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Disciplina-ressignificação do corpo e processos de criação através da arte

CAPÍTULO III – CORPO E DISCIPLINA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

3.4. Disciplina-ressignificação do corpo e processos de criação através da arte

estéticas que envolvem a produção de conhecimento na contemporaneidade e na elaboração de qualquer metodologia formativa que se pretenda emancipadora. E são indispensáveis por permitirem, entre outras coisas, conciliar, em um mesmo ato, pensar e fazer, além de deslocar, torcer e transgredir o sentido usualmente atribuído ao termo disciplina, considerando o seu processo de produção que integra as dimensões criativa, formativa e a elaboração do esquema corporal104. Sobre a atenção ao processo de criação artística e a sua função educadora, Mário Pedrosa destaca:

O objetivo principal de uma ocupação artística persistente e sistemática não está, no entanto, na produção de obras-primas, nem mesmo na construção desta ou daquela obra particular. O que sai das mãos ou da cabeça do incipiente artista ou artesão não é o que importa. O que importa é o que ganha, com tais atividades, a sua personalidade: o controle dos sentimentos, o desenvolvimento harmônico dos sentidos, o despertar da sensibilidade, o equilíbrio interno das emoções (PEDROSA apud D’ANGELO, 2011, p. 63). Herbert Read, em seu livro A redenção do robô: meu encontro com a educação através da arte (1986), advertiu sobre a necessidade de metodologias distintas daquelas convencionalmente empregadas nos sistemas educativos tradicionais. Para sustentar o que o crítico nomeou de “educação pela arte”, seria imperativo um método experimental que invalidasse a ideia de que a arte na educação precisa de um espaço determinado nos sistemas de ensino, estabelecendo, portanto, o processo criativo do artista como base para qualquer tipo de formação. Read endossa a sua tese apresentando uma experiência desenvolvida pelo professor A.L. Stone, publicada em um livro intitulado Story of a School105 (História de uma escola), em 1949, pelo Ministério da Educação de Londres. Nessa publicação, Stone relatou que a observação realizada com as crianças da sua escola permitiu inferir que todo o processo de educação estava fundamentado em três dimensões, a saber: interesse, concentração e imaginação, uma vez que sem interesse a criança não inicia o aprendizado, sem concentração não é capaz de aprender e sem

104 Refere-se aqui ao que advertiu Jorge Glusberg (2013) sobre o processo de produção da arte de performance. Ver página: 130.

105 Ver: Ministry of Education Pamphlet, N° 14. Story of scholl: A headmaster's experiences with

children aged seven to eleven. London: His Majesty's Stationery Office, 1949. <Disponível em: http://www.educationengland.org.uk/documents/minofed/pamphlet-14.html>. Acesso em: 30 de abr. 2018.

imaginação é incapaz de utilizar criativamente o que aprendeu (READ, 1986, p. 63). Para dar ênfase a essas dimensões, desenvolveu atividades que oportunizassem a expressão das crianças, notadamente por meio de jogos e dramatizações, em transversalidade com todas as artes. Read aponta como mais relevante na experiência de Stone e dos professores envolvidos um tipo de disciplina resultante da absorção da criança em sua experiência, e não de algo imposto (Ibid.). A crítica elaborada por Read redireciona a função da disciplina, cuja representação sempre esteve associada às imagens do martelo, das varas, das réguas e dos rituais militares, que reforçam um núcleo duro do termo, compreendido como ameaça, punição, repressão e castração. O filósofo foi até a etimologia da palavra para elucidar o real sentido do termo, que vem do latim “ensino”. Partindo desse significado e da arte, o autor considerou a possibilidade de restituir o caráter liberativo e construtivo do conceito como um meio de revitalizar as práticas formativas:

A disciplina da arte é a única disciplina a que os sentidos se submetem naturalmente. A arte é forma, harmonia, proporção e integridade ou totalidade de qualquer experiência. Ela é também disciplina da ferramenta e do material – a disciplina imposta pelo lápis ou pela caneta, pelo tear ou pela roda do ceramista, pela natureza física da tinta, tecido, madeira ou argila. Mas essa disciplina é parte de nossa constituição fisiológica, e está aí para ser incentivada e amadurecida. Não tem de ser imposta pelo mestre-escola ou pelo servente ou bedel; não é uma espécie de tortura física. É uma faculdade inerente à criança que corresponde à simpatia e ao amor, à previsão inteligente dos impulsos e tendências na individualidade da criança. O objetivo da educação é permitir a cada tipo sua linha natural de desenvolvimento, sua forma natural de integração. Esse é o significado real de liberdade na educação (READ, 1986, p. 46).

As análises de Read em torno da disciplina reabilitam os pressupostos de Rousseau na proposta de educação do Emílio, no tocante à necessidade de seguir as disposições naturais e orgânicas preservando-as dos artifícios e de uma formação antinatural. Como se viu no primeiro capítulo desta tese, o fim da educação, para o filósofo genebrino, era a liberdade moral, um projeto que se inicia na educação, com o processo formativo orientado para o desenvolvimento das suas capacidades naturais e da sensibilidade do indivíduo singular, livre dos condicionamentos trazidos pelo progresso, e se consolida na sociedade do Contrato Social, em que o indivíduo, independentemente de subordinações externas à sua constituição natural, se integra à comunidade, tornando-se um cidadão que coloca a sua liberdade natural a serviço do bem comum e aos desígnios da vida civil. Em outros termos, quando se torna o único ser capaz de alterar livremente a sua natureza, sem coerção ou punição, o homem

consegue unir o sentimento da existência individual ao da existência comum, atingindo a liberdade moral.

Foi por meio dessa perspectiva renovada de disciplina que se buscou nos processos criativos da arte possibilidades para pensar outras epistemologias possíveis, que envolvam o corpo, tendo em vista que qualquer solução para o aspecto autoritário da disciplina deve “substituir a repressão por alguma influência ou tendência que permita aos instintos emergirem e se exprimirem, e, ao mesmo tempo, assegure ainda que sua livre expansão não seja prejudicial ao indivíduo ou à sociedade” (READ, 1986, p. 65). Tomando como referência a interpretação da psicologia e da psicanálise, que contribuíram de modo notável para as descobertas em torno da emoção estética e das pulsões que movem a criação artística (D’ANGELO, 2011), a arte permite a organização dos impulsos geradores da energia criativa (inconsciente), tornando-os conscientes por meio da materialização do gesto, do movimento, da experiência de elaboração de uma obra ou proposição. Read avalia o inconsciente como força criadora a partir das análises de Jung, para quem:

A vida criativa se situa fora da convenção. É por isso, quando a mera rotina da vida predomina, sob a forma das convenções e da tradição, que o terreno é mais propício para uma explosão destrutiva da energia criativa. Essa explosão se torna uma catástrofe apenas quando é um fenômeno de massa, mas nunca no indivíduo que conscientemente se submete a esses poderes mais elevados e lhes serve com toda a sua força (JUNG apud RED, 1986, p. 68).

Seguindo esse fio condutor pode-se inferir que a aprendizagem dependeria da formação de “disciplinas inconscientes”, o que tem sido pouco aventado nas práticas educativas tradicionais. Convencionalmente não há tematização, no âmbito pedagógico, do inconsciente como aspecto necessário ao ato de aprender. “Aprendemos os movimentos de uma tacada, mas erramos ao bater na bola porque observamos com atenção o ato da tacada, e os músculos se recusam a ser coordenados por um cérebro consciente – eles se revoltam contra qualquer forma de comando” (READ, 1986, p. 78). São raros os casos de habilidades prodigiosas em que o indivíduo tenha nascido com uma disciplina inconsciente, destacando um virtuosismo inato e genuíno na arte, no esporte ou nos demais campos do conhecimento, em geral. A disciplina é algo que se adquire enquanto tarefa educativa, contudo:

Recebemos esse mecanismo infinitamente complicado, delicadamente coordenado, que é o filhote humano, e começamos a golpeá-lo, a puxar-lhe as orelhas, a tortura-lo de mil formas até que obedeça. Obedeça a que? Bem, em primeiro lugar, a diversas restrições e seus

instintos – não fazer bagunça, não fazer barulho, não infligir a adultos ocupados seu desejo natural por atividades sociais. Entretanto, suponhamos que tomássemos até um desses instintos primitivos – fazer barulho, por exemplo –, e o utilizássemos como base para a atividade criativa e espontânea. Já descobrimos que a criança, antes de poder manejar um lápis ou um pincel, é capaz, com um prazer imenso, de lambuzar os dedos em tinta e transferir as cores, com algum senso de determinação, para uma folha limpa de papel. Onde há um senso de determinação, já existem os rudimentos de um senso de disciplina, já há uma coordenação de reflexos musculares. A disciplina começou – nasceu no processo de uma atividade criativa primitiva.

Entretanto, convém lembrar o sentido do termo “espontaneidade”, que nada tem a ver com um tipo de atitude laissez-faire. A palavra “espontâneo” tem sua origem no latim, cujo radical e seus derivados são provenientes do termo “sponte”, que designa “por livre vontade”, ou seja, uma experiência livremente produzida. Segundo Moreno (1997, p. 132), “a espontaneidade tem a tendência inerente para ser experimentada por um indivíduo como seu próprio estado, autônomo e livre – isto é, livre de influências exteriores e de qualquer influência interna que ele não pode controlar”. A preservação e o desenvolvimento dessa espontaneidade provocada pela disciplina inconsciente deveriam, pela ótica aqui utilizada, estender-se a todos os fenômenos que envolvem a formação humana, desde a ampliação das capacidades psíquicas e expressivas do homem até o seu conhecimento do mundo externo e seus valores culturais, sendo essa a finalidade precípua de qualquer educação. “Não há um só assunto, da aritmética simples ao cálculo avançado, do estudo da natureza à teoria biológica, de escrever poesia à metafísica, que não possa ser adquirido como uma disciplina habitual, em sua totalidade integrada” (READ, 1986, p. 79). Para tanto, é preciso destacar a dimensão relacional desse movimento, a disciplina inconsciente reabilitada a partir da expressão artística promove não apenas uma abordagem natural e orgânica dos temas acadêmicos, mas também um solo comum para o enfrentamento das tensões e o estabelecimento de reciprocidades nas relações sociais. Nessa perspectiva:

A disciplina da arte – obviamente precisamos interpretar a arte num sentido amplo, para incluir toda a atividade construtiva, toda técnica e habilidade. Esse era mesmo o significado original do termo, e as artes apenas se dissociaram das atividades normais da comunidade quando perderam sua integralidade, sua unidade objetiva para a comunidade. Nosso primeiro passo nas escolas [e em qualquer espaço formativo] deveria ser derrubar o isolamento da arte – aboli-la de todo como matéria se for para ser considerada como atividade especializada, estanque. Ela deveria ser o aspecto significante, o aspecto disciplinado, de toda atividade; qualquer matéria deveria ser uma das artes, e o objetivo da educação deveria ser fazer de todos nós mestres em arte. No entanto, ser mestre em uma arte é ser também partícipe de

um mistério – de um dos grupos funcionais de uma comunidade orgânica (READ, 1986, p. 80).

Por essa ótica, é preciso suplantar o caráter automatizador da disciplina, que produziu exércitos e a servidão inerte dos empregados em fábricas, escritórios, em estabelecimentos públicos e/ou privados, além de entorpecer e interditar os corpos nos sistemas tradicionais de ensino, impondo uma integração mecânica de elementos que discordam da própria constituição humana, seja na dimensão natural ou de empreendimento coletivo. O sentido renovado do termo, despido das suas amarras históricas, deve ser articulado com a acepção ampla da arte, para tanto, na perspectiva que se adotou nesta pesquisa, esse nó de ressignificação só pode se realizar no corpo.

Como se viu, o processo de produção do artista estabelece uma triangulação entre as dimensões criativa, formativa e de elaboração corporal, que pode ser admitida em qualquer proposta de formação, resguardadas as especificidades do campo da arte. No tocante à educação, devido aos aspectos condicionantes que foram impostos intencionalmente aos corpos – desde o espaço físico tradicional escolar até a limitação das condutas morais e da expressividade –, pode-se considerar, em lugar de um processo de elaboração corporal, um tipo de reelaboração corporal.

Neste capítulo, transitou-se por algumas experiências artísticas que foram pioneiras e emblemáticas na inversão dos códigos e das normas de condutas imputadas aos corpos, por se inserirem em um espaço de transgressão aos cânones de determinadas tradições hegemônicas e ao aspecto institucionalizado da arte, fornecendo elementos poderosos para redirecionar reflexões e práticas que busquem uma pedagogia alternativa aos processos formativos tradicionais dominantes. A transmutação de valores, presente na obra de Lygia Clark, foi promovida quando o gesto espontâneo do participante entrou em cena e jogou, operando de modo semelhante ao do jogo schilleriano, quando o sensível e o formal se tornaram outra realidade, uma tríade que fez a conexão entre o homem físico e o moral, através de um jogo lúdico harmônico de cooperação, de intermediação e de equilíbrio, que gera beleza, plenitude e liberdade. Na produção da artista brasileira, notadamente a partir da proposição Caminhando, o jogo se revelava como tudo ou nada, na própria imanência do ato. “De saída, o Caminhando é apenas uma potencialidade. Vocês e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma fusão. O único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu ato.” (CLARK apud BITTENCOURT, 2002, p. 173). A sensibilidade é despertada pelo efeito de indiferenciação entre sujeito e objeto e a instituição de uma relação recíproca entre essas

dimensões, que implicam em resistir aos condicionamentos culturais, através de um exercício poético da existência. Para Bittencourt (2002, p. 174):

O objetivo é libertar o pensamento das concepções mentais que nos aprisionam em hábitos viciados, e que determinam os automatismos de conduta. O participante toma consciência das situações vividas por meio da percepção corporal e não através da dedução intelectual, que pode conduzir à racionalização. A sensibilização do corpo induz a produção de fantasmas106, incitando a ação sem constrangimentos. A

arte passa a depender desse descondicionamento, libertando os gestos que estavam sob a moldura: ‘a arte torna-se o exercício espiritual da liberdade’.

Segundo Martha D’Angelo (2011), Mário Pedrosa, ao mencionar Heinz Werner e seus estudos de psicologia, tematiza o problema da carga de sentimento envolvido no mundo das representações sensoriais e mentais. Para o crítico brasileiro, as crianças, os loucos e os artistas possuíam uma capacidade afetivo-expressiva mais intensa e mais profunda, pois eram “movidos por um impulso que mostra a ‘cara’ das coisas e anima o mundo, com muita expressividade porque não conseguem contemplar o mundo sem se comover. Esse tipo de experiência gera um tipo de conhecimento capaz de conferir a todas as coisas vida e expressão” (Ibid., p. 68). Nessa perspectiva, o processo criativo de Lygia Clark, notadamente a função pedagógica dos trabalhos sensoriais que operam com os impulsos e com os sentimentos, serve como principal referência das suas experiências que exigem e provocam a reconstituição dos corpos. Tais proposições potencializam a ressignificação dos gestos e o descondicionamento do corpo, como destaca Bittencourt (2002, p. 181) em suas análises em torno da obra da artista brasileira:

A experimentação da sensação tátil era confrontada com a visão, fazendo o participante rememorar uma variedade de sensações ou descobrir outras. As experiências visavam recuperar o sentido original presente nos gestos habituais, apropriando-se ou desapropriando-se, no momento de realizá-las, de significações evocadas no diálogo com o material. Mas essa ressignificação dos gestos era precedida pelo esvaziamento da significação, que multiplica as potencialidades dos sentidos. O objetivo é descondicionar, flexibilizar, elasticizar o corpo, num atletismo afetivo que amplifica as possibilidades sensíveis e aumentam a ressonância de cada gesto. Ao final de cada série pode redescobrir o erotismo presente em cada movimento, o que revela uma insuspeitada sensualidade como resultado da articulação da face

106 Na obra de Lygia Clark “o corpo é o lugar onde se desenrola a fantasmática humana, que dá sentido (e

corpo ao desejo) ao desejo fundamental – é ao mesmo tempo suporte da expressão e sede das pulsões. O corpo fantasmático é constituído por projeção da sensação no imaginário, o que ele apresenta como se fosse exterior, por ser algo que às vezes surpreende e aterroriza, é uma parte do eu que foi abandonada.” (BITTENCOURT, 2002, p. 199).

sensível da linguagem (a vivência despertada pela sensação) com a face inteligível (a percepção que mobiliza a vivência).

A indiferenciação corpo/mundo torna-se, então, exigência para que haja uma relação recíproca entre sensível e inteligível, entre sujeito e objeto, entre razão e sensibilidade. Esse aspecto foi bem desenvolvido por Merleau-Ponty, quando tematizou a questão da reelaboração do esquema corporal. Para o filósofo, “o corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles.” (MERLEAU- PONTY, 2011a, p. 122). Como apresentado no segundo capítulo desta tese, na perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty o hábito promove uma articulação entre o espaço e o movimento do corpo, tendo como função principal estabelecer no tempo os comportamentos ou formas de conduta apropriadas para responder aos convites do meio ambiente, como em “eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca” (Ibid., p. 195). Partindo dessa compreensão, o hábito é destituído de um caráter meramente mecânico e repetitivo, sendo, portanto, apreendido enquanto possessão, remanejamento e renovação do esquema corporal. O corpo conhece o seu mundo sem o intermédio de representações, sem estar necessariamente subordinado a uma função simbólica ou objetivante (Ibid.), mas, antes, nasce com o mundo. Por conseguinte, o hábito não é um ato de elaboração do entendimento ou de um raciocínio prévio, mas uma apreensão de significação natural do corpo. Importa que ele seja trazido para os processos de criação em sua integralidade originária, liberado dos vícios, repressões e condicionantes aos quais convencionalmente o corpo é submetido. Trata-se, portanto, de produzir contracondutas, a partir de condições espaciais para que haja movimento, autodeterminação e autoformação dos indivíduos, como ficou patente nas proposições de Lygia Clark. A artista brasileira provocava a afetividade e o desejo através de experiências sensoriais e do contato dos corpos uns com os outros, para restituir “a gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 25). Todos esses aspectos são paulatinamente apartados dos nossos métodos de aprendizagem comumente propalados nas práticas formativas hegemônicas, por serem herdeiros de epistemologias que privilegiam o desenvolvimento intelectual em detrimento da dimensão corpórea e sensível. A esta última, são destinadas majoritariamente experiências confinadas a espaços e tempos domesticadores.

3.4.1. Repetição inventiva

A repetição é outro aspecto relevante que possibilita avançar nas reflexões em torno de uma disciplina-ressignificação do corpo, pois não se pode discordar que qualquer processo de criação requeira disciplina, mas também repetição. Contudo, o sentido do termo deve ser destituído da perspectiva convencional de que o aprendizado por repetição leva necessariamente à perfeição ou, de modo diverso, que a repetição é meramente mecânica e, desse modo, é o retorno do mesmo. Uma experiência que se destaca como emblemática na apreensão do termo repetição sob outras bases é a dança- teatro de Pina Bausch. A artista, em suas montagens, aliava disciplina, repetição, técnica, dor, queda e erro, enquanto componentes indispensáveis ao processo de criação, por permitirem problematizar e evidenciar as marcas deixadas no corpo pela disciplina autoritária. De acordo com Barba e Savarese, em A arte secreta do ator (1995), em situações cênicas o uso dos corpos é transmutado, torna-se outro, bem diverso dos modos como os corpos se organizam na vida cotidiana, em que há uma interdição da nossa organicidade natural, das forças emotivas e instintivas que operam em nossos corpos, como afirma Silveira (2010, p. 20):

Na vida cotidiana usamos técnicas corporais que foram condicionadas pela nossa cultura, nossa posição social e profissão. Normalmente não somos conscientes destas técnicas cotidianas, pois nós nos movemos, sentamos, carregamos coisas, beijamos, concordamos e discordamos com gestos que acreditamos serem naturais, mas que, de fato, são determinadas culturalmente.

A metodologia cênica (da dança ou do teatro) pode ser considerada, portanto, um modo de desenvolver um tipo de expressividade corporal extracotidiana, tendo em vista que os exercícios, a técnica e a repetição promovem um descondicionamento. Por conseguinte, a referida metodologia configura-se enquanto um dos caminhos possíveis para redescobrir, compreender, reelaborar e ampliar o nosso esquema corporal, nossas disposições e habilidades corpóreas, liberando-as das determinações culturais externas. Nesse sentido, a repetição nunca é o retorno do mesmo, já que, no contexto lúdico, ela abre para novos modos de apreensão do gesto, da fala e/ou do movimento. A repetição, segundo o inconsciente freudiano, é tematizada por Lacan em O seminário livro 11: quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1998) da seguinte forma: