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Disciplina-ressignificação do corpo: imagens da educação na arte

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Academic year: 2021

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Programa de Pós-Graduação em Educação (Doutorado)

Universidade Federal Fluminense

ADRIANA MARIA DA SILVA

DISCIPLINA-RESSIGNIFICAÇÃO DO CORPO: IMAGENS DA

EDUCAÇÃO NA ARTE

RIO DE JANEIRO JULHO/2018

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EDUCAÇÃO NA ARTE

ADRIANA MARIA DA SILVA

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do título de Doutora em Educação.

Linha de Pesquisa: Filosofia, Estética e Sociedade Orientadora: Profª. Drª. Martha D’Angelo Pinto

RIO DE JANEIRO JULHO/2018

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NA ARTE

ADRIANA MARIA DA SILVA

Apresentada em: 09/07/2018

BANCA EXAMINADORA

Defesa de Tese – Doutorado

________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Martha D’Angelo Pinto – Orientadora

UFF

________________________________________________________ Profª. Drª. Eda Maria de Oliveira Henriques

UFF

________________________________________________________ Profª. Drª. Viviane Furtado Matesco

UFF

__________________________________________________________________ Profª. Drª. Sheila Cabo Geraldo

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Profª. Drª. Reuber Gerbassi Scofano UFRJ

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Hussak Van Velthen Ramos

UFRRJ (Suplente Externo)

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AGRADECIMENTOS

À professora Martha D’Angelo, por acolher e apostar no processo de criação daqueles que “não conseguem contemplar o mundo sem se comover”.

Às professoras Sheila Cabo e Viviane Matesco, por suas valiosas contribuições por ocasião do projeto de qualificação, pela generosidade e disponibilidade em fazer parte também da banca de defesa de tese.

À professora Eda Henriques, por ter aceito, gentilmente, o convite para participar da banca de defesa de tese.

Ao professor Reuber Gerbassi Scofano, por inspirar o meu retorno à pesquisa desde 2009 e por ter aceito, generosamente, o convite para compor a banca de defesa de tese. Ao professor Pedro Hussak, pela amizade estabelecida durante o meu percurso como professora substituta na UFRRJ, que continua animando os meus caminhos estético-educativos, e pela disponibilidade generosa em fazer parte da banca de defesa de tese. Ao professor Iraquitan Caminha, pelas contribuições durante todo o meu percurso na pesquisa.

Ao meu companheiro, Fernando Castellões, por todo amor, dedicação, incentivo, cuidado e aposta em nossa vida, e às nossas filhas de quatro patas: Dory, Lua, Mel e Sandy, por renovarem as minhas energias durante todo o meu processo criativo.

À Aline Maria da Silva, irmã, mãe da Nina e minha grande inspiradora.

À Guilhermina Silva de Abreu Pithan (Nina), que tem me tornado tia, enchendo de múltiplas tonalidades o meu mundo.

À minha avó, Marluce Ferreira da Silva, por ter me oportunizado uma educação escolar que me lançou à busca por outros modos de fazer e de pensar a educação. À minha mãe, Quézia Maria da Silva, por todo incentivo, amor e cuidado.

A todos que fazem parte do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), professores, coordenadores, técnicos, funcionários, em geral, e alunos que contribuíram, direta ou indiretamente, para o desenvolvimento desta pesquisa.

À Wilne de Souza Fantini, pela amizade, parceria, interlocução e por todas as relevantes intervenções que contribuíram significativamente para a finalização desta pesquisa.

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abraços, cumplicidade e cuidado.

À Fernanda Castro, por quatro anos de “com-inspirações”.

Aos meus amigos da vida inteira, por todas as nossas experiências estético-educativas, cujos estilhaços provocaram e tornaram possível o advento desta pesquisa, em especial: Kempes, Overarth, Carolina, Michele, Talita, Alexandre e Gisa.

Aos “aprendentes-ensinantes” que arrebentaram a pele das minhas reflexões e deram corpo e carne a este texto.

Ao professor Gustavo Gavião, da Escola Sesc de Ensino Médio, por ter permitido o meu acesso ao seu acervo particular de títulos de arte.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que tornou possível a realização desta pesquisa, através de incentivo financeiro.

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Meu corpo é o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne.

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Autora: Adriana Maria da Silva Orientadora: Martha D’Angelo Data da defesa: 09/07/2018 Número de páginas: 194

RESUMO

Esta tese tem como objetivo principal analisar o corpo e a disciplina a partir da filosofia de Merleau-Ponty (1908-1961) e da experiência estético-educativa desenvolvida nas proposições da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988), notadamente entre as décadas de 1950 e 1970, considerando a possibilidade de uma disciplina-ressignificação do corpo. No que se refere ao pensamento de Merleau-Ponty, pretendeu-se elaborar uma análise sobre a reinterpretação corpórea enquanto uma epistemologia possível. No que diz respeito à experiência estético-educativa, buscou-se pensar, com o aporte teórico e as produções da arte que se desdobraram na fronteira entre o moderno e o contemporâneo, as questões estéticas que envolvem a produção do conhecimento na contemporaneidade. Nessa perspectiva, as análises desenvolvidas nesta pesquisa se dirigem ao amplo domínio da educação, não intentando, portanto, refletir as questões do corpo, da disciplina e da arte no âmbito específico da prática educativa escolar. Para tanto, propõe-se um deslocamento conceitual do termo disciplina, que foi abordado pela lente dos processos de criação artísticos, liberado das representações conceituais usualmente adotadas no contexto hegemônico da educação. De modo diverso, a disciplina foi encarnada no corpo que se movimenta e cria modos de ser e de conhecer, a partir da reelaboração das suas significações e da sua reorganização gestual. Para se perseguir o propósito desta pesquisa, algumas questões de fundo orientaram suas análises, a saber: Como as proposições pedagógicas da modernidade ainda fundamentam a formação do homem nos dias atuais, tendo como referência as temáticas do corpo e da disciplina? Em que medida a filosofia de Merleau-Ponty fornece subsídios para a compreensão e a reinterpretação da corporeidade enquanto aspecto basilar para a construção do conhecimento? É possível encontrar na arte contemporânea, notadamente nas produções da artista brasileira Lygia Clark, experiências estético-educativas que ajudem a refletir sobre a possibilidade de uma disciplina-ressignificação do corpo nas propostas formativas da atualidade? Isso posto, destaca-se que se adotou como metodologia a abordagem qualitativa, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, a partir do levantamento e análise de referências primárias e secundárias que versam sobre as temáticas do corpo, da disciplina e da arte contemporânea. Emprega-se também a análise de fontes documentais, tais como: conteúdo fílmico, fotografias e obras artísticas. Finalmente, a tese tem o propósito de contribuir para a ampliação das reflexões sobre a valorização do aspecto corpóreo nos processos educativos, por meio de um saber incorporado que concilia as dimensões sensível (corpo) e racional (pensamento), transgredindo as construções epistemológicas artificiais, abstratas e distanciadas da vida.

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Auteur: Adriana Maria da Silva Guidage: Martha D’Angelo Date da presentation: 09/07/2018 Nombre de pages: 194

RÉSUMÉ

Cette thèse vise à analyser le corps et la discipline à partir de la philosophie de Merleau-Ponty (1908-1961) et l'expérience esthétique-éducative développée dans les propositions de l'artiste brésilienne Lygia Clark (1920-1988), en particulier entre les décennies de 1950 et 1970, envisageant la possibilité d'une discipline-re-signification du corps. En ce qui concerne la pensée de Merleau-Ponty, il est prévu d'élaborer une analyse sur la réinterprétation corporelle comme une épistémologie possible. En ce qui concerne l'expérience esthétique-éducative, se cherche à penser, avec la contribution théorique et les productions de l'art qui se déroulent à la frontière entre le moderne et le contemporain, les questions esthétiques qui impliquent la production de connaissances dans le monde contemporain. De ce point de vue, les analyses développées dans cette recherche sont orientées vers le vaste domaine de l'éducation, sans chercher, par conséquent, à refléter les questions de corps, de discipline et d'art dans le champ spécifique de la pratique éducative scolaire. Pour cela, un changement conceptuel du terme discipline est proposé, qui sera abordé par l'objectif des processus de création artistique, libéré des représentations conceptuelles habituellement adoptées dans le contexte hégémonique de l'éducation. D'une manière différente, la discipline s'incarnera dans le corps qui bouge et crée des manières d'être et de savoir, à partir de la ré-élaboration de ses significations et de sa réorganisation gestuelle. Afin de poursuivre le but de cette recherche, quelques questions fondamentales ont guidé nos analyses, à savoir: Comment les propositions pédagogiques de la modernité fondent-elles encore la formation de l'homme de nos jours, en se référant aux thèmes du corps et de la discipline? Dans quelle mesure la philosophie de Merleau-Ponty nous fournit-elle des idées pour la compréhension et la réinterprétation de la corporéité en tant qu'aspect fondamental de la construction de la connaissance? Peut-on trouver dans l'art contemporain, notamment dans les productions de l'artiste brésilienne Lygia Clark, des expériences esthétiques-éducatives qui aident à réfléchir sur la possibilité d'une discipline-re-signification du corps dans les propositions formatives actuelles? Ça en place, il est souligné que la méthodologie adoptée est d'approche qualitative et il est utilisé de la recherche bibliographique, à partir de l'enquête et l'analyse des références primaires et secondaires qui traitent des sujets du corps, la discipline et l'art contemporain. Il est également utilisé l'analyse des sources documentaires, telles que: le contenu du film, des photographies et des œuvres artistiques. Enfin, la thèse vise à contribuer à l'élargissement des réflexions sur la valorisation de l'aspect corporel dans les processus éducatifs, à travers une connaissance intégrée qui concilie les dimensions sensible (corps) et rationnelle (pensée), transgressant les constructions épistémologiques artificielles , abstrait et éloigné de la vie.

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INTRODUÇÃO ... 14

CAPÍTULO I – CORPO E DISCIPLINA EM CONCEPÇÕES EDUCATIVAS DA MODERNIDADE ILUMINISTA: ROUSSEAU E KANT ... 23

1.1. A educação natural de Rousseau ... 26

1.2. A educação do Emílio: indicações para uma disciplina do corpo ... 29

1.3. Rousseau e o valor educativo da arte ... 33

1.4. O pensamento filosófico-educativo de Kant ... 36

1.5. Disciplinamento do sujeito desencarnado: o domínio da animalidade ... 39

1.6. A educação estética do homem: Schiller e a questão da sensibilidade ... 44

1.7. Merleau-Ponty: diálogo com os modernos e inserção no debate contemporâneo ...53

CAPÍTULO II – AS IMAGENS DA ARTE NA REINTERPRETAÇÃO DO CORPO EM MERLEAU-PONTY ... 61

2.1. O corpo-próprio como indicação de uma nova epistemologia ... 62

2.2. A expressividade do corpo-próprio: invenção e cognição ... 70

2.2.1 Estesia: mediação entre corpo e carne ... 76

2.3. O saber inscrito no corpo do artista ... 86

2.3.1 A visão dos gestos: o que é ver? ... 92

2.4. O Movimento Neoconcreto e a recepção do pensamento de Merleau-Ponty no cenário da arte brasileira ... 96

CAPÍTULO III – CORPO E DISCIPLINA NA ARTE CONTEMPORÂNEA ... 101

3.1. Experiências corporais paradigmáticas na arte do século XX ... 102

3.1.1. O proto-envolvimento do corpo nas produções de arte do século XX ... 107

3.1.2. Fronteiras e extrapolamentos do corpo nas produções de arte do século XX 121 3.1.3. O corpo na arte brasileira do século XX ... 135

3.2. Lygia Clark: da profanação do objeto artístico ao corpo como obra de arte . 145 3.2.1. Merleau-Ponty e Lygia Clark: tessitura de um entrelaçamento no corpo .. 155

3.3. Corpo, expressão e pensamento: desvios experimentais de liberdade ... 161

3.4. Disciplina-ressignificação do corpo e processos de criação através da arte . 169 3.4.1. Repetição inventiva ... 176

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 178

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Figura 1 - Jackson Pollock - Action painting... 108

Figura 2 - Saburo Murakami - At One Moment, Opening Six Holes, 1955. ... 110

Figura 3 - Kazuo Shiraga - Challenge for the Mud, 1955 ... 110

Figura 4 - Kazuo Shiraga - Challenge for the Mud, 1955 ... 111

Figura 5 - Yves Klein - Blue Period Anthropometries ... 112

Figura 6 - Yves Klein - Blue Period Anthropometries ... 113

Figura 7 - Allan Kaprow - 18 Happenings in 6 Parts: frente e verso do convite-carta-pôster-declaração ... 116

Figura 8 - Allan Kaprow - 18 Happenings in 6 Parts, 1959, Collection of the artist ... 117

Figura 9 - Allan Kaprow - 18 Happenings in 6 Parts, 1959, Collection of the artist ... 118

Figura 10 - Allan Kaprow - 18 Happenings in 6 Parts, 1959, Collection of the artist ... 118

Figura 11 - Yoko Ono - Cut Piece, 1964 ... 122

Figura 12 - Carolee Schneemann - Eye body, 1963 ... 124

Figura 13 - Michel Journiac - Messe pour um corps, 1969 ... 125

Figura 14 - Gina Pane - Escalade, 1971 ... 126

Figura 15 - Vito Acconci - Step piece, 1971... 129

Figura 16 - Marina Abromovic - Imponderabilia, 1977 ... 130

Figura 17 - Pina Bausch - Cena encontro ... 133

Figura 18 - Pina Bausch - Cena Nazareth Panadero ... 134

Figura 19 - Hélio Oiticica - B54 Bólide Área 1 – 1967 (Instalação). ... 141

Figura 20 - Hélio Oiticica - B55 Bólide Área 2 – 1967 (Instalação) ... 141

Figura 21 - Hélio Oiticica - B47 Bólide Caixa 22 - 1967. ... 142

Figura 22 - Lygia Pape - O ovo, 1968 ... 143

Figura 23 - Lygia Pape - Divisor - 1968. ... 144

Figura 24 - Lygia Pape - A roda dos prazeres - 1968. ... 144

Figura 25 - Lygia Clark - Casulo, 1958. ... 147

Figura 26 - Lygia Clark - Bichos, 1960. ... 147

Figura 27 - Lygia Clark - Caminhando, 1964. ... 150

Figura 28 - Lygia Clark - Trepante, 1964... 150

Figura 29 - Lygia Clark - Máscaras sensoriais, 1967. ... 151

Figura 30 - Lygia Clark - O Eu e o Tu: Roupa-corpo-roupa, 1968. ... 152

Figura 31 - Lygia Clark - A casa é o corpo: labirinto, 1968. ... 152

Figura 32 - Lygia Clark - Baba Antropofágica, 1973. ... 153

Figura 33 - Lygia Clark - Túnel, 1973. ... 154

Figura 34 - Lygia Clark - Rede de elástico, 1974. ... 154

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa decorreu de um amadurecimento dos estudos desenvolvidos pela autora no trabalho de mestrado intitulado A pintura como experiência para pensar a educação: uma interpretação da filosofia de Merleau-Ponty. Naquela ocasião, as temáticas do corpo e da arte se constituíram enquanto questões centrais de suas investigações no âmbito da educação, a partir das análises sobre pintura do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) em O olho e o espírito1 (L’oeil et l’esprit),

seu último ensaio, escrito em 1960.

A tese avançou na mesma direção, tendo como objetivo principal analisar o corpo e a disciplina a partir da filosofia de Merleau-Ponty e da experiência estético-educativa desenvolvida nas proposições de Lygia Clark (1920-1988), entre as décadas de 1950-1970, considerando a possibilidade de uma disciplina-ressignificação do corpo. No que se refere ao pensamento de Merleau-Ponty, foi elaborado um aprofundamento nas análises sobre a reinterpretação corpórea enquanto uma epistemologia possível. No que diz respeito à experiência estético-educativa, a proposta se expandiu para pensar, com o aporte teórico e as produções da arte que se desdobraram na fronteira entre o moderno e o contemporâneo2, as questões estéticas que envolvem a produção do conhecimento na contemporaneidade.

A dimensão estético-educativa, como adotada nesta pesquisa, requer uma ampliação do sentido convencional do termo estética, que, em geral, está associado a um determinado ideal de beleza desenvolvido desde os primeiros usos da palavra. De modo diverso, o que interessa aqui é compreender a estética3 enquanto uma experiência

que provoca os sentidos e a imaginação, produzindo fricções que permitem criar outros modos de conhecer. Em outros termos, é preciso ir “além de um universo de sensações formadoras do gosto para compreendê-la como um modo de conhecer, uma maneira de distribuir e de inscrever” (FRIGÉRIO apud LOPONTE, 2017, p. 432). Tratou-se, portanto, de relacionar a estética aos processos mais amplos que fazem parte da nossa existência, entendendo o termo a partir dos contágios entre arte e vida, lócus em que se

1 É importante destacar que as reflexões estabelecidas por Merleau-Ponty em sua obra O olho e o espírito

(L’oeil et l’esprit) não objetivam desenvolver uma teoria sobre a arte ou constituir uma estética, mas permanecer atentas ao trabalho prático dos artistas.

2 As análises realizadas sobre a arte se detêm à segunda metade do século XX, notadamente entre as

décadas de 1950 e 1970.

3 Desenvolveu-se o conceito de modo mais agudo no primeiro capítulo da tese, no subtítulo 1.6, intitulado

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vislumbra a possibilidade de criar outros modos de interpretar, de se conduzir e de conhecer o mundo em que vivemos (Ibid.).

Nessa perspectiva, as reflexões desenvolvidas nesta pesquisa se dirigem ao amplo domínio da educação, não intentando, portanto, refletir as questões do corpo, da disciplina e da arte, especificamente no âmbito da prática educativa escolar. Por conseguinte, o tema da disciplina foi abordado pela lente da experiência estética, ou seja, liberado das representações conceituais usualmente empregadas no contexto hegemônico da educação. De modo diverso, a disciplina é encarnada no corpo que se movimenta e cria modos de ser, reelaborando as suas significações a partir da sua reorganização gestual.

A tese pretendeu contribuir para a ampliação das reflexões sobre a valorização do aspecto corpóreo nos processos educativos, por meio de um saber incorporado que concilia as dimensões sensível (corpo) e racional (pensamento), ampliando e transgredindo as construções epistemológicas artificiais e abstratas.

No intuito de fundamentar essas considerações acerca da relação entre corporeidade e a dimensão estético-educativa no pensamento de Merleau-Ponty, percorreu-se uma trajetória iniciada na Modernidade, mais especificamente no período histórico do Iluminismo, destacando o pensamento de dois filósofos: o pensador francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Esse retorno à tradição iluminista fez-se necessário para esta investigação, uma vez que ambos os filósofos apresentaram propostas de educação sistematizadas que contemplam a experiência sensível e a razão e buscam, mesmo com objetivos e alcances distintos, compreender o sujeito4 em sua integralidade.

A partir da exposição das propostas pedagógicas rousseauniana e kantiana, elucidaram-se os desdobramentos e as ressonâncias dos pressupostos da Modernidade no debate contemporâneo. Da mesma forma, foram consideradas as reflexões de Friedrich Schiller sobre a Educação estética do homem, cuja proposta de formação da sensibilidade representou, na perspectiva do filósofo alemão, o meio mais efetivo de “tornar o conhecimento melhorado e eficaz para a vida, além de despertar para a própria

4 É importante destacar que o sujeito kantiano é transcendental, isto é, relacionado ao conhecimento em

sua dimensão apriorística, independente do dado empírico. O sujeito é, portanto, desencarnado. De modo que não se tem a pretensão de tratar o aspecto concreto, existente e objetivo do corpo na filosofia de Kant. Tendo em vista que: “Admite-se a existência da matéria, mas os corpos são, para mim, simples fenômenos; portanto, ‘também nada mais do que uma espécie das minhas representações, cujos objetos só por estas representações são alguma coisa, mas não são nada fora delas’” (MANIERI, 2011, p. 10). Nesse sentido, esclarece-se que o propósito para esse momento da tese é analisar duas concepções modernas que tematizaram o corpo (Rousseau) e a disciplina (Kant) em suas propostas para a educação da época.

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melhora do conhecimento” (SCHILLER, 2002, p. 47). Analisaram-se, ainda, alguns dos postulados desenvolvidos pela psicanálise e as teorias estéticas que exigiram uma compreensão da arte a partir dos modos de vida nas sociedades pós-capitalistas, com o propósito de demarcar como o pensamento de Merleau-Ponty se insere nas discussões vinculadas à corporeidade em sua dimensão estético-educativa.

A análise desse diálogo entre a tradição pedagógica iluminista e sua reverberação na contemporaneidade só foi possível porque, mesmo que Merleau-Ponty não tenha uma obra sistemática dedicada à educação5, seus estudos sobre a revalorização do aspecto corpóreo na construção do conhecimento trouxeram importantes contribuições para pensar os processos pedagógicos nos nossos dias, no tocante ao propósito desta tese. Observou-se que Merleau-Ponty radicalizou o giro epistemológico6 operado por Jean-Jacques Rousseau na Modernidade, atribuindo uma grande relevância ao corpo no processo educativo em sua obra Emílio, publicada em 1762. Em outro sentido, Merleau-Ponty reformulou a questão transcendental7 concernente à proposta iluminista8 de Immanuel Kant, dedicada à análise puramente conceitual das condições de possibilidade do conhecimento, na qual o corpo é dissituado e desencarnado, buscando restabelecer o vínculo estrito entre sujeito encarnado9, o mundo da experiência concreta e o conhecimento.

A reflexão em torno do pensamento pedagógico moderno, herdeiro do Iluminismo, configura-se enquanto uma tentativa de acercar e de estabelecer um horizonte que deve amparar as ponderações aqui presentes sobre a possibilidade de outra disciplina, elaborada a partir de uma reinterpretação radical do corpo. Nessa

5 Com exceção dos cursos ministrados pelo filósofo na Sorbonne, no período entre 1949-1952, que foram

compilados e publicados sob o título Psicologia e Pedagogia da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

6 Trata-se da chamada “revolução copernicana” operada por Rousseau ao estabelecer como centro do

processo educativo a criança e não mais o mestre.

7 Sobre o sentido do termo transcendental, Kant dirá: “Eu denomino transcendental todo conhecimento

que se ocupe não tanto com os objetos, mas com o nosso modo de conhecer os objetos, na medida em que estes devam ser possíveis a priori. Um sistema de tais conceitos denominaria filosofia transcendental. [...] é a ideia de uma ciência para a qual a crítica da razão pura deve traçar um plano completo. Ela é o sistema de todos os princípios da razão pura.” (KANT, 2013, p. 60-61).

8“As expressões ‘Iluminismo’, ‘Século das Luzes’, ‘filosofia das luzes’, designam um período histórico

circunscrito, em geral, ao século XVIII que abrangeu, sobretudo, a Alemanha, a França e a Inglaterra. O Iluminismo se caracterizou por seu otimismo quanto ao poder da razão e à possibilidade de reorganizar a fundo a sociedade com base nos princípios racionais. No entanto, a confiança no poder da razão não equivale exatamente ao racionalismo como foi entendido no século XVII; o Iluminismo ressalta justamente a importância da sensação como modo de conhecimento diante da especulação racional, mas o empirismo da sensação [de modo geral] é um acesso distinto a uma realidade que se supõe, no fundo, racional” (MORA, 2004, p. 1444-1445).

9 Esclarece-se que o termo “sujeito” é compreendido na filosofia de Merleau-Ponty como sujeito encarnado, a expressão afasta a concepção de que o sujeito seria uma substância pura. “A noção de

sujeito não se refere as nossas faculdades abstratas, mas a negação do sentido habitual de corpo enquanto somatório de funções neuropsíquicas.” (MÜLLER, 2001, p. 209).

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perspectiva, buscaram-se, nas produções artísticas contemporâneas, propostas que indicassem um tipo de disciplina-ressignificação do corpo e que permitissem pensar uma ação educativa atinente às exigências de uma formação que contemple todos os aspectos do ser humano. Trata-se de uma formação que visa ultrapassar as dicotomias que deturpam a condição do homem, que o “fraturam”, separando interior e exterior, razão e sentidos.

A disciplina no campo da educação é convencionalmente compreendida enquanto uma ação arbitrária, conformadora, cerceadora, mutiladora e encarregada do ordenamento dos corpos dentro de rígidos padrões de controle10. Herbert Read (2001) destaca que originalmente a palavra disciplina possuía o mesmo significado de educação, por meio de qualquer matéria ou instrução transmitida por um mestre aos seus discípulos. Apenas quando a educação passou a ser sistemática, as matérias ficaram conhecidas como disciplinas, que gradualmente se degeneraram em estudos artificiais, distanciados da experiência concreta do homem, na mesma medida em que a educação perdeu a capacidade de desenvolver o corpo em harmonia com as suas disposições naturais. A proposta de um deslocamento conceitual do termo “disciplina”, como compreendido habitualmente nos processos formativos, visa romper com essa lógica que, em última instância, reprime, pune, violenta e desqualifica o corpo. Nesse sentido, foi por meio da experiência estética que as reflexões em torno de uma disciplina criadora que metamorfoseia, que liberta o corpo de um código e de um modo de ser rígido e determinado foram conduzidas. Uma formação que busca dar voz à nossa inserção no mundo concreto, questionando a conformidade, a padronização e a uniformização dos corpos, o que, na ótica desta pesquisa, deve ser tema basilar das formulações educativas na contemporaneidade.

Por esse caminho, buscaram-se, nas instalações e proposições da artista brasileira Lygia Clark, outros modos de uso e de compreensão da disciplina e dos

10 Já no século XIX surgiu, especificamente no pensamento de Nietzsche, a discussão da diferença entre

hábito e obediência, domesticação e adestramento. O filósofo alemão, ao tratar a questão da redução e da ampliação da cultura, em suas conferências Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (proferidas em 1872), assegura que a disciplina torna a cultura mais aleatória e inverossímil, através da excessiva especialização. Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Tradução e apresentação de Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo/Rio de Janeiro: Loyola/Editora PUC-Rio, 2003, p. 74-76. Contudo, a disciplina na escola e nas diversas instituições foi amplamente tematizada no século XX, a partir das análises sobre o poder e o controle desenvolvidas por Michel Foucault, especificamente na terceira parte da obra Vigiar e punir (publicada em 1975), intitulada: Disciplina. Para aprofundar essas análises sugere-se a leitura: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999. É importante advertir, entretanto, que esta pesquisa não se deteve ao estudo da temática da disciplina a partir desses autores, em virtude do deslocamento pretendido, que reconhecerá o termo, articulado a um processo estético-educativo, parte indispensável para a reinterpretação do corpo.

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corpos no fazer educativo. A artista integrou o neoconcretismo, movimento de arte surgido no Brasil que se fundamentou nos pressupostos fenomenológicos de Merleau-Ponty. A aproximação do movimento Neoconcreto à fenomenologia de Merleau-Ponty ocorreu por colocar em primeiro plano a significação da obra de arte, a partir da experiência no espaço circundante, e estabelecer na expressividade do corpo o fio condutor de todas as suas produções. Nessa perspectiva, o movimento Neoconcreto buscou a abertura ao mundo dos objetos e uma nova atitude perceptiva, “o pensar com o corpo”, como sugeriu Merleau-Ponty, possibilitando a criação de novos caminhos de experimentação. O corpo que a fenomenologia trazia não era o corpo objeto ou o corpo funcional, e sim um “corpo fenomenal” ou um “corpo da experiência”, um corpo que era preciso interrogar. As perguntas que os artistas neoconcretos, como Lygia Clark, fizeram, levaram-nos para fora do mundo da arte, ou seja, para a margem do que era considerado arte naquele período. Esses artistas defenderam uma proposta poderosa: o corpo sabe mais. Sabe mais pela percepção - o grande eixo sobre o qual se construiu a dissidência neoconcreta - e sabe mais por excesso ébrio, além - e ao mesmo tempo aquém - da consciência e da vontade (AGUILAR, 2016, p. 18-19).

Com esse viés, considerou-se a experiência estética e a educação enquanto constituintes de um solo comum. Por um lado, a experiência estética permite desenvolver um processo educativo que exige tanto um desenvolvimento técnico quanto a compreensão do nosso esquema corporal, gestual e das expressões operadas por nossos movimentos. E por outro lado, e de modo complementar, a educação é um ato de criação, de reinvenção e de ressignificação do mundo. Desse modo, reforça-se que “ambos os processos [arte e educação11], integrados, constituem o ser humano

completo” (READ, 1986, p. 12).

A disciplina na atividade artística, em seu sentido amplo, é própria de qualquer ação criativa do corpo, desde a elaboração da técnica e da reorganização corporal até a sua interação com o mundo e com os outros. Nesse sentido, a relevância do tema para o campo da educação está em favorecer a compreensão das ações corporizadas enquanto meios irrecusáveis ao ato de aprender, por promoverem não apenas o desenvolvimento orgânico, biológico e intelectual, mas também o conhecimento do mundo externo e dos valores culturais, que precisam ser considerados e promovidos pela educação (Ibid., 1986, p. 78-79).

11 Destaca-se que a indagação desta pesquisa se estabelece na contramão do sentido instrumental, recreativo e acessório, usualmente empregado quando se trata da analogia entre arte e educação. De outro modo, evidencia-se a dimensão estético-educativa das manifestações artísticas que, por meio do sensível, da imaginação e da técnica operada pelo corpo, conhece e cria modos de conhecer.

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Sally Banes, na obra Greenwich Village 1963: Avant-Garde, performance e o corpo efervescente (1999), elaborou uma análise arguta em torno do corpo na arte, a partir da segunda metade do século XX. Embora as suas referências se circunscrevam ao âmbito da cultura americana, a autora contribuiu, em grande medida, para a compreensão das diversas tendências vanguardistas da arte contemporânea surgidas no período mencionado. Para Banes (1999 p. 311), o corpo, que nomeou de “efervescente”, pôs em relevo os aspectos materiais do corpo: “seus infernos, seus fluidos, suas trocas de superfície e profundezas interiores e exteriores, sua função procriadora e sua união com os outros corpos, em suma, sua carnalidade”. E advertiu, ainda, que a vanguarda do início da década de 1960 acrescentou o aspecto consciente que envolveu a experiência corporal de significação metafísica, buscando unir cabeça e corpo, mente e vísceras. Para alguns artistas a consciência só poderia ser iluminada e expandida a partir da experiência do corpo material.

Viviane Matesco, em seu livro Corpo, imagem e representação (2009), diz que, na segunda metade do século XX, o corpo abandona as fronteiras, transgride e escandaliza os seus meios expressivos, sendo evidenciado em happenings, ações, performances, experiências sensórias e fragmentos orgânicos, afirmando a sua literalidade enquanto singularidade da arte contemporânea. É preciso, contudo, considerar que o corpo na arte não possui um sentido único, um lócus estético definitivo. “Certamente, a exposição de dimensões do corpo antes reprimidas profana a sua imagem e representação no Ocidente. No entanto, fazer um caminho oposto e afirmar a sua literalidade é apagar a sua ambiguidade constituinte.” (Ibid., p. 8). Desse modo, teve-se o cuidado de não converter as produções da arte contemporânea em teses sobre o corpo, ao contrário, buscou-se nesse solo polissêmico e híbrido algumas experiências que contemplem a frequentação entre corpo e mundo, considerando as ambiguidades, os desvios e os deslocamentos próprios dos processos de criação e da produção do conhecimento.

Para perseguir o propósito desta pesquisa, algumas questões de fundo orientaram as análises, a saber: Como as proposições pedagógicas da modernidade ainda fundamentam a formação do homem nos dias atuais, tendo como referência as temáticas do corpo e da disciplina? Em que medida a filosofia de Merleau-Ponty forneceu subsídios para a compreensão e a reinterpretação da corporeidade, enquanto aspecto basilar na construção do conhecimento? É possível encontrar na arte contemporânea, notadamente nas produções da artista brasileira Lygia Clark, experiências

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estético-educativas que ajudem a refletir sobre a possibilidade de uma disciplina-ressignificação do corpo nas propostas formativas da atualidade?

Adotou-se a metodologia de abordagem qualitativa, utilizando a pesquisa bibliográfica, a partir do levantamento e da análise de referências primárias e secundárias que versam sobre as temáticas do corpo, da disciplina e da arte contemporânea. Pretendeu-se também fazer o uso da análise de fontes documentais, tais como: conteúdo fílmico, fotografias e obras artísticas.

No primeiro momento da tese, utilizou-se como bibliografia primária, para as análises sobre o pensamento pedagógico moderno, as obras de Rousseau, a saber: Emílio, ou da educação (2004), Discurso sobre as ciências e as artes (1983c), Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1983b), Carta a D’Alembert (2015) e o Contrato social (1983a); e as seguintes obras de Kant: Sobre a pedagogia (2012b) e Resposta à pergunta: que é esclarecimento? (2005). Além dos dois filósofos iluministas mencionados, buscaram-se as contribuições de Friedrich Schiller, com A educação estética do homem: numa série de cartas (2002). Com o propósito de compreender a inserção do pensamento de Merleau-Ponty no debate contemporâneo em torno do corpo, também se fez uso dos postulados desenvolvidos pela psicanálise e das teorias estéticas que exigiram uma compreensão da arte, a partir dos modos de vida nas sociedades pós-capitalistas como, por exemplo, as reflexões de Herbert Marcuse em Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud (1969).

No segundo capítulo, realizou-se uma análise sobre a reinterpretação corpórea ancorada na obra Fenomenologia da percepção (2011a), em que Merleau-Ponty estabeleceu o corpo como o nosso ponto de inserção primordial no mundo e, dessa forma, apontou meios para se pensar uma educação que restabeleça os saberes provenientes do corpo. Como suporte teórico também se empregou: A estrutura do comportamento (1975); A dúvida de Cézanne (2013a); A linguagem indireta e as vozes do silêncio (2013b); O olho e o espírito (2013c); A prosa do mundo (2012); Le monde sensible et le monde de l’expression: cours au Collège de France. Notes, 1953 (2011b); O visível e o invisível (2009) e Sens et non-sens (1996).

No terceiro capítulo, elaborou-se um panorama da arte na fronteira entre o moderno e o contemporâneo, notadamente na segunda metade do século XX - entre as décadas de 1950 e 1970, intentando estabelecer as vinculações com as temáticas do corpo e da disciplina em uma dimensão estético-educativa. Para tanto, analisaram-se brevemente algumas das principais tendências da arte internacional e nacional dentro do cenário de transição entre o moderno e o contemporâneo, cuja fundamentação

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encontra-se em artistas, historiadores e/ou críticos de arte como Allan Kaprow, com Manifesto (1996) e O legado de Jackson Pollock (1958); Sally Bannes, com a obra Greenwich Village 1963 (1999); Jorge Glusberg, com A arte da performance (2013); Mario Pedrosa, notadamente com as obras: Acadêmicos e modernos: textos escolhidos (2004) e Forma e percepção estética (1995); Ferreira Gullar, em Experiência Neoconcreta: Momento-Limite da Arte (2007); Hélio Oiticica, com as obras O museu é o mundo (2011) e Aspiro ao grande labirinto (1986); Ronaldo Brito, Arte neoconcreta: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro (1999); Ricardo Basbaum, com Arte contemporânea brasileira (2001); e Guy Brett, com Brasil Experimental arte/vida: proposições e paradoxos (2005). Além disso, utilizou-se ainda, como suporte teórico para as referidas análises, a pesquisa de Viviane Matesco, constante no livro Corpo, imagem e representação (2009) e outros textos de sua autoria. Dentro desse panorama, as análises nesta pesquisa foram circunscritas à experiência estético-educativa desenvolvida nas proposições de Lygia Clark, entre o período de 1960 a 1975, no interior do movimento Neoconcreto, lócus pelo qual o pensamento de Merleau-Ponty emergiu no cenário brasileiro. O propósito desse último momento foi de elucidar as tensões e fissuras entre o paradigma educacional do disciplinamento do corpo e a disciplina do corpo ressignificada a partir das produções da artista. Nesse caso, como arcabouço teórico principal para as reflexões em torno do processo criativo de Lygia Clark, fez-se uso das Cartas – 1964-74 (1996), de Lygia Clark e Hélio Oiticica; do O espaço de Lygia Clark (1994), de Ricardo Fabbrini; do livro Vassoura de bruxa: Lygia Clark Na arte da lou-cura (2002), de Nívia Bittencourt; e de alguns textos da obra Escrito de Artistas: anos 60/70 (2006), de Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.). Também foram utilizadas entrevistas fornecidas por Lygia Clark a jornais e revistas de arte, como, por exemplo, o nº 7 da Arte em Revista (1983) e os documentários: O mundo de Lygia Clark (1973), dirigido por Eduardo Clark; e Memória do corpo (1984), dirigido por Mário Carneiro. Além disso, o texto foi ilustrado com fotografias das proposições da artista brasileira. Ainda nesse último momento, apresentaram-se as questões educativas que emergem no processo de criação da arte, com o propósito de elucidar o sentido ampliado do corpo e da disciplina diante das produções artísticas.

Para retomar as análises sobre o corpo, a disciplina e a experiência estético-educativa, com o objetivo de fundamentar a tese sustentada por esta pesquisa, adotaram-se como aporte teórico principal as reflexões do filósofo, crítico de arte e literatura, Herbert Read, nas obras: A redenção do robô: meu encontro com a educação através da arte (1986) e Educação pela arte (2001); além das análises de Martha D’Angelo,

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desenvolvidas no livro Educação estética e crítica de arte na obra de Mário Pedrosa (2011).

Destaca-se que em todos os capítulos foram utilizadas bibliografias secundárias de autores e pesquisadores que comentam e desenvolvem reflexões indispensáveis para a temática elegida para esta pesquisa.

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CAPÍTULO I – CORPO E DISCIPLINA EM CONCEPÇÕES EDUCATIVAS DA MODERNIDADE ILUMINISTA: ROUSSEAU E KANT

Neste capítulo foram analisadas as questões do corpo e da disciplina, tendo como ponto de partida as propostas pedagógicas da tradição iluminista moderna, especificamente as concepções de Jean-Jacques Rousseau e de Immanuel Kant. Ambos os filósofos apresentaram propostas de educação sistematizadas que contemplavam a experiência sensível e a razão e buscavam, mesmo com objetivos e alcances distintos, compreender o sujeito12 em sua integralidade. Elucidaram-se, ainda, os desdobramentos

e as ressonâncias dos pressupostos da modernidade no debate contemporâneo, com o propósito de demarcar como o pensamento de Merleau-Ponty se insere nas discussões vinculadas à corporeidade em sua dimensão estético-educativa.

A filosofia moderna estabelece uma vinculação estrita com a educação, pois é a partir desse período que pode ser percebido o aprofundamento do viés formativo presente nos ideais modernos. Os processos de formação acompanhavam o momento histórico que evidenciava, “sobretudo a partir do século XVIII, a intensa ampliação da escolarização e da disseminação das instituições escolares como lugares sociais de formulação do saber e da educação formal” (SANTI, MAIA e VITTORIO, 2015, p. 13). O pensamento filosófico moderno se constituiu em um cenário de profundas mudanças no Ocidente, notadamente na Europa. Já era possível perceber essas transformações durante a época do Renascimento. Naquele período, ocorreram duas grandes revoluções conhecidas como: a revolução copernicana - século XVI - e a revolução científica do século XVII, que exigiram uma nova concepção de homem em meio às transformações de ordem social, econômica, política, religiosa, artística e científica. Na Modernidade, verificou-se, portanto, um esforço para compreender os fenômenos humanos a partir dos modelos científicos, como o projeto apresentado pela filosofia cartesiana. O pensamento de Descartes exibiu importantes reflexões em torno do homem e do conhecimento. O filósofo francês inaugurou o racionalismo moderno,

12 É importante destacar que o sujeito kantiano é transcendental, isto é, relacionado ao conhecimento em

sua dimensão apriorística, independente do dado empírico. O sujeito é, portanto, desencarnado. De modo que não se tem a pretensão de tratar o aspecto concreto, existente e objetivo do corpo na filosofia de Kant. Tendo em vista que: “Admite-se a existência da matéria, mas os corpos são, para mim, simples fenômenos; portanto, ‘também nada mais do que uma espécie das minhas representações, cujos objetos só por estas representações são alguma coisa, mas não são nada fora delas’” (MANIERI, 2011, p. 10). Nesse sentido, esclarece-se que o propósito para este momento da tese é analisar duas concepções modernas que tematizaram o corpo (Rousseau) e a disciplina (Kant) em suas propostas para a educação da época.

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apresentando uma visão de homem totalmente diversa da tradição anterior aristotélico-tomista. Esse racionalismo fica modelarmente explícito pelo cogito cartesiano, sintetizado na sentença: “Penso, logo existo” (DESCARTES, 1999, p. 62).

A Modernidade também foi marcada por outro acontecimento histórico denominado Iluminismo, que surgiu enquanto uma crítica à supremacia do pensamento religioso, imposto pela igreja, e ao absolutismo do Estado. Os principais expoentes do Iluminismo13 defendiam o esclarecimento14 por meio da razão e o desenvolvimento intelectual independente, ou seja, não mais subordinado às crenças religiosas. Na França, esse período foi representado pelo movimento enciclopedista inaugurado por Diderot e Voltaire no século XVIII15, cuja orientação conferia privilégio à especulação racional acima da representação sensível.

Jean-Jacques Rousseau, mesmo participando da enciclopédia de D’Alembert e Diderot, não foi um representante efetivo desse movimento. De modo diverso ao otimismo dos seus contemporâneos, o autor do Emílio demonstrou não ter confiança no poder iluminador da cultura, especificamente no Discurso sobre as ciências e as artes (1983c), apresentado para o concurso da Academia de Dijon, o qual lhe rendeu o prêmio em 1750. Nele, o filósofo genebrino apresentou sua tese para a questão: O reestabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?, sustentando que as ciências e as artes da sua época não somente não depuravam os costumes como também os corrompiam.

Foi propriamente no pensamento pedagógico de Rousseau que se estabeleceram as bases de um projeto de renovação educativa. A proposta rousseauniana defendia a centralidade do processo pedagógico no universo próprio da criança, a articulação entre as dimensões sensíveis e intelectuais, em detrimento da hierarquização entre corpo e razão, além da valorização da organização corporal na apreensão do conhecimento, que conferiria ao corpo a condição central em todo o processo do saber.

A defesa de Rousseau do homem natural e as suas críticas contundentes ao progresso, à cultura e à educação artificial foram bem desenvolvidas, notadamente no discurso Sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1758;

13John Locke, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Adam Smith, Rousseau e Kant são alguns dos principais

representantes do Iluminismo. Contudo, é importante destacar que, mesmo sendo expoentes do movimento iluminista, há consideráveis divergências entre as concepções desses pensadores.

14O conceito de esclarecimento ou ilustração corresponde ao termo alemão Aufklärung e foi bem

desenvolvido por Kant em seu texto: Resposta a pergunta: que é esclarecimento?, publicado em 1784. A análise dessa questão será retomada ainda neste capítulo.

15O enciclopedismo francês foi uma tendência ilustrada e liberal que tem como marco a publicação da Encyclopédie organizada por Diderot e D’Alembert, com a participação de diversos colaboradores, tais

como: Voltaire, Rousseau, Holbach, François Quesnay, Turgot, Daudenton, Marmontel e André Morellet. Cf. MORA, 2004, p. 824-825.

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no Emílio, de 1762; e na Carta a D’Alembert, de 1758, obras que foram as principais referências para as análises desta pesquisa. Mesmo não escrevendo especificamente sobre a temática da disciplina, encontra-se no pensamento de Rousseau subsídios para percorrer, como o fio de Ariadne, aquilo que indica, na perspectiva adotada nesta investigação, a compreensão primeira de uma disciplina proveniente do corpo. Em um momento posterior da tese, a partir da ótica rousseauniana, foi abordada a possibilidade de estabelecer um resgate do corpo em consonância com as manifestações artísticas contemporâneas que desenvolvem, pela lente da arte, práticas educativas legítimas.

Vale salientar que Rousseau exerceu forte influência na pedagogia iluminista de outro filósofo da época: Immanuel Kant.O pensador alemão fez referências diretas16 ao Emílio (2004), especificamente nos cursos intitulados Sobre a pedagogia, ministrados na Universidade de Königsberg entre 1776 e 1787, em que o filósofo desenvolveu considerações em torno da disciplina e da instrução do sujeito no processo para a formação educativa da sua época. As reflexões desenvolvidas por Kant representaram um avanço significativo no tocante à educação na metade do século XVIII, sendo consideradas precursoras da visão unificada e totalizante do ser humano no contexto da filosofia ocidental. Contudo, é importante destacar que se percebe em sua proposta uma reedição do abismo epistemológico entre a razão e a experiência sensível, estabelecido desde a metafísica clássica17.

Seguindo o fio condutor do pensamento kantiano, encontrou-se uma proposta de disciplinamento do sujeito em Sobre a pedagogia18. Nessas notas de aula, Kant subdividiu a educação em física e prática, onde a primeira opera sobre os cuidados e a coerção dos instintos selvagens, e a segunda se orienta pela moralidade e pela razão. Ambos os aspectos, em alguma medida, continuam sendo a referência para os modelos institucionais de educação na atualidade, permanecendo um ser humano fragmentado em duas instâncias contraditórias: corpo e razão.

Se o Iluminismo tinha fé no poder da razão para a solução de questões humanas e inclusive sociais, o período que lhe sucedeu certamente deveria reforçar o sentimento como qualidade primordial (SILVA, 2003, p. 9). No contexto de resistência ao

16 Cf. KANT, 2012b, p.11; 30; 34; 44, entre outras.

17 É importante lembrar o projeto educativo sustentado por Platão n’A república, em que são privilegiados

os aspectos educativos da razão, em detrimento da arte e de toda a manifestação sensível. Cf.: PLATÃO, A república. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996 (Livros: II, III).

18 “O texto ‘sobre a pedagogia’ corresponde, pelo menos parcialmente, ao material usado nas cadeiras de

pedagogia de que [Kant] foi encarregado de lecionar nos semestres de Inverno de 1776-7, de Verão de 1780 e de Inverno de 1786-7. O texto foi publicado originalmente por Friedrich Theodor Rink, em 1803”. (Sobre a Pedagogia, 2012b, p. 7 – Nota prévia).

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Iluminismo francês, despontou a proposta filosófica e educativa de Friedrich Schiller, que adensou as reflexões kantianas, inserindo um horizonte para a superação das dicotomias entre razão e sensibilidade, natureza e cultura, arte e ciência. Nas Cartas sobre a educação estética do homem, o filósofo alemão se dirigiu para a totalidade que constitui o ser, entendido enquanto sujeito e objeto em sua própria humanidade.

1.1. A educação natural de Rousseau

Rousseau sustentou, como uma das teses centrais do seu pensamento, o chamado à natureza como forma de o homem realizar a sua liberdade. O filósofo genebrino era contemporâneo de uma tradição de pensadores como Voltaire e Adam Smith, cujos ideais eram cosmopolitas, civilizatórios e buscavam instituições de aprimoramento moral associadas à sociedade comercial (WOKLER, 2012). Todavia, de modo contrário aos seus contemporâneos, Rousseau assumiu o papel de crítico contundente do progresso e da cultura, nos moldes adotados por sua época, e saiu em defesa do homem natural e das comunidades vinculadas à terra, que trabalhassem em benefício da vida comum. Sobre isso, Cassirer (1999, p. 56) afirma: “Trata-se de encontrar uma forma comunitária que proteja com toda a força concentrada da associação estatal a pessoa de cada indivíduo e o indivíduo, unindo-se aos outros, obedeça apenas a si mesmo, apesar de fazer parte dessa união”. A proposição de uma vida comunitária, em que os princípios da liberdade individual só podem ser efetivados necessariamente a partir da existência coletiva, fica evidente nas análises desenvolvidas por Rousseau (1983a, p. 33) no Contrato social, como se vê no trecho que segue:

Cada um dando-se a todos, não se dá a ninguém; e como não existe um membro da comunidade sobre o qual não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, cada qual ganha o equivalente de tudo o que perde e uma força maior para conservar o que tem. [...] esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular, um corpo moral e coletivo, composto de muitos membros e que, por esse mesmo ato, ganha a sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.

Em seu segundo discurso, intitulado Discurso Sobre a origem da desigualdade entre os homens (1983b), Rousseau assegurou de maneira contundente que não tinha o propósito de descrever o estado primitivo da humanidade, como demonstrado no decurso da história. Sobre a defesa do estado natural, Cassirer (1999, p. 51) adverte que, para o filósofo genebrino, “a natureza das coisas está presente em toda parte; para entendê-la não precisamos retroceder através dos séculos em direção aos testemunhos

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incertos e parcos da pré-história.” Por esse caminho, Rousseau aprofundou a ideia, já desenvolvida no primeiro discurso apresentado na Academia de Dijon - Discurso sobre as ciências e as artes (1983c) - de que o progresso afasta o homem dessa condição natural, ocasionando a sua corrupção moral, justamente por impor uma cultura artificial que usurpa a liberdade e que produz povos policiados, tutelados e cativos defensores do progresso dos costumes. Nas palavras de Rousseau:

Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama povos policiados. Povos policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis esse gosto delicado e fino que vos excitais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes, que tornam tão afável o comércio entre vós, em uma palavra: a aparência de todas as virtudes, sem que possua nenhuma delas (ROUSSEAU, 1983c, p. 334-335).

Rousseau defendeu que se conhece o homem sadio não pela riqueza do seu vestuário de um cortesão, mas sob o traje simples de um trabalhador. É nesse homem robusto que se encontra a decência e a verdadeira virtude: “o homem de bem é um atleta que se compraz em combater nu; despreza todos os ornamentos vãos, que dificultam a sua força.” (ROUSSEAU, 1983c, p. 336).

Ainda no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1983b), Rousseau atestou que a indústria e o progresso privam o homem da força e da agilidade, fornecendo máquinas que operam as atividades naturais de modo artificial – é o exterior que manipula o orgânico, o interior. Inversamente, o homem natural só conta com o corpo, “sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem conhece, é por ele empregado de diversos modos” (ROUSSEAU, 1983b, p. 238-239). Nessa ótica, o corpo é considerado o protagonista das ações humanas, o homem natural vive de acordo com as suas necessidades orgânicas, decorrentes do sentimento de autopreservação fisiológico e biológico. Contudo, para o filósofo genebrino, o homem não deveria gerir-se unicamente pelo instinto, gerir-seria preciso que ele estivesgerir-se em harmonia com o componente moral, noção que está estritamente atrelada à sua condição de liberdade. O homem, diferente do animal, executa suas ações como agente livre, só ele pode utilizar o recurso da escolha, é esse o caminho que pode ou não o tornar livre:

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[...] ele escolhe ou rejeita, por um ato de liberdade e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma. [...] Por outro lado, é pela atividade das paixões que a nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos e é impossível conceber por que aquele que não tem desejos ou temores dar-se-ia a pena de raciocinar (ROUSSEAU, 1983b, p. 243-244). Considerando esses argumentos, vê-se no pensamento de Rousseau a importância de articular o desenvolvimento intelectual e o sentimento, “apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, que, segundo uma opinião geral, lhe devem também muito” (ROUSSEAU, 1983b, p. 244). Enquanto o intelecto projeta o homem para fora de si, o sentimento é o caminho para dentro de si: “O selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento da sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes” (ROUSSEAU, 1983b, p. 281). Para Rousseau, é o sentimento, e a imaginação primeiramente, que nos leva ao conhecimento, à atitude teórica, entretanto, necessita do plano moral, ou seja, ele precisa estabelecer as suas bases na relação do homem com a sociedade, na concretude da vida e das relações com os outros. Nesse sentido, a finalidade da formação humana deve estar direcionada à liberdade moral, contudo ela não advém de uma atitude racional, alheia à nossa existência corpórea, mas nela também coabitam, de modo criador, os sentimentos e as emoções do homem. Além disso, o desenvolvimento da liberdade moral não se dá no isolamento, ele só alcança a sua plenitude na convivência com os outros, notadamente em comunidades locais. Desse modo, é preciso unir o sentimento da existência comum ao da existência individual.

Robert Wokler (2012, p. 85) diz que o Contrato social (1983a) parece abordar às avessas o que foi tema do Discurso sobre a desigualdade dos homens (1983b), “retratando um pacto que une os cidadãos, em vez de separá-los, e salvaguardando os ideais igualitários de participação pública que consolidam a sua liberdade, em vez de destituí-la”. No Contrato social (1983a), Rousseau estabeleceu a necessidade da vida em sociedade, expondo e mapeando as instituições necessárias para que os cidadãos alcançassem a sua liberdade, o que supostamente seria contrário à sua tese da corrupção moral da humanidade na sociedade civil. Contudo, vê-se claramente, nesse movimento, uma necessária passagem do homem natural para o homem do homem. O filósofo genebrino atestou que o processo de aprimoramento do homem não seria desenvolvido unicamente por meio do domínio natural, mas também por intermédio da sua inserção social. Nesse sentido, o homem seria historicamente constituído e sendo ele o único ser

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capaz de alterar livremente a sua natureza, não deveria realizá-la de modo solitário, mas a partir das relações sociais.

1.2. A educação do Emílio: indicações para uma disciplina do corpo

Como descrito anteriormente, a finalidade da educação, para Rousseau, é a liberdade moral, contudo ela só poderia ser desenvolvida a partir da negação e da crítica à cultura e ao progresso vigentes. O filósofo sustentava a necessidade de preservar o natural em detrimento da civilização. O Emílio (2004) representa o caminho pelo qual é possível alcançar a pureza do homem natural, evitando que ele seja corrompido e violentado pela cultura artificial de onde se origina a desigualdade entre os homens.

Seria preciso, então, desenvolver as forças naturais do homem por meio do cultivo dos sentimentos puros, protegendo-o do egoísmo, da inveja e da soberba, sentimentos oriundos de uma sociedade antinatural. É a educação sustentada pelo Emílio (2004) que possibilitaria a constituição de uma sociedade regida pela soberania da vontade geral e por um Estado democrático puro, respeitoso dos direitos naturais de cada indivíduo. Essa sociedade é bem descrita nas reflexões elaboradas por Rousseau em seu Contrato social, de 1762, obra desenvolvida simultaneamente ao Emílio (2004) e que, portanto, é complementar para uma compreensão efetiva das propostas defendidas por ele, cujo caráter revolucionário reivindicava uma mudança estrutural na sociedade do seu tempo. Faz-se necessário esclarecer que, para atender mais detidamente ao propósito desta seção, as reflexões que se fazem foram circunscritas especificamente ao Emílio (2004).

Rousseau (2004, p. 3-4) deixou claro, já no prefácio do Emílio, o propósito da sua obra:

Pouco falarei da importância de uma boa educação; tampouco me deterei provando que a educação hoje corrente é má; mil outros o fizeram antes de mim, e não me agrada encher um livro com coisas que todos sabem. Observarei apenas que, há infinitos tempos, todos protestam contra a prática estabelecida, sem que ninguém se preocupe em propor outra melhor. A literatura e o saber de nosso século tendem muito mais a destruir do que edificar. Apesar de tantos escritos que, segundo dizem, só têm por fim a utilidade pública, a primeira de todas as utilidades, que é a de formar os homens, ainda está esquecida. As reflexões inerentes a esta pesquisa foram orientadas a partir da revolução operada por Rousseau, em que o processo educativo deixa de ser centralizado no mestre

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e estabelece a criança como eixo de toda a experiência formativa. Na educação do Emílio, que deve ser puramente negativa19, Rousseau instituiu como ponto de partida a

organização corporal e a estrutura sensitiva da criança. A valorização do processo de amadurecimento natural e gradual do corpo necessitaria de tempo e não de instrumentos artificiais.

A criança recém-nascida precisa esticar e mover os membros para tirá-los do entorpecimento. É verdade que os esticamos, mas os impedimos de se moverem; chegamos até a prender-lhe a cabeça a testeiras: até parece que temos medo de que ela pareça estar viva. [...] A inação, o constrangimento em que se mantêm os membros de uma criança só podem dificultar a circulação do sangue, dos humores, impedir que a criança se torne mais forte, cresça, e alterar a sua constituição (ROUSSEAU, 2004, p. 17-18).

Rousseau elencou diversos exemplos de desnaturação do corpo praticados nos cuidados e na educação das crianças do seu tempo, como a utilização habitual dos cueiros, testeiras e faixas, “mal a criança sai do ventre, é envolta em panos e bandagens que não lhe permitem mudar de posição. De onde vem esse costume insensato? De um costume desnaturado” (ROUSSEAU, 2004, p. 17-18). Esses costumes valorizavam a utilização de objetos artificiais que não só desrespeitavam o processo de amadurecimento natural do corpo como acabavam por retardar o crescimento e/ou criar deformidades no corpo da criança. Para o filósofo, aprendemos que existem coisas diferentes de nós mesmos apenas pelos movimentos. A criança, nos primeiros anos de vida, só tem atenção ao que realmente atinge os seus sentidos, sendo as sensações os primeiros materiais de seus conhecimentos. Sobre isso Rousseau afirma:

Nascemos sensíveis e desde o nascimento somos afetados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam. Assim que adquirimos, por assim dizer, a consciência de nossas sensações, estamos dispostos a procurar ou a evitar os objetos que as produzem, em primeiro lugar conforme a conveniência e a inconveniência que encontramos entre nós e esses objetos, e, enfim, conforme os juízos que fazemos sobre a ideia de felicidade ou perfeição que a razão nos dá. Essas disposições estendem-se e firmam-se à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; forçados, porém, por nossos hábitos, elas se alteram mais ou menos segundo nossas opiniões. Antes de tal alteração, elas são o que chamo em nós a natureza (ROUSSEAU, 2004, p. 10-11). A partir do que Rousseau assegurava, algumas questões parecem importantes para o avanço da proposta de uma disciplina proveniente do corpo no Emílio. A

19 A educação negativa no pensamento de Rousseau deve ser compreendida como a negação da cultura e

do progresso vigentes, principais eixos das críticas proferidas pelo filósofo genebrino à sociedade do seu tempo.

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primeira delas seria o equilíbrio entre a dimensão sensível e o plano racional, ou seja, a sensação que nos permitiria experimentar os objetos (o mundo) e, por meio de uma conscientização corpórea, compreender as circunstâncias que tal ação produz em nosso corpo. No mesmo sentido, a razão, assentada no plano moral, ajuizaria sobre aquilo que é bom ou mal para o nosso corpo, orientando as nossas escolhas, no tocante aos limites e às potencialidades de cada um, “concebeis alguma verdadeira felicidade possível para um ser fora de sua constituição?” (ROUSSEAU, 2004, p. 85). Embora Rousseau (2004, p. 88) assegurasse que “na idade da razão começa a servidão civil”, suas reflexões traziam a defesa de um tipo de razão emancipada, não servil, atrelada à dupla condição humana: natural e social. É essa condição que fundamenta, como esclarecido anteriormente, a principal finalidade da proposta rousseauniana de educação: a liberdade moral, em que “todos os grandes homens [reunirão] a força do corpo e a força da alma, a razão de um sábio e o vigor de um atleta” (Ibid., p. 139).

Uma segunda questão seria a necessidade de se percorrer o caminho diverso ao usualmente adotado na educação em seu molde tradicional, o qual estabelece as bases do ensino a partir do aspecto intelectivo e racional. Rousseau advertia que é preciso considerar a rota oposta, pois, para ele, iniciar pela razão seria começar pelo fim:

[...] é da obra querer fazer um instrumento. Quando se tratar de seu interesse presente e sensível vereis toda razão de que é capaz desenvolver-se bem melhor e de uma maneira bem mais apropriada a ela do que em estudos de pura especulação (Ibid., p. 90; 141).

É importante lembrar, contudo, que ao seguir a trajetória contrária não se estaria negando o aspecto racional no processo de aprendizagem, mas estabelecendo um sentido circular para o conhecimento. Nessa ótica, o percurso defendido por Rousseau indica que, partindo da experiência sensível (da nossa elaboração corporal), se segue a organização racional (conscientização), retornando, finalmente, ao mundo concreto e partilhado. Por meio desse retorno, o conhecimento seria um interesse, um desejo, presente e sensível. Para isso, o filósofo assegurava que a criança deveria seguir a orientação da sua natureza e, através da experimentação do mundo, tornar-se capaz de desenvolver, simultaneamente, os aspectos sensível, imagético e intelectivo:

A criança quer tocar tudo, pegar em tudo: não vos oponhais a esta inquietação; ela lhe sugere um aprendizado muito necessário. É assim que ela aprende a sentir o calor, o frio, a dureza, a moleza, o peso, a leveza dos corpos, a julgar a sua grandeza, sua figura e todas as qualidades sensíveis, olhando, apalpando, escutando e principalmente comparando a visão com o tato, estimando com os olhos a sensação que produzem em seus dedos. (ROUSSEAU, 2004, p. 51-52).

Referências

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