• Nenhum resultado encontrado

O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 139-144)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade

Os hatha-iogues como apresentamos no primeiro capítulo, muito antes dos iogues modernos, já se imbricavam com a profilaxia de doenças por meio da dialética estabelecida com a medicina ayurveda, como também numerosos exemplos de obtenção de perfeição corporal, beleza e outros poderes físicos e transfisiológicos. No entanto, havia uma preocupação em afastar-se do convívio social para se alcançar a libertação (kaivalya) e tais poderes adquiridos por meio de suas práticas rituais (samadhi). Como já expomos no primeiro capítulo, o iogue acredita na sua alma imaculada (purusa) e em equilíbrio divino (estado sattvico). O contato da alma imaculada com o mundo fenomênico, ou seja, o mundo sensível, logo, em relação com outras pessoas, o complexo corpo/mente-alma (prakrti) pode estar propenso a originar as agitações na mente/consciência (os citta-vrttis), estes os klesas e, por fim, o sofrimento (dukha). Por isso, nas escrituras medievais do ioga, afirma-se:

I:12. Deve-se praticar Hatha Yoga em uma pequena e solitária ermida (matha), livre de pedras, água e fogo (excessiva exposição aos elementos naturais), em uma região onde impere a justiça, a paz e a prosperidade. (KUPFER, 2002, p.19)

I:14. Neste lugar, o yogi, livre de toda preocupação, dedicar-se-á unicamente à prática do Yoga, seguindo as instruções do seu guru. (Ibid., p.20)

Mas quando o ioga encontra o ocidente, esse panorama se inverte, e os iogues são convidados a participar mais “ativamente” do convívio social. No primeiro capítulo, descrevemos extensivamente sobre os motivos de tais transformações. Algo, no entanto, permaneceu, como as energias transfisiológicas, a ordem cósmica e a corporificação de tais símbolos. Mas ao invés da fisiologia e anatomia advinda do

ayurveda, houve a sua ressignificação a partir da ciência biomédica (ver capítulos 1 e

2).

Victor Turner nos alerta que é bastante comum que os aspectos cognitivos adquiridos nos espaços liminares (samadhi) serem simbolizados pela fisiologia humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas metáforas, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente difundido: o de que o corpo humano é um microcosmo do universo” (TURNER, 2005 p.153). O que buscamos revelar, no entanto, é que o conhecimento adquirido pelo

samadhi em busca de kaivalya pode estar estabelecendo relação direta com a

permanência da crença na ordem cósmica e, portanto agora, com a harmonia do corpo. Mas a ordem social pode se articular “nos termos de um paradigma humano anatômico” também (Ibid.). E continua:

O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).

O que o iogue moderno busca, entretanto, pode não ser em almejar um mundo celestial, no sentido de fora desta realidade, mas transformar a sua própria realidade a partir do conhecimento apreendido pelos encontros liminares em samadhi. Dito de outra forma, para os iogues modernos que renunciaram viver afastados da sociedade,

kaivalya e samsara podem estar coexistindo no mesmo mundo real, mas numa

transcendente seria adquirido, como já expomos, dos samadhis vivenciados a cada aula ritual de ioga. Samsara, considerado o mundo como normalmente experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo o local gerador dos klesas e do sofrimento. Mas o sofrimento no ioga advém do klesa-ignorância, logo, é um sofrimento desconhecido, um mal-estar: uma aflição mal definida ou indisposição que não chega a configurar doença51

. O praticante sabe que sofre, mas não o por quê: ele está alienado, ignorante do real motivo do seu sofrimento. A ideia de kaivalya, a libertação final do ioga, a partir da sua fase moderna que desenvolve-se no centro urbano das grandes cidades ocidentais, é lícito supor, tecer diálogo com o mundo fenomênico, consequentemente, com o outro também: adquirir, de alguma forma, certa alteridade. Afirmamos isso, baseando-se na discussão da passagem do ioga medieval para o moderno, quando abandona aos seus votos de asceta renunciante que se retirava nos ashrams das florestas indianas (SARBACKER, 2008, p.173-177).

O pesquisador Sarbacker, a partir do processo ritual do ioga descrito na subseção anterior, vai associar a experiência advinda do samadhi/liminaridade com a aquisição dos iogues de certo poder numinoso ou estado de divindade. Segundo ele, essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada, como já comentamos, com beleza física, um corpo sem doenças, mas também a aquisição de uma “alteridade espiritual” na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade ou distinção espiritual frente ao meio social, a partir do poder simbólico de suas deidades em conjunto a gnosis advinda do samadhi, pode ter desenvolvido a ideia de que os seus rituais edifiquem no praticante uma certa convicção - disposição, vontade, motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive. Traduzido, como explica Jain, no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade planetária (JAIN, 2010, p.95-129).

As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177.).

51

Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker quando expõem relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam drasticamente o estilo de vida:

Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo bem, está certo, temcoisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.

E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya]. No momento quando eu via o Yoga aind como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo motive para a prática de Yoga. Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo econsequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era s uma questão física (NUNES, 2008).

A questão da alteridade espiritual desenvolvida no praticante, pode o capacitar positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os

klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. Segundo o autor, o samadhi/liminaridade desenvolveria no praticante a fé, como “aquisição” de certa

“divindade” que os rituais iriam lhe proporcionando:

O estúdio [sala moderna onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).

O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza distintiva de um outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um

caminho para Deus, esclarece:

Que tem Yoga com tudo isso?

Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno. Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.

Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!”

Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32).

Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar- nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20).

É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).

As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta convicção do poder do ioga como “caminho para Deus” ou “libertação salvadora”, argumentados por Sarbacker. Não é coincidência também que Hermógenes e DeRose tenham se tornado, por anos no Brasil, duas autoridades sobre a “verdade” do ioga. O primeiro exaltando o sincretismo, e o segundo uma perspectiva tradicionalista do ioga no Brasil. A convivência de ambos pensamentos, entretanto, não eliminou nenhum nem o outro de atuarem no país. Pelo contrário, ambos jeitos de viver o ioga brasileiro, apesar de contendas descritas ao longo do capítulo 3, pode ter fomentado a diversidade e singularidade que buscamos evidenciar desse ioga. A similaridade entre ambas cosmovisões em processo ainda no Brasil está na promessa de cura pelo Hermógenes, e de crescimento pessoal em DeRose, ambos, como vimos, sinônimos de salvação religiosa.

Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal”, pode estabelecer dialética com a saúde. No entanto, a cura restaurativa/illness não deve estar centrada egoisticamente em si-mesmo, caso contrário, o iogue incorre na dor decorrente do klesa-egoísmo. A cura restaurativa em direção a kaivalya, portanto, deve abranger numa transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio “samsara” em mundo melhor.

5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 139-144)