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A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 119-125)

Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O

4.1. Considerações preliminares

4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o

o relaxamento espiritualizados no convívio social

Há a presença, no conteúdo de todos os iogues entrevistados, da crença de uma certa “harmonia perene” ordenada cosmicamente que é desfeita na experiência nefasta do estresse, responsável pelo desarranjo energético sutil, que viemos expondo desde o capítulo 2. Os iogues no Brasil acreditam no estresse como indicativo corporal e transfisiológico de desvio do caminho divino proposto para cada ser humano, aonde a doença estaria no centro dessa desarmonização em nível psicofisiológico. Mas qual seria a origem de tal sofrimento que tornou possível o estresse tornar-se o obstáculo espiritual, tomando o papel original dos klesas. As práticas do ioga, funcionam no Brasil, como profilaxia e tratamento espiritual de doenças como ansiedade, insônia e depressão. Como comentado por Osiris, com base em artigo científico, quase 20% dos paulistanos sofrem de desordens mentais deste tipo, que possuem como base fisiológica o estresse crônico. O estresse crônico, por sua vez, tem suas razões de manifestação nefasta decorrentes de estímulos psicofísicos decorrentes do meio em que se vive. Assim, desvelar o panorama social aonde vivem e atuam os agentes do microuniverso ioguico brasileiro (alunos/praticantes, professores, mentores e cientistas-monges) pode revelar o âmago de suas transformações soteriológicas em andamento.

O sofrimento humano no Brasil contemporâneo urbano, segundo Dunker, advém na perda de experiência de uma forma de vida social ainda não reconhecida, como apresentado em sua lógica do condomínio (DUNKER, 2015), que abordaremos abaixo. Por ora, me refiro ao sofrimento ioguico brasileiro como busca de uma vida social em harmonia, pois como já argumentamos no primeiro capítulo, o iogue moderno ao abandonar a vida solitária de asceta, se lança na procura da harmonia perene de kaivalya na vida urbana dos grandes centros ocidentais. Como demonstramos na subseção anterior com Guerriero, religiões surgem de contextos sociais e são expressões latentes das maneiras encontradas destes grupos conviverem, resolvendo problemas e adaptando realidades. Portanto, o microuniverso do ioga brasileiro pode refletir uma promessa de vida boa em resposta aos anseios de uma camada específica da sociedade urbana bastante estressada, pois como exaustivamente argumentamos até aqui, os klesas, causa do mal, estão sendo corporificados em reações como desejo, ódio, medo e egoísmo, frutos da ignorância de não saber o que estão fazendo com suas vidas, por isso a crença na ordem cósmica. A crença numa ordem cósmica pode prover de sentido a alienação da vida. Há, talvez, permeando o nosso objeto, uma esperança metafísica (quase milenarista) de um lugar melhor para se viver. O que os iogues brasileiros buscam, talvez esteja, mais do que o egoísta equilíbrio físico e mental, na harmonia social.

A promessa edificada pelos brasileiros, de “harmonia social” e a “imagem de felicidade”, nas expressões do próprio Dunker, podem ter sido colhidas, sobretudo, do cinema e programas televisivos norte-americanos e “revestidas de ascetismo” (ascetismo aqui empregado no sentido de alcançar uma vida), mas refletidas dentro dos condomínios: ilhas imaginárias que refletiriam a ordem nas relações sociais (DUNKER, 2015, p.50-51). Havia, no imaginário brasileiro do início da década de setenta (com a construção de Alphaville em São Paulo) os condomínios como projetos ideários de amor e amizade, de uma vida social sem “muros e grades” (Ibid., p.48). No entanto, complementa o autor, o plano “teológico e metafísico” da vida social harmônica em condomínios no Brasil escapou do esperado:

A forma de vida em condomínios vem sendo retratada, de forma sistemática, como repleta de mau gosto, investida de artificialidade, de superficialidade e esvaziamento. O crime ressurgiu dentro dos condomínios: primeiro, pequenas desobediências de trânsito, depois, consumo de drogas e, finalmente, desavenças entre vizinhos.” (Ibid., p.51).

É possível entrever essa “lógica do condomínio” de Dunker na fala dos iogues. Mesmo não podendo afirmar que todos os iogues brasileiros vivam esse panorama descrito por Dunker, é bem provável pelo público de alta renda que circula no microuniverso ioguico do país que não fuja muito deste cenário. Só para se ter uma ideia, a revista norte-americana Yoga Journal Brasil, especializada em ioga no Brasil, necessita de um investimento de R$16,90/mês, a mensalidade média de duas aulas semanais de ioga gira em torno de R$ 350,00/mês, um curso de formação R$ 4.500,00 e as viagens anuais de peregrinação à Índia não saem por menos do que R$ 15.000,00. Definitivamente, a religiosidade ioguica não é para todo mundo, mas ao que tudo indica, aos moradores dos condomínios fechados de São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizontes e outras cidades de alto poder aquisitivo. De qualquer forma, a narração dos iogues-mentores, que ensinam e convivem com esse grande público, muitas vezes, por mais de um mês - em retiros, cursos de formação e longas estadas nos melhores hotéis da Índia - refletem uma grande insatisfação e estresse com a vida em que vivem:

Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano.

Hermes continua: o personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é.

Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente. Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras.

Rudrá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo.

Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em

Isvara. Não temos consciência dele, mas o ioga ajuda na conexão com deus

que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara.

Andurá: a meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos. Sob o ponto de vista operacional, a meditação é um procedimento autoinduzido e com técnica específica. Mas os dois itens operacionais mais importantes são aqueles que chamamos de “âncora” e de “relaxamento da lógica”. Âncora é um artifício de autofocalização. O relaxamento da lógica

consiste em não se envolver nas próprias sequências de pensamento. Como isso é possível? Ora, mantendo a atenção na âncora, guardando apenas um pouquinho de energia para uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido nelas, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.

Esses discursos denotam, como dissemos, a crença de que existe algo perene, em harmonia eterna e imutável, mas que perdemos ou nos “desconectamos” com o advento do estresse, nos tornando ignorantes, portanto, de quem somos, mas sobretudo, de como vivemos. Essa promessa de harmonia divina é purusa inserido na vida em sociedade. Mesmo na fala do cientista Andurá, há uma crença em algo perene e harmônico que se manifesta “no relaxamento da lógica”. A ignorância, klesa-mãe de todos males, se ressignifica fisiologicamente, no estado do estresse, na “sequência dos pensamentos” que devemos “abandonar” para compreender algo que ainda não conhecemos, que perfaz “nossas máscaras” que os klesas-estresse encobrem. Os iogues julgam que tudo o que pensamos ser faz parte da construção de um “personagem”, de uma ilusão. Imagem muito parecida com a descrição da vida em condomínio retratada acima. É o antigo conceito de maya ou avidya, mas revisitado modernamente por influência da biomedicina, mas a sua origem manifestante pode estar, em última instância, na sociedade em que os iogues vivem e/ou percebem e buscam, como todas as religiões, maneiras de resolver.

O estresse-ioguico pode estar representando agora um desequilíbrio também na vida social, concebido como desordem cósmica pelos iogues. A doença para eles, pode significar um indicativo de viver fora da proposta de Deus, da ordem cósmica, como argumentam. A biomedicina ocidental, ao lado das escrituras ioguicas, também autorizam aos iogues - pela “comprovação científica” – que uma vida em desarmonia, provoca o mal manifesto em doenças advindas do estresse cotidiano e, consequentemente, de uma vida agitada e sem o descanso/relaxamento adequados. Os iogues e os cientistas, podem estar, logo, tecendo uma critica ao estilo de vida moderno, como afirma a cientista Osiris:

Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a

primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. Só para se ter ideia, uma pesquisa recente [2012] com habitantes da cidade de São Paulo, indicou que 20% da população é afetada por desordens mentais de ansiedade. O ioga e a meditação dispõe de meio concretos e de baixo custo para amenizar o sofrimento de muita gente.49

O estresse e o relaxamento, desse modo, parecem estabelecer relação com a nova espiritualidade ioguica brasileira e auxiliam na sua proposta de salvação ou de fim do sofrimento. Mais do que a busca por uma boa vida reclusa e de afastamento social, os iogues modernos almejam alcançar a vida que vale a pena ser vivida no convívio com outras pessoas. É lícito supor, que os iogues que orbitam o seu microuniverso, podem estar propondo, além de técnicas “anti-estresse”, uma via de salvação/libertação que promete a possibilidade de uma existência em comunhão feliz e sem estresse, através de práticas espiritualizadas de relaxamento e busca de uma vida harmônica, tanto psicofísica, quanto social e espiritual.

As informações colhidas nas entrevistas com os cientistas sobre a relação estresse-ioga parecem corroborar as nossas argumentações. As duas falas ioguicas abaixo, novamente reproduzem a dialética estabelecendo-se entre klesas-estresse,

samadhi-relaxamento e kaivalya-homeostase.

Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu.

Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.

O estresse-biológico, como já expomos repetidas vezes, é uma reação autônoma do organismo a qualquer agente/estímulo estressor. Mas na cosmovisão ioguica moderna, a referência ao “reagir”, como vimos no discurso de Shanti acima, é sempre algo “negativo”, o próprio “mal” ou klesa. Portanto, é imprescindível que as práticas ioguicas eliminem ou purifiquem o corpo-mente de suas manifestações.

49

ANDRADE, L.H. et al. 2012. Mental disorders in megacities: findings from the São Paulo megacity mental health survey, Brazil. PLoS One, 7(2): e31879.

Qualquer reação automática - leia-se comportamento - que produza estresse, é geradora inequívoca dos klesas e precisam serem removidas. Os argumentos que os iogues e os cientistas alinharam sobre o estado meditativo/ioga, sugerem que “reagir sem pensar” é prejudicial, causa da dor e sofrimento, portanto. Explico-me melhor: quando o cientista Andurá afirmou anteriormente que o meditador experiente (iogue-mentor ou cientista-monge) perde a sua capacidade tanto de sentir emoções extremas quanto de se envolver na sequência de pensamento, significa que durante esse momento transitório do estado de ioga/meditação, pode controlar as suas reações instintivas, portanto, inconscientes. É o mesmo que Shanti denominou do “reagir sem pensar” como negativo, e que o iogue Rudá asseverou, quando afirma o ioga conseguir removê-lo do “estado de torpor” da sua vida.

Se a resposta inata de luta-fuga, promovida por agentes estressores é o reagir “sem pensar” ou “inconscientemente”, está intrínseco (digamos até biológico-inato) que o estresse se torna um obstáculo para o ioga e sinônimo de klesa, como mostrado no capítulo 2, mas não por motivos biomédicos apenas, mas sobretudo, pois furta transitoriamente a “consciência” do seu “estado presente”, como alguns entrevistados descreveram como empecilho a se atingir o estado de ioga. Relembremos que no capítulo 1, ioga é cessar voluntariamente as modificações da mente/consciência e não extingui-la, como Patanjali no sutra 1:2. A doença, metáfora para o sofrimento espiritual dos iogues brasileiros, pode revelar-se, em nível social, uma existência ignorante50

, de tomada de decisões sem pensar ou viver em “estado de torpor”, como adiantou Rudá. Já é possível conjurar neste momento da reflexão, que o estresse-ioguico pode ser interpretado ultrapassando os reduzidos limites das representações físicas e mentais. A crença na ordem cósmica e energias transfisiológicas, pode justificar o estresse e o relaxamento estarem conquistando caracteres espirituais de convívio social mais benfazejos e seguros.

50

Em termos gerais, o conceito de ignorância que vem do sânscrito avidya, significa ser ignorante da sua real natureza e do seu real relacionamento com o mundo, que resulta em instância espiritual, sofrimento (ver JOHNSON, 2010, p.40).

4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 119-125)