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Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 144-148)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como

Como argumentou Balsev no segundo capítulo, podemos associar modernamente os klesas - os clássicos obstáculos a vida espiritual plena no ioga, causa de um viver ignorante ou “inconsciente” - não somente ao estresse, mas a sentimentos e emoções específicas como desejo, ódio, medo e egoísmo (BALSEV, 1991). Sabe-se, pela psicofisiologia, que a sensação de medo pode ser o principal gatilho para a resposta de luta-fuga do estresse, mas também de explicações religiosas (FULLER, 2008, p.28-49). Robert Fuller explica em seu livro Spirituality

in the flesh, no capítulo Religion and natural selection, que as emoções podem ser

estratégias adaptativas, e que o medo poderia estar envolvido na criação, por exemplo, de anjos e deuses protetores no intuito de aplacar as mais profundas ansiedades e angústias humanas. O autor nos fornece o exemplo da imaginação apocalíptica, esclarecendo que, se esta crença sobrevive mesmo em tempos modernos, seria lícito presumir que ela esteja incorporada em nossas mais íntimas motivações, mais do que puramente fruto da cultura erigida por um povo (Ibid., p.32-33).

Logo, o medo, como principal acionador do estresse no ioga, pode estar estabelecendo relações com a ideia negativa da “aniquilação da consciência” ou do “viver entorpecido”, como alguns iogues comentaram. As práticas ioguicas corporais modernas, para o brasileiro, poderiam estar funcionando para o libertar, ao invés de samsara (pois no Brasil reencarnar é algo positivo), do medo. Mas medo do quê? Difícil afirmar algo, mas provavelmente os klesas possam estar envolvidos nesta construção narrativa.

Resgatando as contribuições de Balsev sobre os klesas do segundo capítulo, o sentimento de desejo como desdobramento emocional do klesa-apego, pode ser associado a carência de algo, de sentir falta ou do próprio medo de não ter, de faltar. O ódio, emoção negativa advinda do klesa-aversão, é uma das principais respostas emocionais ao medo também, sobretudo quando não temos o que desejamos. O egoísmo, definido quando um indivíduo coloca os seus desejos acima dos demais ou não considera o dos outros, guardaria em si a força de irromper o sentimento anterior de ódio ou a emoção do medo ao estranho, logo, do diferente de mim. Visto

por essa ótica estritamente psicofisiológica, todos os klesas, carregam em si as mesmas reações do estresse ao medo: de estar constantemente em alerta, em prontidão para lutar ou fugir. As metáforas corporais do ioga moderno descritos ao longo deste capítulo, de desconexão com o viver, do vazio, do torpor e outras similares, podem indicar que os agentes espirituais do microuniverso do ioga brasileiro venham de encontro a buscar soluções para o sofrimento de si-mesmos e da sua comunidade, sobretudo da alienação ou ignorância de quem são e qual papel devem ocupar na sociedade e suas próprias vidas, consequentemente. Esse indivíduo social que vive com medo e em “alerta”, logo, se não carecesse de nada, não desejaria; e assim, sofreria bem menos os efeitos nefastos do medo desencadeador do estresse/klesa, promotor em última instância, da “extinção momentânea da consciência”, do “estado de ioga” ou da alienação. As práticas corporais do ioga, a partir disso, extrapolam os fins orgânicos, eles abarcam uma dimensão espiritual de cura no sentido da doença/illness comentado por Hanegraaff anteriormente.

Quando a cientista Osiris coloca que o principal motivo dos iogues com quem convive é “não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada”, conjura os argumentos acima. Dito mais simples, a ignorância (klesa-mãe), pode manifestar-se no desejar o que não se têm ou, estar socialmente despossuído de acesso a isso. A cientista Osiris, moradora de São Paulo e pesquisadora de técnicas meditativas/ioguicas como terapia, durante sua fala cita um artigo científico sobre como a ansiedade é comum nos grandes centros urbanos brasileiros, como já comentamos. A chave para o fim da angústia existencial que perturba o microuniverso ioguico, pode centrar-se assim, na extinção do medo de uma parcela de brasileiros da classe média social através das suas práticas espirituais. Um medo de não ter como satisfazer os seus desejos, de odiar por não ter, e/ou do medo egoísta de colocar os seus apetites acima dos outros. O medo, como gatilho psicofisiológico acionador do estresse, transforma-se, devido aos iogues-mentores e cientistas-monges, em sinônimo do klesa-mãe Ignorância, pois “furta a consciência”, “desconecta da realidade”, afasta os seus da ordem cósmica, aproxima-os de doenças, mas sobretudo, aliena-os no sentido hegeliano aonde a consciência se afasta de sua real natureza52

, purusa. A doença, na nova doutrina ioguica sendo

52

Alienação: no hegelianismo, processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada de sua real natureza. Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press (português).

estabelecida, como ansiedade, depressão, insônia e demais ligadas ao estresse- ioguico, a manifestação última do afastamento de purusa ou da alma com Deus.

Assim, as vivências espirituais liminares do samadhi, sinônimo da momentânea extinção do estresse-ioguico, podem estar relacionadas as práticas corporais purificadoras do estresse e ordenadora das energias cósmicas. A via, no entanto, mais segura para a promessa de purificação do klesa-estresse, logo, pode estar pautado no relaxamento conduzido em nível espiritual. Em suma, a dialética é simples: a experiência transitória do samadhi é central nas práticas ioguicas, pois contrária à manifestação dos klesas; assim como, a experiência do relaxamento somente manifesta-se na ausência do estresse ou medo, seja em nível fisiológico, psicológico ou social, mas também agora, em nível espiritual.

As obras do Prof. Hermógenes são ricas em construções espiritualizadas entre saúde, harmonia e salvação que buscamos elencar. No capítulo O que é curar-se do livro Yoga para nervosos, Hermógenes evidencia um estado de perfeita harmonia alcançado pelo relaxamento obtido nas práticas corporais do ioga: “Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade” (HERMÓGENES, 2011, p.81).

E sattva, no glossário do mesmo livro, representa “o princípio de sabedoria, serenidade, santidade...” (Ibid., p.465). Já vimos que sattva simboliza também, pautado nas escrituras antigas do ioga, uma experiência transitória de equilíbrio perfeito e de comunhão com Deus. O conceito de sattva, portanto, pode ser compreendido metaforicamente a um equilíbrio das forças energéticas que governam os corpos suprassensíveis. Kaivalya, a libertação ou estado Último do ioga, como já discutido no primeiro capítulo, representaria a conservação eterna do estado sattvico, quando as forças maléficas dos klesas, enfim cessariam definitivamente de agir (ver capítulo 1, subseção 1.2).

O Prof. Hermógenes, no livro Yoga: caminho para Deus, no capítulo que trata especificamente do hatha-ioga, A austera disciplina, diz:

Se o caminhante tem as pernas frágeis para tão longe e duro caminho, deve fortalece-las antes de começar a andar. Quando os Mestres aconselham “pratiquem tapas” estão querendo salvar os caminhantes de uma provável derrota. Ela [tapas] não é para os que cedem às fadigas, aos desconfortos, às

ciladas, aos desafios, às barreiras... O yoguin, praticando tapas, queima, no fogo da austeridade, as sementes da impureza. E defende-se de todos os cansaços, desânimos, preguiças, fossos e fossas. Tapas é para dar ao corpo higidez, energia, resistência e para prolongar-lhe juventude e vida. Hatha Yoga é para aprimorar o corpo como instrumento. Para o yoguin, “o corpo é o templo do Espírito Santo”. Tapas conserta, aprimora e purifica o templo (HERMÓGENES, 2006, p.81-82).

Em outra passagem do Yoga para nervosos, no capítulo Os milagres do

relaxamento, do Prof. Hermógenes, a relação relaxamento-samadhi ou “libertação” é

evidenciada como um “milagre”:

Nem mesmo os psicotrópicos mais fortes, administrados pelo especialista [da área médica psiquiátrica], tinham conseguido fazê-la dormir. Havia seus dias porém que, sem qualquer medicamento, vinha dormindo normalmente. Havia seis dias que lhe ensinara a relaxar. O semblante de felicidade com que contava sua libertação convenceu a todos [ele estava em uma conferência médica] de que, de fato, o “milagre” ocorrera (HERMÓGENES, 2011, p.69).

Como vimos na seção 2.2 desta tese, Teoria dos klesas corporificada:

sinônimo de estresse e emoções, o pesquisador Benjamin Smith (2008), analisando

um dos métodos modernos mais populares do hatha-ioga, conclui que tapas é o fator primordial nas tradições modernas do ioga. O conceito de tapas se materializaria no intuito de elevar o calor corporal, eliminando “no fogo de tapas” todas as “substâncias nocivas ao corpo” ou, como coloca Hermógenes acima, “as sementes da impureza”. É a mesmo lógica discursiva. Como expomos, são os klesas a presença nociva e impura a serem expurgados para o firme reestabelecimento da “higidez” ou a boa saúde, como nos explica Hermógenes.

Já discutimos também que o estresse, em nível psicofisiológico científico, desestabiliza o organismo, removendo-lhe da sua homeostase ideal, de um estado de equilíbrio dinâmico no jogo bioquímico que só tem fim na morte. O organismo passa a sua vida inteira se ajustando psicobiologicamente, em uma eterna e vã luta por um estado de homeostase eterno que não pode ser alcançado em vida. Talvez, como fruto da ressignificação que a doutrina e prática do ioga sofreu modernamente, kaivalya tenha se traduzido, dentro da linguagem de uma fisiologia da religião, na conquista de um estado homeostático eterno e divino. Mas para isso se confirmar, seria necessário que o braço forte do hinduísmo, que percebe o ioga como darsana (ou lit. um ponto de vista filosófico-religioso), diminuísse a sua pressão legitimadora. Em outras

palavras, seria preciso que a ortodoxia e o tradicionalismo se calasse e o hibridismo com a sua permissividade sincrética se revelasse, para que novas soluções religiosas surgissem. No Brasil, ao longo de décadas, esse panorama se fez dominante. Além disso, o Brasil e os seus problemas sociais podem estar servindo de diretriz para os líderes do ioga aqui, identificarem outras as causas do sofrimento humano.

5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a

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