indivíduo cessa-sentir a harmonia perene de purusa. Retorna-se de samadhi com discernimento espiritual maior sobre si-mesmo e os outros. Seria como um vislumbre de kaivalya – o retorno a perenidade de purusa – mas com retorno ao mundo ordinário e as suas aflições.

A inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da consciência”, “turbilhão da mente” ou “confusão mental”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística do samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”8 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101-107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento humano: a ignorância, alienação ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial

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Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas).

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(ARANYA, 1983, p.122), ou seja, viventes de um estado permanente de Bem-Aventurança. Os outros klesas ou causas das aflições são revelados no sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a falsa identidade/orgulho ou orgulho. Os iogues, como salientei em outra passagem, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e desatentos ou ignorantes de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo nocivo de sofrimento e “confusão mental” na identificação do corpo e da consciência com o mundo. No entanto, é importante deixar sublinhado, a alma (purusa) estará sempre em estado de harmonia perene ou equilíbrio não sendo maculada pelo corpo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga (AI), é ordenado por oito passos de igual importância: a ética dos yamas e niyamas; a prática ritual corporal do asana, pranayama; o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”; a meditação propriamente dita em dharana e dhyana; e samadhi, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).

Se a proposta de salvação/libertação descrita acima do ioga antigo já não está mais tão evidente no discurso moderno, porém a espiritualidade do ioga não foi esquecida, o que se alterou? Provavelmente modificações soteriológicas podem estar ocorrendo, e com relação a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o estado espiritual de kaivalya, mas quais? O intento aqui estará em apontar possíveis caminhos de interpretação de tais reformas na proposta moderna de salvação/libertação do ioga no microuniverso ioguico brasileiro.

1.3 - Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga

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apareceram na Índia no primeiro milênio da Era atual, portanto mais de mil anos de história se passaram desde o IS aos primeiros registros pós-clássicos do ioga.

Assim como Patanjali sistematiza os princípios soteriológicos do ioga em seu período clássico, Matsyendra e Goraksha, iogues da tradição ioguica Natha, desenvolvem mais pormenorizadamente as práticas corporais e repercussões fisiológicas espirituais para a união com Deus (LIBERMAN, 2008, p.100-116). Enquanto no período clássico o ioga fundamenta as suas crenças no Samkhya, no período medieval o ioga busca no Tantra, na alquimia islâmica, no Vedanta Advaita e no Budismo o fundamento religioso e filosófico de suas crenças.

1.3.1 - O início da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir da medicina Ayurveda

A disciplina na execução das posturas, dos exercícios respiratórios, das vocalizações e das mentalizações por longo tempo, e a devoção por partes específicas do corpo são muito mais evidentes nos textos ioguicos do período pós-clássico do que no seu anterior, e o corpo adquire agora uma natureza divina, como um “templo” para o iogue medieval. Diferente do iogue clássico, que por causa de sua visão dual, lidava com o corpo como um estorvo para a transcendência. Essa mudança será significativa, pois quando o ioga encontra o mundo moderno ocidental, de cultura consumista e individualista, essa visão positiva dada ao corpo incentiva a popularização das suas práticas e investigação acadêmica sobre as suas repercussões terapêuticas.

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pote ou, muitas vezes, por “unidade psicofísica”, segundo alguns iogues (IYENGAR, 2001, p.243) e especialistas contemporâneos em ioga (SOUTO, 2009, p.257-258).

Os textos elaborados filosoficamente por Shankaracharya, o Vedanta Advaita, é popularizado neste período do ioga. A sua base está no conceito de um mundo não-dual, dessa forma, diferente das escrituras dualistas de Patanjali que compreende a alma (purusa) como imaculada pelo corpo (prakrti). Os iogues medievais, pelo contrário, na busca por desvencilhar-se do klesa-mãe, a ignorância, e do sofrimento do Ser, percebem o corpo (prakrti) refletindo a alma (purusa). Assim, se preocupam menos com os tratados filosóficos de sua religiosidade, muito mais pautada pelo sectarismo teológico dos brâmanes, e desenvolvem um arsenal de práticas fisiológicas espirituais bem mais sofisticadas do que ao longo dos séculos anteriores9. Para os hatha-iogues, portanto, o mundo não é mera ilusão agora, eles acreditam que o sensível e o material são um só e a manifestação da suprema de Deus. Como tudo é divino, o corpo também o é, e compreender a corporeidade significa também descobrir o que se é espiritualmente como disse Feuerstein (1998, p.461-463).

Os (hatha)yogins estabeleceram que o corpo humano é homólogo ao Universo, assim, nomearam os nadis e os chackras como rios, montanhas etc. A ideia era buscar a verdade dentro de si mesmo. Se Deus está no Universo, também podemos buscá-lo dentro de nós mesmos (SOUTO, 2009, p.26).

Eliade (2001) corrobora o que se afirmou, comentando que em certa época, talvez entre os séc.VII-XI, ocorre “uma nova revelação” entre os tântricos, os budistas, os alquimistas, os hinduístas e os hatha-iogues, que não proclamavam algo de original, “mas apenas reinterpretavam as doutrinas atemporais segundo a necessidade do seu tempo”, numa espécie de síntese dos elementos religiosos em comum (p.252).

Uma vez o corpo estando saudável e forte, o hatha-iogue dá início ao despertar de uma energia suprassensível adormecida, a kundalini, descrita pela sua fisiologia espiritual como uma “serpente” enrolada na base da coluna vertebral. A ascensão da kundalini surge com mais ênfase nos textos medievais e, segundo as escrituras hatha-iogues, os devotos avançados, desenvolvem uma gama de

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capacidades transfisiológicas que os qualificam para kaivalya, mas que não é um privilégio dos iogues medievais, pois outras religiões como o Budismo também possuem descrições fisiológicas extraordinárias (ver USARSKI, 2009, p.43-44). O último sutra do tratado mais importante do HI medieval, o HIP, afirma que:

Hatha-Ioga Pradipika (HIP): IV.114 - Enquanto o prana não entrar em sushumna (middle channel), penetrando o Brahmarandhra [lit. porta de Brahma ou Isvara, enquanto o bindu [fluxo vital masculino] não ficar estável por pranavata (controle do movimento de prana) e a mente (citta) sob controle em meditação (contemplação), a Suprema Realidade (Brahman ou Isvara) não aparece com um estado natural da mente [citta], e falar de Jnana [conhecimento religioso] é apenas hipocrisia sem fundamento (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

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Segundo o Vedanta Advaita, o ser humano possui mais do que o corpo físico10 e esse fato é relevante, pois será essa fé no corpo como parte do divino que manterá o ioga como caminho espiritual mesmo em sociedades modernas. Em outras palavras, a crença em energias transfisiológicas e sua dialética na salvação/libertação por meio de ritos corporais desenvolvidos neste período medieval, serão mantidos no sistema de crenças moderno do ioga, como veremos adiante. O candidato a iogue realizado agora deverá revelar condições transfisiológicas específicas que o qualificarão para a sua integração com Deus e não apenas nascimento ou educação adequados, como se valiam os sacerdotes hindus de outrora (ELIADE, 2001, p.205-209; SOUTO, 2009, p.46-50). Dessa forma, a fisiologia suprassensível do ioga adquire papel central no êxito de seus devotos, pois será por meio dos seus rituais corporais que os iogues medievais conseguirão diminuir as volições de citta e desenvolver certo discernimento espiritual (viveka) na busca pela salvação/libertação em vida das agruras da vida e comunhão com Deus.

Gheranda Samhita (GS): I.6-8 – O corpo das criaturas viventes é o resultado das boas e más ações. O corpo, a seu tempo, dá origem à ação e, desse modo, o ciclo continua como um ghatiyantra [lit. roda de água]. Como a cisterna sobe e desce a água do poço movida pelos bocéis, similarmente o ciclo da vida e morte de cada indivíduo é impulsionado por seus karmas ou suas ações. O corpo é como uma vasilha de barro cru que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se (Gharote11 apud SOUTO, 2009, p.266-267).

10

Os três corpos ou shariras correspondem a um orgânico e mais dois sutis-esotéricos, que são: 1) o

sthula sharira ou físico, constituído pelos músculos, pelos ossos, pelos órgãos e pelos tecidos; 2) o

sukshma sharira, formado pela intuição, pela memória ou pelo conhecimento e pelas emoções; e 3)

karana sharira ou causal, também denominado “receptáculo” ou “veículo” da alma individual. Também no Vedanta está a descrição dos cinco koshas ou invólucros do Ser, que são 1) o

annamáyákosha ou corpo físico (igual ao sthula sharira); 2) o pránamáyákosha, constituído pelas energias prânicas que percorrem os nadis; 3) o manomáyákosha, corpo formado pelas emoções, mente e os sentidos ou indriyas; 4) o vijñánamáyákosha, constituído pelo intelecto e pelo raciocínio (é o “autor” das ações); e 5) o ánandamáyákosha, o corpo que transita além das misérias humanas (WOODROFFE, 2004, p.43-48; IYENGAR, 2001, p.247-265).

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O prof. Ghatote é um importante discípulo do Swami Kuvalayananda, precursor da tradição de

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Aqui se percebe que, sendo o corpo responsável pelas ações dos seres humanos, a prática e doutrina fisiológica ioguica tem o poder de modificar e até mesmo de interromper este ciclo de reencarnações, indicando assim a liberdade intrínseca do indivíduo para se desenvolver pelo fruto de suas próprias ações (Ibid., p.257).

GS: I.10-11 – Os satkarmas purificam o corpo, os ásanas o fortificam, os mudras lhe dão firmeza, o pratyahara produz calma. O pranayama leva à leveza, dhyana leva à realização do Ser e samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti) (SOUTO, 2009, p.268).

Conclui-se que, enquanto os iogues antigos (pré-clássicos e clássicos) propõem alcançar o kaivalya pela purificação dos pensamentos, os hatha-iogues (pós-clássicos ou medievais) preferem antes (ou em conjunto) a purificação fisiológica espiritual para o mesmo fim (FEUERSTEIN, 1998, p.541; SOUTO, 2009, p.287).

Se há algo em comum entre os períodos históricos, no entanto, está o seu cuidado extremo no desenvolvimento de uma presença mental ininterrupta com o livre fluir de prana com fins a certa harmonia ou equilíbrio energético. Por outro lado, aos hatha-iogues, partes do corpo ganham contornos místicos. Por exemplo, os iogues medievais crêem que a energia espiritual de kundalini reside no kanda (um equivalente na anatomia científica seria o períneo); dessa forma, desenvolvem técnicas de estimulação desta região, cujo intento é ativar a corrente prânica (SOUTO, 2009, p.292).

GS: II.7 – Siddhasana: pressionando o períneo [ou ânus e genitais]12 com o calcanhar posicionado contra ele, descansando o outro tornozelo sobre este ou sobre o pênis, posicionando o queixo no peito, mantendo-se sem movimento, com as indriyas [lit. sentidos] sob controle e olhando fixamente entre as sobrancelhas, esse é chamado siddhasana, que rompe as portas da libertação (moksha) [ou kaivalya] (SOUTO, 2009, p.290).

As escrituras, como se lê, vão aos poucos perdendo parte da sua força legitimadora da fé e o corpo adquirindo contornos de revelador pessoal da evolução espiritual do iogue. A experiência espiritual transitória do samadhi agora ganha

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explicações que permeiam as sensações corporais e a compreensão do funcionamento do corpo se entrosa com a medicina tradicional indiana, a ayurveda. O ioga medieval fez surgir uma maior popularização das suas práticas e alcance da sua proposta de salvação, libertação, purificação ou eliminação dos klesas. Ao invés de regrar as condutas diárias em observação aos comportamentos nefastos de apego, aversão, medo da morte e orgulho, os hatha-iogues autorizam a qualquer indivíduo, independente de sua casta social, purificar o corpo diariamente por meio de práticas corporais específicas com o mesmo intento dos iogues-brâmanes: vivenciar temporariamente o samadhi na busca por conhecimento espiritual e livrar-se em vida de todo o sofrimento humano advindo da agitação da mente/consciência.

Assim se faz a relação da consciência (citta) com o respirar (prana) e o vivenciar com o divino por exemplo. O primeiro sutra do GS mostra que, praticando pranayama, “o homem pode assemelhar-se a um Deus” (verso V.1; SOUTO, 2009, p.385; GRIEGO, 2008, p.23). Os iogues medievais creem agora que o tempo de vida humano é ditado pelo fluxo de ar (prana) no organismo (verso V.83-84; GRIEGO, 2008, p.29; SOUTO, 2009, p.420) e não pelo nascimento apenas; assim se dedicam com afinco às funções sutis da fisiologia dos pranayamas e no controle e execução corretos destes que podem conduzi-los de um simples devoto praticante (sadhaka) a iogue realizado (que atingiu kaivalya ou estado de equilíbrio eterno das energias metafísicas que atuam nos corpos) (verso V.91 em GRIEGO, 2008, p.30; SOUTO, 2009, p.422).

GS: V.56-57 – O tipo inferior de pranayama produz calor (indicativo da ativação de kundalini, geralmente associado a algum bandha). O moderado produz tremores especialmente na coluna vertebral, enquanto os mais elevados levam à levitação e desperta-se a energia espiritual [kundalini]. O êxito no pranayama é caracterizado por essas três experiências sucessivamente. (...) Pelo pranayama, a mente experimenta felicidade e o praticante a encontra. (Ibid., p.408-409)

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com outras religiosidades, o ioga se mantém como escola ortodoxa hinduísta, um darsana. O ioga, ao contrário do Budismo, não pode ser percebido ainda como uma religião autônoma na Índia medieval por força hinduísta, mas como parte deste complexo sistema religioso. Na contemporaneidade, no entanto, esse quadro se modifica sensivelmente.

1.4 – O Surgimento do ioga moderno

O ioga, na sua faceta moderna, se viu envolto por outros desafios, que obrigou os iogues, mais uma vez, a se ajustarem às novas racionalidades que surgiram, sobretudo, no seu contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia e a neurociência trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia espiritual do ioga medieval. Desse modo, explicar o samadhi, o poder espiritual dos ásanas, pranayamas e kryias não era mais agora algo exclusivo de sacerdotes hinduístas ou iogues ascetas, mas estava sendo também investigado por um novo sistema de conhecimento, a ciência.

1.4.1 - A Renascença Indiana

É no período denominado de renascentista que alguns indianos vão estudar na Europa e percebem que o seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história e cultura, sofre com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens entendem que seu povo poderia (e deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país que os colonizava.

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direitos políticos das mulheres, a extinção das castas, da poligamia e das crenças populares religiosas, assim como tornaram obrigatório o ensino da língua inglesa nas escolas. Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu, tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um debate inter-religioso e crítico.

Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e religiosa, que esses indianos buscaram construir e expor ao mundo uma perspectiva mais secular de seu país e de sua religiosidade menos “primitiva e mágica”. Com isto, o ioga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam o seu sistema de crenças, soteriologia e de práticas rituais sofrendo mutações e propiciando o advento de modernas organizações e tradições ioguicas, sendo algumas bem mais seculares do que outras. Um dos resultados dessa abertura e privatização religiosa do ioga foi o embate entre o materialismo da ciência ocidental e a mística e mágica do ioga medieval (DeMICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Desta forma, o ioga antigo, pautado altamente por uma fisiologia espiritual e pelas crenças populares, perde espaço frente ao progresso e o renascimento do continente indiano e sua entrada em uma economia neoliberal e capitalismo de consumo e, com estes, todos os problemas teológicos que os acompanham, como secularização e privatização religiosa, obrigando aos iogues da geração moderna (re)construírem o seu complexo sistema de crenças, bem como os seus bens de salvação/libertação frente as descobertas da fisiologia biomédica ocidental sobre as suas práticas rituais corporais que tomavam contato agora.

1.4.2 - Ioga moderno

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ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, iogue discípulo de Ramakrishna, líder religioso da renascença indiana, o ioga é considerado como um ideal de religião universal (ver o seu discurso no parlamento em VIVEKANANDA 2007)13. Sendo médico de formação, Vivekananda foi um dos primeiros a ressignificar a fisiologia espiritual do ioga em termos biomédicos ocidentais modernamente (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas; STRAUSS, 2008, p.63).

O ioga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser humano alcança a sua verdadeira liberdade e manifesta a sua divindade interior. Não havia ainda uma pretensão de classificar o ioga como uma “espiritualidade” e, portanto, diferente de “religião”. Vivekananda, na verdade, se propõe a demonstrar, nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade indiana, condensada por ele com o nome ioga, se sustentaria tanto filosoficamente quanto cientificamente e estaria à altura de qualquer outra religião ali representada. Vivekananda dá entrada ao que modernamente se populariza entre os iogues atuais, o início da instituição do ioga como um novo movimento religioso ainda em andamento (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129).

O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religiosidade ioguica e à ciência formado a base intelectual e ideológica de uma geração de iogues que veio depois dele14 (DESIKACHAR et.al., 1980). Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa, tornando-se um dos grandes ídolos do hinduísmo moderno, além de um grande inspirador dos novos movimentos religiosos que primam, assim como o ioga moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como os científicos (NANDA, 2007; STRAUSS, 2008, p.64-65; VALLE, 2008, p.200).

O ioga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos

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E até hoje essa imagem transmitida por ele continua viva nos meios ioguicos ver DESIKACHAR (2006), p.10.

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Referências

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