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Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 115-119)

Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O

4.1. Considerações preliminares

4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade

identidade religiosa

Como vimos em outros capítulos, o ioga moderno se adaptou no seu deslocamento da Índia para os centros urbanos das grandes cidades ocidentais. O racionalismo empírico da ciência proporcionou a popularização do ioga como promotor da saúde via as suas repercussões fisiológicas de diminuição do estresse pelo relaxamento de suas práticas. O iogaterapia e o sincretismo religioso do Prof. Hermógenes no Brasil marcaram uma época mais híbrida do ioga, por outro lado, o seu aspecto físico foi, ambivalentemente, sendo mais ressaltado do que as suas escrituras advindas da espiritualidade hindu. Esse fato autorizou novos “iogas” e agentes surgirem ao microuniverso ioguico brasileiro, inclusive cientistas, sobretudo a partir dos anos de 2000 com a influência do ioga e cientistas-monges norte- americanos. Assim, a demanda também se diversificou. Nem todos buscam as aulas de ioga para a transcendência e comunhão com Deus, mas para diminuir dores nas costas, emagrecer, aumento do rendimento esportivo e etc. (SINGLETON, 2010).

O que está em jogo, entretanto, defendo, talvez não esteja na preocupação pela elevação do aspecto corporal e medicamentoso do ioga em contraposição à sua espiritualidade. A questão por trás no Brasil pode estar na transição da hegemonia do discurso híbrido para o despontar da ala tradicionalista em resguardo a legitimidade do ioga como espiritualidade singular no Brasil. Esse provável deslocamento sensível que vem ocorrendo imprime os tons de transição de discursos e marca a chegada de novos líderes e a saída de outros.

Ravi: O ioga passa por mais uma transição. A comunidade ioguica no Brasil melhorou dos tempos dos anos de 1980. Há alguns iogues de interesse sério, que falam a mesma linguagem, mas há outros que se preocuparam apenas com os ásanas (competição e moda). Ioga é para dar liberdade. Ioga é meditação. Mas no mundo moderno o ioga se desvinculou da meditação, por estar muito vinculado as posturas que compete com a educação física e perde espaço pela incompetência dos professores de ioga. A “Americanização do ioga” é sinônimo da predominância do lado físico do ioga. Muitos esqueceram-se da meditação, desatrelou-se uma coisa da outra.  Hermes: Estamos em uma fase de transição da fisicalidade para a não fisicalidade. Não há resgaste do ioga, mas uma correção de direção. (...) O ioga hoje esta sendo recontada por indianos, assim, passa-se por uma transição que a revisa pelo olhar dos próprios indianos. O ioga atual está todo errado, foi interpretado incorretamente.

Shanti: Em 2000 eu e o Ganesh dávamos cursos e lotava. Hoje não é mais assim. Acredito que ainda existe uma procura, mas há mais gente e tipos de ioga e assim, diminuiu a demanda. Há a concorrência com o pilates, [ginástica] funcional e novos estereótipos do ioga... Há um preconceito com os professores de ioga que cresce na mídia [cita a série da TV brasileira “Surtadas do Yoga” que é transmitido pela GNT como exemplo].

Bento ironiza: Todo mundo no ioga brasileiro se acha parte da centelha divina.

Osiris: Há uma tribo de iogalike... querem fazer parte de um grupo. O grupo do ioga é cool.

O principal aspecto que se mostra é a preocupação dos iogues e cientistas entrevistados à exagerada perspectiva física do ioga que se sobrepõe às manifestações, segundo eles, mais sutis e espirituais. O iogue DeRose, por exemplo, substituiu o nome “swasthya yôga” que carregou por décadas em suas escolas, para “Método DeRose” em meados de 2007-2008. Como ele mesmo relata em sua entrevista: “Precisei reformular-me e migrar do setor ioga para o setor cultural. O ioga está em um período de transição, sem dúvidas”.

Entre os iogues, é possível perceber uma mudança na forma como eles se percebem e à sua comunidade. Hermes diz que inclui ásanas em suas aulas, por exemplo, de forma estratégica e mercadológica, pois afirma: “As pessoas não querem ioga, querem o que veem nas revistas”. Ele inclusive confirma adicionar em sua formação de ioga muito de “saúde” para satisfazer os alunos, mas depois do primeiro mês começa a mudar o discurso para incluir a mente, o inconsciente e depois a “criação do espaço mítico [sic]”, influenciado, segundo ele, pela tradição dos Nathas (iogues medievais indianos) e tântricos (ELIADE, 2001, p.180-198). A iogue entrevistada Shanti declara algo bem parecido. Ela afirma que “o ioga sempre a salva”, mas com receio de tratar do ioga como religião e ser “mal interpretada”, direciona o conteúdo religioso no qual acredita, durante a prática física do ioga, que ela mesmo define “como um ritual em cima do mat [tapetinho de prática]”. E é esse ritual que possibilita seus alunos “conectarem-se novamente”:

Shanti: Prefiro enganar as pessoas que o ioga não é religião, pois sei que depois da prática elas vão se sentir conectadas, e isso é religião para mim. As pessoas do ioga não falam de religião, pois querem ter mais alunos. Bento: No Brasil há um preconceito entre as religiões e os espaços de ioga. Mesmo entre os iogues, recebo muitas críticas devido as minhas relações com o cristianismo. Vou ser sincero com você: esse mercado do ioga é pior do que o da telefonia aonde eu trabalhava.

Centurion: Ioga no Brasil é business. Há uma briga por poder no ioga, mesmo na Índia.

Vishnu: O ioga possui um mercado e por isso não se falam em religião. O ioga se divide em estado de ioga-meditativo e um método ou prática. Este segundo é igual a qualquer outra religião.

Os iogues entrevistados chegam a declarar, como lemos, que omitem a se pronunciar sobre a religiosidade do ioga no qual acreditam abertamente para “não perderem alunos”. Não porque consideram algo menor intelectual ou ideologicamente, mas por questões de estratégia de mercado e adaptação social. Com o movimento da renascença indiana no início do século XX, como apresentamos, a religiosidade ioguica foi sendo traduzida pelos experimentos da ciência biomédica sobre as suas práticas. Desse modo, podemos supor que os resultados terapêuticos do ioga se sobrepuseram aos da sua ética espiritual, portanto, dos klesas. Não seria surpresa constatarmos que além dos klesas estarem sendo encarnados em estresse e emoções, o samadhi e kaivalya, venham também construindo correspondentes igualmente corporificados. Relembrando que samadhi aqui é interpretado como uma vivência religiosa transitória advinda das práticas corporais do ioga; e kaivalya o estado de libertação final das agruras da vida, portanto, o fim permanente da ação dos

klesas, logo, do estresse-ioguico.

Como alerta Joseph Alter, o conceito de saúde foi ganhando novas perspectivas no contexto ioguico moderno e abrindo espaço para o espiritual como um modelo de terapêutica religiosa (ALTER, 2004, p.XII). Esse modelo estende-se também para os círculos acadêmicos como podemos assistir em hospitais e o próprio ministério da saúde brasileiro (SIEGEL, 2010). Entretanto, o proselitismo do ioga moderno em difundir-se como uma terapêutica religiosa imbricada com a ciência, e sem uma organização mais formal de estrutura religiosa, pode estar abrindo o leque de opções ioguicas no mercado religioso a tal ponto dos iogues perceberem a sua religiosidade sem contornos definidos.

Com isso, a ala ortodoxa ioguica no Brasil levanta a sua voz com receio de assistir passivamente a extinção do ioga pela “corporificação excessiva”, como alguns comentaram nas entrevistas que fizemos. Esses fatos, defendo, podem estar contribuindo para que diversas “linhagens” de ioga surjam competindo no mercado religioso brasileiro. A resposta do microuniverso ioguico do país frente a esse

panorama atual, pode refletir no retorno de discursos mais tradicionalistas, herdeiros da ortodoxia de DeRose, como se lê nas audições de Ganesh e Hermes:

Ganesh: o ioga é uma espiritualidade originalmente. Eu gosto da palavra “resgate”. Me considero responsável pelo resgate da tradição do ioga no Brasil. Faço parte de uma tradição ancestral de ioga. Há uns malucos neo- iogues que pregam algo diferente da tradição. Se utilizam de conceitos do vedanta sem fazer parte da tradição e misturam com um pensamento mágico... Eu sou contra a isso. Eu sou um guardião da tradição do ioga original. Sou seguidor de um sidantha. A minha opinião não serve para nada, pois eu falo através da tradição, não do meu ego. Me preocupo em não distorcer a palavra do vedanta, pois a visão do ioga é plenamente em si mesmo e plena. Não pode ser acrescida e nem tirada. É uma posição ortodoxa, irredutível, tenho consciência disso e não me arrependo, pois respeito a tradição. O ioga é uma visão que mostra uma possibilidade para você perceber-se vinculado com algo que você já é, e no qual você têm lampejos ou intuição, mas que você ainda não percebeu plenamente. É um método de transmissão dessa visão da tradição.

Hermes: O ioga tinha uma verve de terapia no seu início aqui no Brasil. Haviam aqueles que praticavam o ioga como terapia. Isso foi errado. O ioga não é uma terapia.

A crítica dos iogues no Brasil, dessa forma, pode não residir na fisicalidade do ioga, mas no seu pragmatismo terapêutico, ou seja, pelo seu exclusivo uso prático na remissão de doenças psicofísicas. O que, percebem os iogues-tradicionalistas, autorizam a entrada indiscriminada dos cientistas-monges e competição na legitimação das suas escrituras e práticas. No entanto, não há uma crítica direta a ciência, ou seja, ela continua importante mesmo aos iogues tradicionalistas que se mostram contra a fisicalidade de suas práticas. Verifico que a reforma soteriológica do ioga em andamento com relação aos klesas, talvez não exortarão as descobertas científicas; nem mesmo os iogues ortodoxos como Ganesh, Hermes e DeRose parecem intentar esse fato. Abaixo, descreverei com mais propriedade a dialética estabelecendo-se entre saúde-salvação-kaivalya e relaxamento-prática-samadhi, no intento de corroborar com estudos de outros países que já apontam o ioga como religião (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2010):

Shanti: Não precisa ter fé no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças [sic]. (...) as aulas de ioga precisam ser preenchidas de espiritualidade.

Rudrá: Não quero dar aula para pessoas doentes. Quero e sempre dei aulas para pessoas sãs. Mas sei que a prática pode prevenir de doenças, pois diminui o estresse. Posso relatar por experiência que os alunos vão

percebendo que a sua saúde melhora com a prática. A prática de ioga aumenta a consciência sobre a própria saúde.

Os iogues mais tradicionalistas parecem já ter percebido que a relação estreita ciência-ioga estabelecida ao longo de mais de cem anos, tem ultrapassado os ditames materialistas da ciência empírica. Essa aliança tríplice, marcada pelo diálogo entre iogues híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges - nem sempre pacífica mas em equilíbrio dinâmico – é a possível responsável em comandar uma reforma em processo da proposta salvífica do ioga moderno no Brasil, mesclando dados da fisiologia biomédica sobre as práticas ioguicas e de seus antigos conceitos espirituais:

klesas, samadhi e kaivalya.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 115-119)